quinta-feira, 11 de julho de 2013

LIVRO: TANTO NO CÉU QUANTO NA TERRA


NR/ Graças ao autor, coincidentemente patrono deste Blog, Luiz Carlos Facó, hoje aqui postamos, por inteiro, o livro de sua autoria sob o título Tanto no Céu Quanto na Terra – original 1ª primeira edição. Trata-se de uma peça teatral. Escrita em 2004 e encenada em 2005, por duas semanas, pelo grupo teatral Interlúdio. Dado o sucesso feito então, a peça foi editada e lançada em 2011. Hoje, conta com uma segunda edição e já se encontra em preparo uma terceira. Esperamos que entre os seguidores deste Blog ela ganhe a mesma notoriedade e referências elogiosas conquistadas entre os leitores.     

 

 

NOTA DO AUTOR




 

Desde quando alfabetizado, apaixonei-me pelo mundo dos livros. Suas ilustrações levavam-me aos textos, e esses às histórias ali narradas. A empolgação do quanto fiquei tomado de emoção ao ler a primeira delas e compreendê-la, ninguém poderá conceber...


Daí por diante, fixei-me em escrever. Queria contar minhas próprias histórias, imaginárias. E o fiz de enxurrada, logo transformadas em caudaloso rio, através de poesias e epigramas, muitas delas publicadas na página cultural do Jornal A Tarde, graças ao empenho do meu grande amigo, o jornalista Aristóteles Gomes, que contribuiu para que, em 1957, eu as editasse num livro, sob o título de Gotas D’Água.


Passar da poesia à prosa foi um pulo. E essa, infortunadamente, canibalizou os meus versos. Só de quando em quando os reconheço em alguma crônica, recheada de lirismo, por mim assinada. Tal qual vislumbro, nas páginas de Os Sertões, versos em dodecassílabos de Euclides e na obra de Jorge Amado uma profusão deles, de extremadas concisão e beleza. Sem falar de outros autores que cometem esses ensandecidos, mas geniais atos criativos.

 

Disse Coleridge: “A poesia é emoção recolhida na tranquilidade.” Talvez por isso, pela intranquilidade que a vida nos reserva e a que nos remete, eu a tenha perdido, e não pela razão apontada, como mera desculpa.


Na verdade, jamais imaginei escrever para o teatro, embora dessa arte seja um fervoroso admirador e conhecedor da sua história.


Sentia, sim, exasperante comichão empurrando-me para criar romances. Malgrado minha intenção em fazê-los nascer, resisti por largo tempo a submeter-me a tal desejo. Negaceava, não por fingimento, a mim mesmo, condições de concebê-los. Ora por sentir-me sem a criatividade necessária à execução de tal empresa, ora por medo. Medo da crítica literária, capaz e esperta no descobrir mais os defeitos do que os valores neles contidos. Medo das admoestações a que fatalmente seria submetido caso o meu trabalho fosse rejeitado. Medo de fracassar na construção das tramas, no traçar o perfil psicológico das personagens, na descrição dos eventos. Medo de não encontrar a linguagem apropriada para situá-los. Medo, também, pelo fato de não saber dosar o tom da narração, pela incapacidade de discernir se seria possível atingir vocês, meus assíduos leitores, que tanto me estimulam. Medo, enfim por ignorar como conter as minhas próprias emoções, levando-me a alongar situações que demandariam, no mínimo, parcimônia e síntese. Essa conspiração de medos foi a causa principal para que a feitura do romance fosse procrastinada por anos, embora eu tivesse uma ótima e verdadeira história, na qual se entrelaçam amor, traição, preconceitos, vividos em Salvador, cidade considerada paradigma da alma brasileira, terra do Salvador, do Senhor do Bonfim e de todos os Orixás, a um só tempo, mística e religiosa, senhora de primazias, de caráter único, onde não há conflitos étnicos de monta, mas uma miscigenação mansa e natural de todas as etnias. Muitas vezes, irritantemente preconceituosa. Noutras, de um liberalismo escancarado. Dona de todas as belezas naturais, e na qual o sincretismo religioso não é havido como pecado, mas como virtude. Senhora das procissões religiosas. Dona de trezentas e sessenta e cinco igrejas (lugar comum). Dos terreiros de candomblé: da Casa Branca, do Gantois, do Ilê-Opô-Afonjá. Dos ebós nas encruzilhadas. De costumes arraigados. Simultaneamente, do uso do patuá e da cruz, símbolos de fé de religiões que se contrapõem. Das festas de largo. Das lavagens das igrejas com água-de-cheiro. Dos saveiros singrando a Baía de Todos os Santos, em busca de todos os ventos para aportarem em todos os cantos, com ou sem ventos. Generosa, dando de beber do seu leite aos filhos de suas entranhas e aos que adota, sem diferençar uns dos outros. Mas, como todas as demais cidades que conheço, com ranços e pecadilhos. Saravá, Olorum!

 

Foi esse somatório, uma história envolvente, personagens instigantes, locação – locução mais apropriada à cinematografia – majestosa, o causador do rompimento das muralhas protetoras daquela empedernida predisposição, que me levou a aceitar trilhar caminhos que, medrosamente, postergava enfrentar. Numa indébita intromissão em seara alheia, cujo mestre do gênero, no século XX, entre nós, na minha opinião – afora Jorge Amado, “hors concurs” – foi Josué de Souza Montello, criador dos Tambores de São Luiz, dentre tantas (suas) obras-primas traduzidas para o inglês, francês, espanhol, alemão e sueco.


E o meu romance nasceu sob intenso trabalho – a transpiração no caso, é muito mais importante do que a inspiração – Amor entre Pó-de-arroz e Batom, embora, até hoje ele permaneça anônimo, por razões que aqui não cabe sejam discutidas.  À exceção de dois amigos queridos que o leram: o professor de língua portuguesa José Lúcio Farias e um meu ex-aluno, cuja identidade não deseja revelada. Por puro esnobismo – desculpe-me, companheiro – ou pela excessiva modéstia que lhe é peculiar. Dou mais crédito à segunda hipótese.

Desse amigo, um profundo conhecedor da arte teatral, foi que recebi instigante proposta, em 2004: “Por que você não escreve uma peça teatral? Tenho um amigo que está à procura de um texto para encená-lo, como exercício de final de curso do próximo ano, por seus alunos do grupo Interlúdio. Com seus conhecimentos sobre a matéria, não será difícil”.

