segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

MEMÓRIAS DE SALVADOR, ONTEM E HOJE


Luiz Carlos Facó



Nasci no finalzinho da década de trinta. Numa Salvador pródiga, embora paupérrima. Pródiga em solidariedade, em filhos ‘porretas’. Exacerbadamente respeitosa ao sagrado e ao místico. Cujas tradições populares eram respeitadas: procissões, a cruz, os patuás, as lavagens das igrejas, as rezas de descarrego, benzeduras e simpatias. Onde não se fornicava na Semana Santa, em sinal de respeito. As mulheres-damas ou não, lacrando seus baús. Os homens, embainhando suas espadas. Receosos em cometerem o pecado capital da luxúria, cuja expiação era difícil alcançar. Desastradamente preconceituosa. Até, maledicente. Onde as locuções ‘cruz credo’, ‘vixe Maria’, ‘valha-nos Deus’, faziam parte do vocabulário popular. E os ebós, nas encruzihadas, eram adornos das paisagens locais. Cujos ingredientes: a farofa de dendê, o galo preto, as pipocas, a garrafa de caninha “retada” e da boa (Jacaré ou Saborosa), mel, velas brancas, pretas, encarnadas, eram disputados pelos famintos.

Numa terra de mil e várias cores. Indo do dourado do nascer do sol, passando pelo rubro matizado do poente. Do verde claro ao escuro da vegetação que recobria as escarpas e os seus grotões, ralamente ocupadas. Do azul escuro pintado no firmamento ao esmaecido das águas da baía que a margeia e tempera. Da púrpura das vestes cardinalícias ao negro das dos padres seculares e ao marrom encardido dos hábitos franciscanos. 
Terra chamada de Todos os Santos, dos Orixás, Cidade Presépio.  Havida por José de Anchieta como “a melhor terra do mundo”. Por Almeida Prado, como o “o mais belo florão da coroa de D. João III”. Enaltecida por Caymmi em versos apoteóticos: “Tudo, na Bahia/ Faz a gente querer bem./ A Bahia tem um jeito/ Que nenhuma terra tem...” Anotada por Gehová de Carvalho, boêmio, poeta, jornalista, criminalista, de “A cidade que não dorme” e de “Cidade feita de dendê”, em resposta à pergunta posta por Sartre (Jean Paul): de que é feita esta Cidade?
Dela que desfruto desde os cueiros até hoje, enquanto envelheço, vendo o passar das horas fatigadas e mortas, dos seus encantos, faltou dizer ser palco a céu aberto. Um imenso anfiteatro nos moldes daqueles da Grécia antiga. Cujos filhos são, sem exceções, artistas de primeira água. Quer os natos no seu chão, quer os adotados.
Quem não é artista neste caldo cultural, proporcionado pela miscigenação entre negros, índios, brancos e o sincretismo dos seus costumes e crenças, não vinga.
 Por isso, uns se voltam à prosa, tantos à poesia. Boa parte a arte cênica, à musical, à pictórica, à escultórica, à cinematográfica. Mesmo os que não põem a mão nessa massa fazem parte desse bolo. Uns consagram-se à cenografia, muitos à produção, à editoria, a realizações culturais. Tantos outros são andróginos, porque orbitam num ou noutro leito desses caminhos. Caminhos acessíveis a todos.
É verdade que vários jamais atingiram o protagonismo. Conformaram-se em servirem de “escadas” – no meio teatral, ator/atriz que alavanca o brilho da personagem principal com suas “deixas” – ou coadjuvaram seus colegas.
Foi a partir dessa visão, por mim experimentada e consolidada ao longo do tempo, que hoje posso atestar o surgimento, dentre os da minha geração, de uma plêaide de talentosos artistas.
Deixando ao largo os não menos importantes, considerados populares: Cuíca de Santo Amaro, A Mulher de Roxo, Lagartixa, Pulga, Jacaré, Samir Queixo de Vidro, detive-me em apreciar aqueles mais compromissados com a erudição e as ideias. Não por preconceito, mas, porque com esses convivi mais amiudadamente do que com os componentes daqueloutra entourage.