Creiam! minha negativa foi um abrupto, enfático e redondo não, sem outras considerações. Contudo, a insistência dele nos dias que se seguiram parecia a enfatizada no brocardo popular: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Acompanhada de mil razões e eloquentes argumentos, quase uma imposição. Mesmo assim, eu resistia e contra-argumentava expondo meus pontos de vista, até quando ele me disse: “O que eu estou lhe propondo é um desafio à sua capacidade intelectual. Qualquer recusa a esse convite é correr pela tangente, desistir antes de tentar.” E continuava: “Do que adiantaram suas pesquisas sobre o teatro, lendo a história do Egito? Da Grécia, onde nasceram o ditirambo, procissões em homenagem a Dionísio, deus do vinho, evoluídas para as representações teatrais – tragédias e comédias? Você se engolfar lendo sobre os tragediógrafos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes? Acerca de Aristófanes, considerado o maior comediógrafo e comediante grego? De que valeram suas admirações, surpresas, ao percorrer a era elizabetana e a do seu sucessor Jaime I. A soberana Elizabeth – culta a ponto de estimular a literatura, pintura, música e demais artes – sobremodo fazendo florescer o teatro, e o seu sucessor apoiando, enfatizando, muito firmemente, a feliz iniciativa? Tampouco, saber que foi Robert Greene, dramaturgo, em fase de decadência e moribundo, ao escrever uma carta contra William Shakespeare, na qual há um trocadilho com o seu nome, shake scene, agita cenas, que o revelou para o mundo literário? Em certificar-se de que William jamais experimentou um fracasso? Mesmo quando atuava no teatro Rose e bem mais tarde no Globe. Ir a Portugal e pesquisar a história do teatro de cordel? E que os jesuítas usaram do teatro, entre os silvícolas, para aliciá-los ao cristianismo, dando assim início a essa arte no Brasil? Quais os frutos gerados em ler tantos teatrólogos estrangeiros e nacionais como Samuel Beckett, Tennesse Williams, Sheakespeare, Dumas pai, Bernard Shaw, Nelson Rodrigues, Pedro Bloch, Giamfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos e uma infinidade de outros? Assistir a grandes espetáculos e ter presenciado às apresentações irrepreensíveis de Procópio Ferreira, Cacilda Becker, Dulcina de Morais, Rodolfo Mayer, Fernanda Montenegro, Paulo Autran?  Ter sido amigo de Martim Gonçalves, de Nilda Spencer, Sonia dos Humildes, Yumara Rodrigues e admirar Othon Bastos, Marta Overbeck e tantos outros? Acompanhar a evolução desse segmento artístico na Bahia, com a inauguração do Teatro Santo Antonio e o erguimento do Gamboa? Acho que nada. Para mim você virou um frouxo, dono de uma covardia que eu não conhecia. Lamento tê-lo importunado com o pedido.”

Ao cabo dessa exortação, não suportei. Todas as minhas resistências foram exauridas e sucumbiram como a Linha Maginot, construída pelos franceses, ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e a Itália, antes da 2ª Guerra Mundial, que se desmantelaram diante do primeiro ataque, mais incisivo, das tropas tedescas.

Constrangido, aceitei a incumbência, aditada à exigência de dois meses para cumpri-la. Em contraposição fui incisivo: vou executá-la sem interferências, palpites e orientações. Se errar, seja o que Deus quiser...

No afã de cumprir o acordo, resolvi escrever uma peça de costumes. Uma sátira. Uma comédia. No entanto, as ideias não me vinham. Rareavam. Até quando, sobejado pela sorte, deparei com as notícias sobre o mensalão através da imprensa, e, delas disse: eis aí o tema propício ao meu intento. Expostas em manchetes, entrevistas, quer dos denunciadores quer dos denunciados. Uma mixórdia em que não distinguíamos os mocinhos dos bandidos, numa mistura igual à farofa que acompanha o peru do Natal, pois dela participavam ministros de Estado, deputados federais, empresários, banqueiros, publicitários, empreiteiros, arrivistas, doleiros, arapongas, esposas de autoridades, prostitutas e o “escambau a quatro”. Um verdadeiro festival do que havia de mais desprezível na sociedade brasileira.

Tenham certeza amigos, foi o texto mais fácil que já escrevi. Os diálogos de que precisava estavam nas desculpas dos acusados ou depoentes, publicadas pelos jornais e revistas de circulação nacional, nas rádios e canais de televisões. Meus méritos, acaso existam, foram criar as personagens e ambientar as ações.

Esta nota explicativa, que raramente encontra paralelo entre os autores nacionais, deve-se ao fato de desejar esclarecer aos leitores que tudo contido neste trabalho é de domínio público. Não tem nada de original ou inédito. Fiz na verdade o que chamo uma comédia de “maus costumes”, sem apelar a eles. Nela, não aparece nenhum virtuosismo do autor, a não ser seu empenho em defender a ética, a honestidade, a liberdade, a probidade e os bons costumes, princípios sem os quais jamais teremos uma sociedade livre e em que todos tenham iguais direitos.

Lembro-me de que José de Alencar, na segunda edição do romance Diva, inseriu uma nota explicativa acerca dos seus devaneios na construção daquele título. Não por insegurança ou para falar sobre o óbvio, como falei até aqui e que os meus leitores entenderão, mas do alto do pódio que ocupava como grande literato. Também dava conta e defendia o emprego, naquele trabalho, de inúmeros vocábulos por ele criados, dizendo-os consistentes e pertinentes, esperando no futuro ver tais neologismos acolhidos pelos dicionaristas – o que na verdade aconteceu – e esgarçando a acusação de ser francófilo, como o definiam seus críticos.


Contrariamente ao do autor de Iracema, o meu apontamento não elege nenhum feito, não discute nenhum acerto, não pontifica contribuições à língua portuguesa. Ele, simplesmente, veste-se com as humildes roupas das minhas desculpas antecipadas devidas aos leitores, sobremodo àqueles que se dispuserem a conhecer uma história onde os princípios morais são os verdadeiros protagonistas dos episódios descritos e narrados.


Janeiro de 2011.

Luiz Carlos Facó

 

  
     






LUIZ CARLOS FACÓ















TANTO NO CÉU

QUANTO

NA

TERRA

Peça em dois atos


















Salvador-2011


PERSONAGENS















O narrador, Carybé, pintor e muralista argentino radicado na Bahia, Mirabeau Sampaio (pintor de Madonas), Norma sua esposa, Quincas Berro D’Água, funcionário público, personagem de Jorge Amado, Camafeu de Oxossi, comerciante, famoso capoeirista baiano e três dos seus discípulos. Jorge Amado, Pierre Verger; fotografo francês, adepto do candomblé, conhecido no meio como Oju Obá, Essá Elemexó, Frida Kahlo, pintora mexicana. Mãe Menininha do Gantois, equédes ou filhas-de-santo, alabês, tocadores de atabaques – rumpi, rum e o lê – ogãs ou oficiantes, ialorixás e babalorixás – mães e pais de santo – figurantes, dançarinos.  































CENÁRIO

Um céu de azul radioso. Poeira de nuvens (gelo seco). Em espaço, não muito amplo, decorado monasticamente (um sofá, algumas cadeiras, um banquinho e um cavalete sustentando um quadro inacabado – uma madona –, uma mesa na qual repousam paletas, espátulas, tintas, pinceis e uma espécie de telefone. Nas paredes, quase nuas aparecem fixados esboços do pintor e obras de seus colegas contemporâneos. O sofá é ocupado por Mirabeau Sampaio e Carybé (artistas baianos, um nativo, o outro adotado), que conversam descontraidamente.
Ao lado deles, numa cadeira, assenta-se Norma, esposa de Mirabeau, entretida em fazer uma manta de tricô, mas com os ouvidos antenados à conversa dos dois amigos.
Antes da abertura do pano de boca soam as batidas do bastão de Molière





















.

















PRIMEIRO ATO




















Tanto no céu quanto na terra

Luiz Carlos Facó



NARRADOR: Esta história se passa no Céu, em território destinado a oriundos brasileiros natos ou adotivos. Qualquer semelhança com fatos reais acontecidos na Terra, particularmente no Brasil, é fruto de mera coincidência.
Vamos a ela em dois atos.

Abre-se a cortina.

CARYBÉ (com sotaque argênteo-baiano) – Compadre Mirabeau, o céu está uma merda. Parece até a cidade do Salvador no fim do carnaval, sem a zoeira dos trios-elétricos e afoxés. Uma ressaca só. A preguiça se abate sobre todas as cabeças. Resultado do contágio.  É de fazer dó.

NORMA (levantando a cabeça e dirigindo-se a Carybé) Não diga essa palavra – preguiça –, compadre. Não sabe que é proibido pronunciá-la por aqui? Eles são onipresentes, ouvem tudo o que dizemos e, às vezes, ouvem mal. Convém, portanto, evitá-la, já que designa um dos sete pecados capitais. Se um dia você precisar de uma certidão negativa de pecados para resolver qualquer pendência, eles certamente a negarão.

CARIBÉ (retomando a palavra, com tom de indignação) – Às favas com tanta frescura. Já não aguento mais tais arrochos. (Voltando à naturalidade) – Mas, retomando o quanto dizia, este pedaço do céu está uma pasmaceira de fazer dó. A Sinfônica Celeste terminou sua temporada. Nos teatros, não existem novos lançamentos, bons espetáculos e muito menos o surgimento de jovens talentos. Só apresentam as peças de sempre. Dos mesmos autores: Molière, La Fontaine, Shakespeare. Os vaudevilles foram censurados depois que algumas vedetes importaram uns biquinis brasileiros para neles se exibirem. Fotografias de bundas femininas estão proibidas por ato legislativo celeste. Adeus bundas nossas de cada instante! As televisões só mostram a vida dos santos. Um porre, além de ouvirmos “colhudas” pra cacete! Retretas, nem pensar. As praças celestes estão vazias. De gente, música e alegria. Nem um afoxé, nem os filhos de Gandhi têm saído às ruas. Até os candomblés deixaram de bater: Mãe Menininha do Gantois, Mãe Creusa e as demais ialorixás fecharam seus barracões. Nada de festas, xirês. Nos bares não se vê ninguém. Não mais que quatro ou cinco bêbados e olhe lá. Ainda por cima, acredito que, só de sacanagem,
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Luiz Carlos Facó


Austregésilo de Athayde, na Arcádia Celeste, réplica da Academia Brasileira de Letras, insiste em promover reuniões insípidas, regadas a chás e bolinhos intragáveis, tratando-nos como se fôssemos lordes ingleses.

MIRABEAU (calmo e disposto ao diálogo) – É a crise, meu amigo, que assola esta parte do céu. Os juros estão exorbitantes. Os supermercados entregues às moscas por causa dos preços extorsivos que cobram pelos alimentos. Soube que os comerciantes já astuciaram vender comida pronta (self-service) a quilo, para aumentarem a saída das mercadorias. O pão-nosso-de-cada-dia está cada vez mais difícil. Nossos veículos, os “aeromóveis”, estão parados nas garagens. O combustível, o ozônio, subiu de preço duas vezes em um mês. Já pensam na utilização de veículos alternativos, os bi ou “triflexes”. A cachaça importada lá da Terra, do nosso Brasil, aqui é vendida mais cara que uísque envelhecido. Não vê como andam rindo Clemente Mariani, Fernando Góes e Miguel Calmon?

CARYBÉ – Estão com as burras cheias. O povo que se foda.

NORMA – Que é isso, Carybé? Deixe de indecências. A qualquer hora você será chamado ao Tribunal dos Pecados para explicações. Olhe bem, se for condenado, a pena é grande. No mínimo, você passará sete dias em jejum e será obrigado a rezar, nesse período, cinquenta terços diários. E o terço agora tem mais um mistério.

CARYBÉ (com riso de mofa) – Jejum? Já faço todos os dias. Meus quadros não vendem. Meus capoeiristas de dorsos nus e minhas mulatas de roupas coladas ao corpo são considerados sensuais demais. Vivo na mais completa pindaíba, liso e duro que nem pau de jequitibá – madeira de dar em doido. Outro dia, no Banco da Bahia, procurei o Fernando Góes, que se diz meu amigo, para fazer um empréstimo pessoal. Sabe quanto ele queria de juros? Quinze por cento ao mês. Vejam bem, falar aqui em preguiça é pecado, mas a prática da agiotagem é considerada normal.