Dentre os mais apreciados despontam figuras insubstituíveis, inesquecíveis. Como a lírica poeta Sonia Coutinho, a vanguardista Virgínia Andrade e a talentosa Miriam Fraga. Helena Inês, Nilda Spencer – prima dona do teatro baiano. Glauber Rocha – o inventivo de “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Juarez Paraíso, Mário Cravo Jr., Carlos Bastos, Jenner Augusto, Sante Scaldaferri, Calazans Neto, Caribé e Hansen Bahia, expressões maiores da nossa pintura e escultura. João Ubaldo Ribeiro, Jehová de Carvalho, Nilton de Oliva César, o Pixoxó, Wilson Lins – muitas vezes incorporado em Rubião Braz – Walfrido Morais, Aristóteles Gomes, João Carlos Teixeira Gomes, Ivan Americano da Costa, João Eurico Matta, Joaci Góes, Hélio Contreiras, Milze Soares Eon, Jayme Barbosa, Junot Silveira, Altamirando Requião, Cid Teixeira, Mário Cabral, Jorge Amado, Adroaldo Ribeiro Costa, Berbert de Castro. Nomes que ecoam no imaginário das nossas fantasias. Gente de todas as idades, de todos os credos e sem credos. Cruz credo! Os mais jovens, compromissados com os movimentos MAPA e CEPA, doutrinariamente díspares. Atentos ou partidários das ideologias que ‘mambembeavam’, mundo afora, fazendo as cabeças dos eruditos ou pretensos. Quem haveria de impedi-los?
Os que não ‘curtiam’ d’algumas daquelas opções estavam amarrados, atrelados, devotados ou compromissados com a dança. Herdada dos seus ancestrais que deram vida ao samba de roda, ao maculelê, ao berimbau da capoeira, ao pau elétrico ou guitarra baiana, cujos acordes ganharam o mundo com o trio elétrico e tantos outros ritmos que, de roupagem nova, embalam, ainda hoje, os acordes da musicalidade brasileira. Coisas de sentimento. De jeito e trejeito.
Confesso! Fui um desses. Não sei dos porquês desse gosto! Na família, afora minha mãe, ninguém dançava. Naquela época, ler e escrever eram-me os exercícios mais prazerosos. Mas, a dança constituía-se em fascínio. Tendo Fred Astaire e Gene Kelly como espelhos. Inspiração. 
Adolescente, antes dos dezoito, frequentei o ‘Rumba Dancing’. Nele vi cavaleiros e damas de excepcionais qualidades, como dançarinos. Eu babava ao vê-los bailar!
Encorpado, taludo, entretanto considerado, por muitos, ‘fedelho’, através portas travessas insinuei-me nas noitadas do “Cassino Tabaris”, aplaudindo as apresentações dos ‘ballets’ de Carlan e de Evandro Castro Lima.
Aquele claustro ímpio do burlesco, da revista, repleto de mulheres bonitas provenientes de muitas nacionalidades, de boêmios escrachados e intelectualizados, até líricos, românticos, notívagos, exibicionistas, arrivistas, ricaços, de adolescentes que desejavam experimentar as primícias da libidinagem e o coito, frequentei até o dia do seu lastimável encerramento.
Um passamento imperdoável, que quase fez da Salvador boêmia órfã de pai e mãe, não fora a resistência, em seguir-lhe o mesmo destino, de suas congêneres ou irmãs siamesas: Churrascaria Ide, Anjo Azul, O Abaixadinho, Belvedere, Galeria 19, O Guaciara, O 63, Rio Verde, O Cacique, e tantos outros bares, botequins, ‘puteiros’, onde a vida dava asas aos prazeres sob o lema: divirta-se à larga, pois a vida é curta. 
Foi naquele recinto profuso de formas feminis alucinantes, beleza, alegria, que este contador de memórias, “causos”, peripécias e aventuras viu Mário Príncipe, o mais profissional de todos os ‘cabaretiers’, fadado desde cedo ao exercício dessa profissão, Mário “Balé”, um jovem de classe média e Ankito, barbeiro sem a fama do de Sevilha, evoluírem em passos e gestos elegantes pelo salão de danças, com parceiras formosas e hábeis, proporcionando espetáculos memoráveis aos que os assistiam, tomados de inveja. Sentimento de difícil ocultação, pois marcantemente expresso em suas faces embasbacadas e nada complacentes.