MIRABEAU – Os meus vendem. Por preço vil, é verdade. Minhas madonas ainda fazem sucesso. Mas só conseguem bons preços por seus trabalhos os artistas do infinito desenvolvido: Da Vinci, Rafael, Sandro Boticelli. Os quadros deles são disputados na butique Daslu Celestial por milhões de patacas celestinas. Dólar, euro, libra esterlina e real aqui não valem nada. Os meus quadros e o dos pintores deste infinito emergente
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alcançam, no máximo, duas centenas de patacas, quando muito. Tentei pintar outros Santos visando obter maiores lucros. Mas aqui, para estas bandas, só veem santos meia-solas. São Silva, São Santos, São Bispo, São Rufino, São Torquato e outros menos conhecidos. E quando os instei, mesmo em sendo desconhecidos, nada “famosos”, a pousar para minhas pinturas, cobraram-me o que não posso pagar. Os Santos famosos, esses nem se dão ao desplante de pôr os pés por aqui. Não peregrinam por estas bandas. Aderiram à economia de mercado, ao livre comércio. Vivem todos onde corre o vil metal. Desfilam em veículos de luxo, blindados, frequentam a Cote d’Azur, Biarritz, Cancun e outros balneários elegantes universo afora. Cassinos, teatros e os “cambau”. Bebem os vinhos mais caros, fumam charutos cubanos, vestem roupas de grife. Tudo isso depois que o Partido dos Traquinas, o PT, que reúne hostes de peraltas, aquele da estrela vermelha, assumiu o poder, e, sob a benção de São Lula, São Delúbio, São Valério, São Gushiken e São Silvinho, instalou o propinoduto celeste. Eles agora têm dinheiro que não acaba mais.

NORMA – Cala a boca Mirabeau. Eta homem boquirroto! Você termina parando no purgatório. Lá eles confiscam até seus pinceis. E depois, babau...

CARYBÉ – Quem diria que um dia eu veria Santo corrupto, sem ética, fazendo caixa dois, pagando custos de campanha com dinheiro guardado em bancos no exterior! Dizem as más línguas que quem trouxe o know how dessas “trambicagens” foi um tal de Half, Ralf... não, isso é inglês, em português é mesmo Meio Barquete, figura recém-chegada de Ribeirão Preto. 

(Nesse instante, ouvem-se palmas e uma voz gritando do lado de fora)

- Ô do céu!

NORMA – Ô de fora! Vá entrando, a porta está aberta.

(No vão da porta aparece um senhor todo de branco com sorriso largo nos lábios. È Quincas Berro d’Água)



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Luiz Carlos Facó


QUINCAS – Vim para ver dois irmãos e vejo três. Quanta felicidade! Por falar em felicidade, irmãzinha Norma, sirva-me uma daquelas talagadas generosas da melhor branquinha da sua adega. Sem esnobismo, traga-me a
cachaça mais porreta da casa. O seu Quincas Berro d’Água está com a garganta seca e a língua estalando.

(Norma levanta-se e vai apanhar um copo e a garrafa da caninha. Enquanto isso a confraternização entre os amigos continua)

MIRABEAU – O que tem feito amigo? Quais as novidades?

CARYBÉ – Conte-nos como vai o Jorge Amado. Tem visto ele, não tem? Aquele descobridor de mulheres fogosas, dengosas, sestrosas, de ancas largas e seios fartos, é incapaz de nos procurar. O “sacana”, depois que chegou aqui, só vive metido com intelectuais de “bosta”.

QUINCAS – Eia! Vá com calma camarada. O Jorge é o mesmo. Incapaz de desprezar um amigo, um irmão. Chegou animadão. Tratou logo de escrever. Exercer seu ganha-pão, reavivar sua paixão. Fez um romance intitulado os Pastores do Céu. Só porque o Cabo Martim e o Curió, aquelas mesmas personagens dos Pastores da Noite, comeram no novo romance, uma freirinha catita que estava a fim deles, o Céu veio abaixo. Ao nível da Terra.

(Quincas pigarreia e é instado por Mirabeau)

MIRABEAU – Deixe de pigarrear e conte logo tudo, seu goela-seca.

(Quincas serve-se da bebida trazida por Norma, derrama um pouco da aguardente no chão e, com a maior fleuma, volta-se aos amigos).

QUINCAS – Este bocado é do santo. Vamos devagar, que o andor é pesado e o santo é de barro. Conto tudo, mas com calma...

(Quincas enche novamente o copo com a branquinha e, de um só gole, sorve-a)



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QUINCAS – Esta é da boa mesmo. Deve ser lá de Santo Amaro, Ouro Preto ou de Mariana, lá das bandas das Minas Gerais. Pois bem, como ia dizendo, o Jorge está “retado” porque proibiram a circulação do seu livro só por causa daquelas “trepadinhas” sem consequências. Lamenta-se, com razão, porque os seus livros sempre foram o oásis do pleno exercício da liberdade. Ademais, anda com uma saudade enorme do “Partidão”, o da sua juventude. Disse-me ele, inda agorinha, fazendo coro ao zum-zum-zum do povo e ao que se diz à boca pequena, aquele partido era puro, idealista. O que hoje governa este pedaço do céu é a sua antítese. Uma vergonha. Eu digo, uma esculhambação, uma excrescência.

 (Quincas toma outro gole da branquinha com avidez, ação finalizada por um ruidoso estalido da língua)

MIRABEAU – Não entendo a sua irritação, meu amigo. Há bem pouco tempo, você proclamava a necessidade de ter um Santo sindicalista na presidência. Dizia: ele cumprirá as promessas feitas em campanhas. É Santo de fé, irmão camarada. Que tudo ia melhorar. Principalmente a educação e a saúde. E agora você vem se opondo a tudo quanto abraçava e cantava, em prosa e verso.

QUINCAS – Porque só agora entendi que Santo de casa não faz milagres. Que seja assim; arrependimento sempre é bom. Antes tarde do que nunca...

(Quincas emborca o copo, novamente, empurra goela abaixo o precioso líquido, repete o estalido anterior e, dirigindo-se a Carybé, arremata seu pensamento)

QUINCAS – Já notou, Carybé, como hoje estou tinindo nos provérbios?

CARYBÉ – Você está tão bom como sempre, ou melhor. Só lamentarei quando a cachaça terminar ou quando você for tomado por ela.

QUINCAS – Vou lhes contar a maior. Acordei, tempos atrás, depois de um grande porre, com uma vontade danada de ir ao Haiti. Nada melhor do que conhecer outros povos. Mas a escolha não foi aleatória, queria ver os nossos orgulhosos militares e saber como eles estão se saindo no exercício da missão de paz que a ONU lhes confiou. Fui ao PCC...

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NORMA – Que é isso? É um novo partido político?

QUINCAS – Qual o quê, comadre! Não é sigla partidária, nem o famigerado Primeiro Comando da Capital das nossas lembranças terrenas. É a Polícia Celestial de Costumes. Réplica da Polícia Federal, lá de baixo. Pois então. Fui tirar meu passaporte. Sabe o que os burocratas de lá me exigiram para conceder-me o documento? Nada mais, nada menos que a apresentação da minha certidão de óbito. Ah! Não aguentei. Explodi. Exigir logo de mim, a quem o compadre Jorge Amado concedeu três mortes: a física, a social, a fantástica, e dos demais que estão aqui, atestado de óbito, é muita sacanagem. Depois veio a explicação: tudo se resolve com o pagamento de três mil patacas, à vista. Corrupção pura, seu mano.


CARYBÉ – Outro dia, o Gláuber Rocha me contou que está impedido de filmar aqui só porque produziu lá embaixo, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Por enquanto, com recursos provenientes dos fundos de incentivo à cultura. O Raul Seixas está censurado em vista das regravações aqui de Tá todo mundo louco e Maluco Beleza. Os políticos oposicionistas daqui, todos Santos também, quando apontam irregularidades, são chamados de denunciadores vazios. Os órgãos de imprensa deste infinito celeste, que tanto se empenharam na eleição dos que ai estão nos comandando, quando divulgam as falcatruas detectadas deste governo, são acintosamente tachados de sem-credibilidade. As revistas de maior tiragem estão todas nesse rol. Não se salvam nem as Epokhe, Id Est, Examen e Vide, que lá no velho Ceará é chamada de Óia. Todas com título em grego e latim o que é demais para nós aturarmos.

MIRABEAU – e do comércio de indulgências plenas, vocês já ouviram falar? É um descalabro...

NORMA – Mirabeau, Mirabeau, você não se emenda? Não se meta em camisa de onze varas, como diz o Quincas. O purgatório não é brincadeira. Se nós estivermos grampeados pela escuta celeste, não haverá escapatória. Você será encarcerado naquela cafua, sem dó nem piedade, e não adianta prometer nada aos Santos juízes para escapar do castigo. Deles dizem: são incorruptíveis e fazem o que bem entendem. Estão nos mesmos tribunais desde os tempos da Inquisição. São como os magistrados da Terra que possuem as prerrogativas da inamovibilidade, irredutibilidade dos
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Luiz Carlos Facó


vencimentos e vitaliciedade. Quando flagrados vendendo sentenças ou praticando outros crimes, são punidos com aposentadoria compulsória com direito a remuneração integral.

MIRABEAU – Esta é mais uma empulhação. Acho que remonta à época do dilúvio. Mesmo em sendo um assunto sério para discutirmos, deixemos isso para depois. É importante que eu comente o caso das indulgências. Pois bem. Tenho lido e visto nos mais diferentes canais da TVcéu, casos de corrupção explícita. Deputados celestes afirmam ter recebido pagamentos do propinoduto: os famosos mensalões. Justificam que eram contribuições para fazer face aos débitos de suas campanhas eleitorais e da presidencial. A esses desvios de conduta, ao invés de nominá-los como crime eleitoral, arranjaram um eufemismo para defini-los. Agora, os tratam como subsídios não contabilizados. E o Santo presidente, São Lula, admite-os, concedendo aos faltosos indulgências plenas, sob alegação de que essa era uma prática corriqueira na política celestial. Parece até que já instituíram o balcão de vendas de tais indulgências. Arre! Não suporto tanta insensatez.

(O telecéu, cujo toque se assemelha o dobrar de sinos de igrejas, desperta com estridência).

MIRABEAU – Corre, Norma, atenda logo ao telecéu, essa porcaria barulhenta que mais parece sino de igreja anunciando chegada de defunto fresco. Se for algum chato me procurando, diga que saí.

(Atendendo ao telecéu).

NORMA – Alô... Camafeu de Oxóssi?... Como vai?... Fale mais alto, acho que está havendo alguma interferência de nuvens carregadas ou de meteoritos... Sim... Sim... Não demorem...Ficaremos esperando por vocês.

(Desligando o telecéu e voltando-se para os circunstantes).

NORMA – Nosso Camafeu vem aí com três afilhados dele. São novos alunos, capoeiristas de sua escola. Mas antes que ele chegue quero contar com uma novidade para vocês. É uma daquelas que se espalhou às caladas, mas ganhou força, graças ao boca-a-boca. Cheguem mais para perto, não vou me arriscar a falar alto. Dizem que, há três anos, aqui chegou, precedida de fama duvidosa, uma senhora que se dizia promotora
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Luiz Carlos Facó


de eventos. Trazia como credencial o fato de ter trabalhado com Jeany Mary Córner, aquela cearense que ganhou fama promovendo festas para políticos, banqueiros e empresários lá na Terra, em Brasília. Pois bem, aquela senhora aqui logo apelidada de Madame Periquita – porque solta penas por onde passa – fez-se amiga de pessoas influentes no governo e começou a exercer sua profissão.

QUINCAS – Quer dizer: praticar a caftinagem, o lenocínio. Conheço bem essas madames de longe.

NORMA – A princípio, ela realizou festas modestas. Com o passar do tempo, apoiada pelos Santos, promoveu verdadeiras bacanais, orgias. Coisas de Sodoma e Gomorra. Aluga dois ou três andares dos melhores hotéis da cidade, convida toda a Santidade e as comemorações se prolongam madrugada adentro. Na última, mandou vir, numa espaçonave celeste, particular, diretamente de São Paulo, mais de vinte e cinco modelos, das mais bonitas e boazudas.

QUINCAS – Ou seja: putas! Não é comadre?

NORMA – Não me interrompa, homem de Deus... E essa senhora ainda teve a petulância de afirmar à imprensa que sua prestação de serviço é paga à vista, justificando: “vendo um produto que ninguém entrega fiado, porque não tem como tomar de volta”. Com esse modus operandi, está milionária.

QUINCAS – Não é que ela tem razão? Esse tipo de mercadoria, depois de usada, perde o selo de qualidade e, sem esse selo, não tem cliente que queira pagar um valor mais alto ou um preço justo. Tem que ser mesmo pagamento antecipado. Senão é calote na certa. Estou por dentro.

MIRABEAU – Agora caiu a ficha. Li outro dia duas notícias interessantes. Uma dizia: a Secretaria das Vocações anda abarrotada de processos. Existem quase mil petições de Santos pedindo dispensa dos votos de castidade. A outra divulgava: a venda de viagra cresce, no céu, a índices geométricos.

CARYBÉ – Pois é, tem Santo trepando adoidado. Perdendo a cabeça ou esfolando a mesma. Alguns tinham duzentos, trezentos ou mais anos que não davam uma fornicada. Estão indo à forra depois dessa abstinência tão longa. Vivem se lambuzando de tanto comer mel.

QUINCAS – Comer mel? Conheço isso por outro nome...

(Quando Quincas tentava abrir à boca para complementar o seu pensamento, foi abruptamente interrompido).

NORMA – Basta. Não diga mais nada. Todos aqui sabem como se chama aquilo.