Vendo-os, guiando suas damas com a leveza dos seus passos e portando a elegância dos dândis, tentei emulá-los. Jamais consegui. Faltava-me talento, como me faltou quando estudei piano, estimulado por familiares. Em razão do que desisti. Foi-me impossível resistir ao enfado da obsessão causada no repetir, por horas, a escala musical, do dó ao si e do si ao dó. Embora a imponência e o som do instrumento enlevassem-me. 
Também lá, no epicentro da concupiscência de Salvador, vi cenas explicitas de proxenetismo, homossexualismo, traição, amor nascente, ciúmes. Forjarem-se ódios irremissíveis. Reconciliações amorosas, pessoais, políticas. Ouvi diálogos, tal qual:
 - Quanto é?
- Cem mil réis, afora o champanhe e o valor do aluguel do quarto no ‘castelo’.
- É muito caro!
- ‘Apois’, procure outra. Sem dinheiro, você só merece o orgasmo solitário. Na hora do bem bom contente-se em pensar em mim, peladinha.
Mas, naquele carrossel de sedições de ordem sentimental, humana, havia, também, a solidariedade, o compartilhar, a piedade. Estavam nas mulheres que repartiam seus ganhos com as que nada faturavam. Nos homens que se dispunham em acolher e sustentar as Madalenas. Algumas das quais, fizeram ótimos e felizes casamentos. Na mansidão de todos em aceitar o pouco que lhes cabia, sem abdicarem do divertimento, da conquista, da fornicação.
Pois bem, nessa terra mágica, abrigo de tantas alegrias e artistas, dos bondes e marinetes indo e vindo repletos de passageiros, das reuniões agradáveis nas quais rolavam papos descompromissados, acolhedores, quer nos bares quer nas esquinas e na Rua Chile, nos quais teciámos o amanhã, as conquistas, os amores, quase inexistia a violência. Seus parcos usuários eram conhecidos: Nei Torres ou “Navalhada”, o guarda civil Tarzã, e alguns poucos policiais protegidos pelo fardamento usado. Outros registros sobre o mesmo assunto serão fátuos.
Só a fome gritava entre a gente baiana, aos berros, a sua dor. Além da fome, as iniquidades provocadas pelos sucessivos governos insensíveis aos reclamos do povo. Dissimulados em não avaliarem ou quantificarem as resultantes de suas inações: a tuberculose, o impaludismo, a sífilis, paralisia infantil, coqueluche, e um sem número de outras enfermidades que deformavam e matavam o ser humano.
A pobreza das ações públicas e a demora em tomá-las era tamanha, no sentido de melhorar a vida do povo, que se tornara gritante. Octávio Mangabeira, um dos maiores conhecedores da alma baiana enfatizava: “Na Bahia, o atraso é de tal ordem que quando o mundo se acabar os baianos só saberão cinco dias depois”.
Num mergulho de cinquenta anos aos arquivos da minha memória, que jamais apago, risco ou rabisco, cotejo, tristemente arrepiado, que no albor do século XXI, a minha cidade padece dos mesmos problemas d’antanho, de forma recrudescida. Aditados ao exarcerbamento da violência, sitiando-a inconsequente e brutalmente. Vidas continuam a ser ceifadas pelas mesmas endemias de outrora. Os capitães de areia, tão bem retratados por Jorge Amado, deixaram de ser inofensivos punguistas, reles moleques, assumindo a condição de cheiradores de cola, drogados e ladrões a mão armada. Assassinos frios e cruéis.