CARYBÉ – Um desses Santos, se não me engano, São Buratti, abandonou a família e fugiu com uma das afilhadas de madame Periquita. O que não faz mulher bonita e gostosa, hem?! Outro dia um cirurgião plástico daqui, famoso e competente, me confidenciou que seus clientes do sexo masculino, todos Santos, dobraram ou triplicaram, á procura, sobremodo, de lipoaspiração para a retirada da gordura da barriga, pneus e implantação de prótese peniana. Querem se empetecar e rejuvenescer de qualquer forma.

QUINCAS – Não sei por que esses fazedores de milagres não trabalham usando seus poderes em benefício pessoal. Um milagrezinho à-toa e ei-los em perfeita forma! Prontos para o que der e vier. Para qualquer bate-bola. Peladas não faltam. Até as freiras e noviças já ensaiaram um protesto porque madame Periquita, segundo a voz do povo, as discrimina. Não deixam que elas façam parte desse time de estrelas. Elas, com vantagem sobre aquelas, porque se dizem virgens. Mercadoria apreciável e rara, nos dias atuais.

MIRABEAU – Os Santos não podem promover ou interceder por tais milagres. A lei celestial, em tais casos, proíbe o uso desse privilégio em vantagem própria. Quanto a esse veneno, acerca das madres e noviças, é invenção sua, canalha.

NORMA – Não me conformo com vocês. Botam todos os Santos no mesmo balaio. Saibam que muitos não se corromperam. São Francisco de Assis continua com a humildade de sempre. São José, além de se apegar à discrição, jamais deixou de exercer sua profissão de marceneiro. Santo Antônio persegue seus princípios e aprimora a sua fé. São Judas Tadeu atende às causas impossíveis. São Jorge guerreia, permanentemente, os dragões da maldade. São Pedro, sempre bondoso, mantêm sua caminhada evangelizadora. São João Batista promove batizados, apagando o pecado original.
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QUINCAS – E as Santas, comadre?

NORMA – Essas, nada mudaram. Estão cotidianamente aprimorando as suas virtudes. Dedicadas ao exercício pleno da fé. Assusta-me que lá na Terra, Dilma Rousself, titular do Ministério da Minas e Energia, já se proclame Santa e a sua secretária, Erenice Guerra, havida como seu braço direito, aspire sua beatificação sumária. Enfim, lá em baixo tudo é possível...

QUINCAS – Quer dizer que os Santos de meia-tigela, os “cagados”, os feitos nas coxas foram os que se destrambelharam?

NORMA – Exatamente. Só agem mal os que chegaram aqui com suas deformações de caráter. Os vindos honestos continuam limpos. São como os nossos políticos terrenos. Existem os bons, dispostos a servir, unicamente, à causa pública. E coexistem juntamente com aqueles, os maus. Esses, sedentos por entrarem na política para atuar em benefício próprio.

(A conversa é interrompida pelo soar do toque característico do berimbau. Ao mesmo tempo, todos se levantam e dizem: é Camafeu de Oxóssi que, sem perda de tempo assoma à porta todo vestido de branco, usando colares de contas verdes, acompanhado de três dos seus discípulos, todos de dorso nus, vestindo calças brancas e coronhas, portando instrumentos musicais).

CAMAFEU – Okê, meus reis! Okê, mainha.

(Ao tempo em que abraça a todos ritualisticamente, como uma ialorixá ou um babalorixá, abraça uma filha-de-santo ou um filho-de-santo recebendo um encantado, deseja axé a cada um dos presentes. Seus discípulos acompanham-no nos festejos).

NORMA – Bem-vindos, irmãozinhos. Fiquem à vontade. Acomodem-se. A casa é pequena, mas cabe todos que amamos.

CAMAFEU – Tem muita gente reunida aqui, mas não sinto, pelo semblante de vocês, nada parecido com um encontro social. Tem mais,    é
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cheiro e jeito de conjuração. Trama. Conluio. Posso estar enganado, mas, meu São Jorge me aconselha a ficar de orelha em pé.

CARYBÉ – Não existe maquinação alguma, mesmo porque, você bem sabe, não somos políticos. Somos artistas. Nosso encontro foi meramente casual e, em acontecendo, aproveitamos para falar sobre os últimos acontecimentos deste pedaço do Céu. Isso porque estamos revoltados e decepcionados. Vendo a ética ser substituída pela mentira, à verdade pelo engodo, à correção pela corrupção, o decoro pela lassidão dos costumes.

CAMAFEU – Solta lá, mainha, uma rodada da esquenta-por-dentro, da “arretada”. Eu e os meus meninos estamos precisados dela. Na certa, meu compadre Quincas também.

(Ante esse pedido, Quincas e os discípulos esfregam as mãos em sinal de contentamento).

NORMA – Arre, gente! Só me aparecem aqui paus-d’água.

CAMAFEU – Você tem razão, meu rei. Vi, na Tvcéu, há bem pouco tempo, um Santo do segundo escalão, ou melhor, um bem-aventurado, um neófito, ser detido por transportar milhares de patacas celeste na cueca. Se o fato em si já era inusitado e contundente, o que mais me chocou foram suas explicações para o crime flagrado. Disse ele: “o dinheiro era frio, precisava ser esquentado e nada melhor para isso do que colocá-lo na cueca”. Parece piada, mas não é. Esses meus meninos, esses moleques, sentadinhos ali, já aprenderam a lição. Há alguns minutos, depois da dança-demonstração de capoeira que fizeram na praça da matriz, e após recolherem doações entre a plateia, vejam onde colocaram o dinheiro recebido. Andem logo, rapazes. Mostrem onde...

(Os três levantam-se, arriam as calças e mostram algumas cédulas de patacas dentro das cuecas).

MIRABEAU – Apesar de públicas, notórias e confessadas trampolinagens, um péssimo exemplo para a sociedade, toda a publicidade do governo vem chancelada com o seguinte slogan: Brasil, país de todos. Onde já se viu tamanha heresia! Desconjuro! Cruz credo! Se só uns poucos se beneficiam das benesses que ele distribui.
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DISCÍPULO – O povo mudou o slogan, meu rei. Substituiu-o por: Brasil, país de tolos.

(Depois de esvaziarem a segunda garrafa de aguardente).

CAMAFEU – Pois é, diante de tanto Santo confesso, enriquecido com propinas, mensalão, dinheiro advindo de concorrências públicas dirigidas e com sobrepreços nelas embutidos, empréstimos fraudulentos concedidos por terceiros a esses privilegiados, vem o Santo presidente e diz que nada disso existe. Tudo é fuxico da oposição e da imprensa inescrupulosa. Quanto ao mensalão, já virou refrão de música de carnaval. Este Céu não tem mais jeito. Virou deboche.

DISCÍPULO – Isso dá samba. Vamos lá, pessoal.

(Incontinente, os três discípulos levantam-se e cantam acompanhados pelos seus instrumentos).

Você diz que mensalão
É refrão de carnaval.
Mensalão é roubalheira.
Você é um cara de pau.

(Camafeu demonstrando autoridade).

CAMAFEU – Deixem de patuscadas meus filhos. Sentem-se. Preciso dizer a que vim. Na verdade, meus reis e mainha, trago-lhes convites para uma festa.

NORMA – Uma festa ou um milagre presencial?

CAMAFEU – As duas coisas. O milagre foi a autorização dada para a realização da festa. Não é que mãe Menininha conseguiu esse feito espantoso?! Ela vai abrir o barracão em louvor a Oxóssi, na próxima quinta-feira. E ela pede que todos estejam lá. Comida e bebida não faltarão.

(A essas palavras os circunstantes, em coro, batem palmas e cantam).


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TODOS – Okê! Okê! Pai Celeste. Nosso Santo Protetor. Viva! Viva! Uma festa. O céu vai tremer e não vai ter “bundalelê”.

(Neste instante, os discípulos, empunhando seus instrumentos, tocam acordes e cantam músicas oriundas das rodas da capoeira, do samba de roda e do maculelê e, dois deles evoluem pela casa mostrando seus gingados. O pano de boca, vagarosamente, vai se fechando anunciando o fim do primeiro ato).








































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SEGUNDO
ATO




         





  



    
    

    



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CENÁRIO



            (O cenário é um típico barracão onde se realizam as festas nas casas de candomblé. O teto enfeitado por bandeirolas de papel reflete as cores de Oxóssi (verde e branco). Em um dos esconsos do barracão, visualizam-se os atabaques – o rum, o rumpi e o lê – além de inúmeros vasos de plantas ornamentais e ritualísticas (a exemplo, espada-de-ogum).
















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NARRADOR – Depois de meses sem bater, sem fazer um xirê, Mãe Menininha conseguiu autorização das autoridades celestiais para realizar uma festa em homenagem a Oxóssi. Todos os preparativos para o evento foram cuidadosamente alcançados. As homenagens a Exu ocorreram sem transtornos. Ninguém queria surpresas! Sendo esse um Orixá dual, ao mesmo tempo bom e mau, companheiro prestativo, mas, algumas vezes, afoito, destrambelhado, até mesmo corrupto e obsceno, o único Orixá capaz de dialogar com os filhos e filhas-de-santo, faziam-se necessárias aquelas cortesias. Caso elas não ocorressem, ninguém ousaria prognosticar como a festa transcorreria. Portanto, fazia-se melhor prevenir que remediar. Laroiê, Laroiê! Laroiê! Saudaram-no, a uma só voz, os homenageantes.
Como os convidados já estavam chegando, os alabês prontos para bater seus tambores, as equédes ou filhas-de-santo enfeitadas, os ogãs ou oficiantes, vestidas com suas melhores e mais belas roupas ritualísticas, as ialorixás e babalorixás a postos, participemos dos festejos.

(Abre-se a cortina).

(Camafeu de Oxóssi encontra-se em plena atividade recebendo os convidados. Chegam Jorge Amado acompanhado de Quincas Berro d’Água, Pierre Verger, Mirabeau, Carybé, Norma em companhia de Frida Kahlo e outros não menos importantes visitantes. Enquanto ocorrem as saudações sociais de praxe, há rapapés entre os convivas, as equédes defumam todo o ambiente com incenso perfumado – ervas de Oxóssi).

NORMA – Compadre Camafeu, esta senhora é Frida Kahlo. Ela e o marido, Diego Rivera, foram considerados, na Terra, na Cidade do México, os maiores artistas plásticos do século XX, naquelas bandas. Ela nunca assistiu a uma festividade desta. Devido a um acidente em que foi vítima, desde então, sofre dores insuportáveis nas costas. Por isso resolvi trazê-la. Quem sabe se Oxóssi não se compadece dela e alivia seu padecimento?

CAMAFEU – Deixa estar. Se meu pai Oxóssi puder, ela sairá daqui curada. E ele pode...

(Dirigindo-se a Carybé).


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CAMAFEU – Meu irmão, nossa festa será de arromba. A maior que o Céu já viu. Nós que temos fé nos mesmos preceitos vamos acreditar que isso aconteça. E como você conhece todos os Santos, sabe ser esse meu desejo mais que possível.

CARYBÉ – Alto lá! Conheço os nossos Santos. Oxóssi, Oxalá, Xangô, Ogum, Iansã: os nascidos do poder de Olorum. Dos fajutos, dos Santos mequetrefes que estão nos governando, não faço ideia. Principalmente dos que dizem que a mãe nasceu analfabeta, que nós botamos “urucubaca e olho gordo” no governo deles, dos recebedores de “aeromóveis” Land Rover de presente, dos tomadores de empréstimos fantasmas para corromper políticos, dos que nada sabem, nada ouvem e nada veem. Desses quero distância. Não rezo no credo deles. Nem poderia. Sou um homem honesto.

(Mirabeau, que a tudo ouvia, mete-se na conversa).

MIRABEAU – Eu sou como Simão Sinai de Mântua – antes de tudo católico, depois luterano, depois calvinista, depois outra vez católico, mas sempre um ateu. Basta substituir ateu por artista.  Dos Santos, só gosto é de colecionar suas imagens esculpidas por artífices dos séculos passados e de pintar Madonas.

CAMAFEU – Peço desculpas, meus irmãos. Tenho assuntos a resolver. Vou falar com a Mãe Menininha intercedendo pela pintora, dona Frida Kahlo. A um pedido da minha comadre Norma. Não descanso antes de cumpri-lo.

(Camafeu afasta-se, toma das mãos da pintora, beija-as e juntinho ao seu ouvido sussurra-lhe algo)

FRIDA – Esta bien señor Camafeu. Estoy a su disposición. Voy a tenir Oxóssi em mi corazón.






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(Camafeu dirige-se a Mãe Menininha, fala-lhe com recato, obsequioso respeito, e dela recebe uma bênção e um menear de cabeça, como se expressasse assentimento. Enquanto isso o adjá (sino) avisa o início da festa. Os atabaques rugem acompanhados pelo ganzá e pela cabaça oca. As equédes, em roda, começam o xirê, ou roda de força, invocando os Orixás, cantando o ponto).