De lá pra cá a cidade cresceu, é verdade, à custa da perda da sua inocência, quiçá identidade. Hoje, ninguém conhece ninguém. Somos estranhos até para os vizinhos, que outrora se visitavam e trocavam favores. Acabaram-se os botecos, substituídos pelos clubes do uísque e da cachaça. Os motéis tomaram os lugares dos famosos ‘castelos’. Dos assustados ou arrasta-pés improvisados, ficaram as lembranças. Os bate-papos do entardecer finaram-se. As casas senhoriais, de belos e variados estilos arquitetônicos foram derrubadas dando vez ao aparecimento das moradias verticais, cuja estética é controversa. Os bondes cederam seus espaços ao asfalto. Pejorativamente chamados velharias, foram considerados impróprios à convivência com o progresso. Os seresteiros perderam a voz e o violão. Não têm mais balcões ou sacadas para, sob eles, solfejarem as suas amadas canções de amor em noites de lua cheia. As quermesses, de festas de largo, escafederam-se. O carnaval virou comércio, de poucos. A ingenuidade dos verdadeiros foliões mascarados, fantasiados, indo as ruas em grupos ou em corsos, virou fumaça.  O Natal e a festa de Nosso Senhor do Bonfim, protagonizam o mesmo espírito comercial. Os morros, nas áreas nobres citadinas, foram tomados de assalto pela especulação imobiliária. Transformaram-se em condomínios fechados, a exemplo do morro Ipiranga. A visão da área litorânea de Salvador – Ondina – foi supressa por hotéis portentosos. As casas de candomblés viraram pontos turísticos, perdendo muito do seu imaculado encanto, da sua originalidade, do seu apego à natureza e rituais. Nossos usos e costumes estão indo para o beleléu: o povo deixou de persignar-se ao passar confronte uma igreja, igreja que se omite em dobrar os sinos quando morre um dos seus paroquianos, como de forma contumaz fazia naquela outra quadra de tempo. Não se realizam mais velórios em casas. Não se bebe o morto nem se cantam “incelências” durante seu enterro. As novenas e trezenas de Sto. Antônio foram abandonadas, nas residências. Quantas saudades retenho do último dia delas: da paçoca, do bolo de aipim, da canjica mole e de cortar, do amendoim torrado e cozido, dos licores de jenipapo, maracujá, leite, passas, ameixas, servidos aos convivas, antes e depois das celebrações religiosas e do arrasta-pés que se seguia a elas. Da mesma forma, das dedicadas a Santa Bárbara, Cosme e Damião, São João, São Pedro e Reis Magos. Na de São João, desapareceram o pular a fogueira, os fogos. Na dos Reis Magos, o desfile das pastorinhas – nos Terno de Reis, na Lapinha – onde era obrigatório o uso da calça culote, paletó almofadinha. Tudo isso já era e não há de voltar. Embora aqui fique o registro.
Hão de pensar os que leram esta crônica até aqui, que sou um incorrigível saudosista. Um inadaptável aos tempos atuais. Nada disso. Sou um homem atual, apesar da idade. Gosto do conforto que a modernidade nos traz. O ar condicionado, a televisão de alta definição, do micro-ondas, do home-theater, do computador, da internet, e-mails, do twiter, dos progressos médicos que me fizeram chegar aos setenta e três anos, da geração de crianças que sabe mais que os pais e os arguem. Dos jovens que se emancipam, prematuramente, da família e alcançam sucesso na carreira escolhida. Da mulher que venceu a luta por seus direitos, galgando postos diretivos e relevantes, jamais concebidos. Dos homossexuais que defendem suas opções com unhas, dentes e coragem. Só não concordo amigos, com o desleixo e a despreocupação com o passado, nos seus aspectos positivos. Com nossos governantes que continuam, com outra roupagem a exercitarem os mesmos ritos daqueles que hoje são sarcasticamente denominados coronéis: as promessas vãs, o engodo, o esquecimento, o silêncio nas horas cruciais para dar as informações ao povo sobre o quanto lhes foi requerido. Ou, falando muito e dizendo mal e pouco, utilizando-se do velho populismo e demagogia: ‘minha mãe nasceu analfabeta’, ‘quero tirar o povo da merda, ´’nunca dantes na história deste país...’ Promovendo inaugurações de obras fantasmas, fantoches ou superfaturadas – um baú de ouro, para os que desejam enricar facilmente, por serem amigos do rei. Numa deslavada recorrência aos discursos pronunciados em priscas eras.
Sou um citadino confesso. Fora de Salvador, vivo como pato sem água para nadar. Arredio e banzeiro. Por isso, e diante das considerações expressas, doe-me constatar que nossa terra continua doente. Muito doente. E, de recaída em recaída, está perdendo a sua pródiga humanidade, sua alma, seus costumes ancestrais. Mais, seu povo descrente, está sem animo, prumo, sem a afabilidade que moldava sua figura. Pudera! Como um povo pode ser feliz, se lhe é cassado o direito de educar-se, gozar saúde, empregar-se, ter moradia decente, até mesmo esperanças?
Malditos os que tratam assim a terra mãe do Brasil e o seu povo. Para esses, o meu repúdio e acredito de toda a nossa comunidade, repúdio condensado nas sábias palavras de Octávio Mangabeira: ‘Amaldiçoada a iniquidade, inclusive a pior de todas que é a iniquidade social!’
Salvador, abril de 2011.         

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