“Banda eu, como gira
Como gira dentro de um gongá.
Gira com todas as giras
Gira este filho da fé.
Banda eu, como gira
Salvando estes filhos
De pai Oxóssi.

Abrimos nossa gira
Pedimos de coração
Ao nosso pai Oxóssi
Para cumprir nossa “missão.”

(Neste instante, uma das equédes vai para o meio do xirê e começa a dançar violentamente e desnuda-se. Uma dança obscena, num ritmo tão alucinante que os mais exímios alabês tinham dificuldades em percutir seus atabaques para acompanhá-la em suas evoluções).

TODOS OS ASSISTENTES A UMA SÓ VOZ – Xi! Valha-nos Olorum! Valha-nos Oxóssi! Foi Exu quem desceu.

(Mãe Menininha sai do seu lugar vai até o cavalo (a equéde) e põe a mão em sua cabeça, depois no coração e deita falação firme, bem composta).

MÃE MENININHA – Vá embora compadre Exu. A festa não é sua. Nossa obrigação com você foi cumprida. Dê lugar a Oxóssi e aos outros encantados que desejam baixar.

(A equéde responde com voz grossa, explícita e compassada).


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EQUÉDE (EXU) – Vou nada. Dessa vez não fui o último a chegar. Fui o primeiro e serei o derradeiro a sair. Eta! Cavalo bom este que estou montado. Escoiceia, mas é porreta. É dos que gosto de domar.

MÃE MENININHA – Eu o intimo a ir embora. Você quer acabar com a festa que tanto lutei para realizá-la, compadre? Seja razoável, desmonte do cavalo. Melhor, eu o ordeno, sem outras considerações, agora mesmo.

EQUÉDE (EXU) – Não adianta exigir-me tal atitude. Não vou atendê-la, nem a ninguém. Tenho, também, meus direitos. Para submeter-me à sua vontade quero e vou dar o meu recado.

MÃE MENININHA – E se der o seu recado, você promete ir de vez?

(A equéde (Exu) se desvencilha da ialorixá e sai abraçando as demais equédes e os assistentes, sem dar uma resposta definitiva à Mãe Menininha).

EQUÉDE (EXU) – Quero charuto e cachaça, dos bons. Vocês parecem uns filhos-da-puta. Por que não oferecem nada aos visitantes? Onde fica a cordialidade nesta casa? Guardada na dispensa? Cercada pela sovinice? Ou enfiada no “cu” dos “putos” que aqui estão?

MÃE MENININHA – Laroriê! Laroriê! Laroriê! Compadre Exu. Você foi o primeiro a receber os mimos desta casa, ademais foi muito considerado. Oferecemos ao compadre tudo o que tínhamos de melhor. Charutos, cachaça, a comida que aprecia, pipoca e farofa de dendê, a nossa saudação, o nosso acato por sua figura, enfim, respeito e admiração. Se tudo isso não bastou, aqui tem mais (entrega à equéde (Exu) a cachaça pedida e os charutos). Dou-lhe o que pediu sob o compromisso de que logo partirá. Avexe-se para dizer a que veio. Passadas as explicações, os minutos, que a partir de agora lhe concederei, não terei contemplação. Ponho-lhe no olho da rua.

(A equéde - (Exu) - se acalma, toma uma talagada da cachaça, acende o charuto e após algumas baforadas, desabafa).


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EQUÉDE (EXU) – Chamam-me de Tranca-Ruas, Zé Pelintra, Exu Calunga, Maria Padilha, Cigana Devassa. Têm-me como desordeiro, moleque, irreverente. Mau, pornográfico. Dizem todos vocês, seus sacanas, que eu, além de dar nós em pingos d’água, carrego azeite de dendê em mocó ou numa peneira sem derramar uma só gota. Contam as mais estapafúrdias histórias sobre mim. Tem uma que ouvi outro dia: a de que “matei um passarinho ontem com a pedra que atirei hoje”. Confundem-me até com o tinhoso. Alguns me apupam. Vaiam-me. Querem distância de mim. Contudo não vejo a mesma reação de vocês em relação a essa “canalhada” que governa o Céu atualmente. Ela promete, mente, engana, furta despudoradamente, e vocês a aplaudem. Desrespeita a legislação celeste e vocês fingem não ver. Chama o que a lei define como pecado, crime celestial, de simples prática usual da vida política e vocês não se dão conta do embuste. Envia dinheiro, nosso dinheiro, desviado dos cofres públicos para contas secretas em paraísos fiscais, engordando o patrimônio de todos os partícipes da “mutreta”, e o que vejo é o silêncio de todos. Serão vocês uns frouxos? A indignação e o sangue não lhes correm nas veias? Por que não reagem? Não dizem: basta? Será por medo desses Santos “fajutos”? Acomodação? E depois ainda afirmam, com a mesma cara de pau dos participes da gangue, que sou eu e não eles que vivem a embrulhar água em papel crepom. Que é Exu o safado e não os membros dessa corja destemperada. Que eu sou o devasso, mas são eles que praticam, sem qualquer freio moral ou pudor, a libidinagem, usando como palco de suas travessuras os melhores e mais caros hotéis da cidade. Segundo voz corrente, para a melhoria e oficialização desse saudável entretenimento, já pensam em criar a “Xoxotobras”, a “Bundabras”, a “Peitobras”. Não é a Petrobras. Não confundam. Embora ambas tenha slogan parecidos. Enquanto uma afirma que o petróleo é nosso, a outra diz: o peito é nosso. Acrescentando: os sem silicone. Tudo isso sob a alegação de que agem em defesa dos bens culturais celestes.
Estou de partida. Dei o meu recado. Desabafei como pretendia. Só lamento ter de desmontar desse cavalo fogoso. Bom pra cacete. Mas algum dia, quem sabe se não montarei, numa camarinha qualquer da eternidade, nessa égua de ancas largas e seios firmes, em condições mais favoráveis?

(Nesse instante, a equéde deixa de evoluir e a ogã a encaminha para a camarinha. Mas a voz de Quincas Berro d’Água se faz ouvir).

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QUINCAS – O compadre Exu tem razão, minha gente. Nosso pedaço do Céu virou um caos administrativo, ético, moral. Só os Santos prosperam por aqui. Os Santos e os banqueiros. Os demais vivem da bolsa família celeste, tão chocha como os óbolos arrecadados nas igrejas. Isso não pode continuar. Há vida, mas não há alegria. Os pobres, como sempre, estão pobres e os ricos, sempre mais ricos. As desigualdades estão cada vez mais acentuadas. A educação, sem esperanças. A saúde, corroída pela falta de saneamento básico. As estradas intransitáveis, destruídas pela ação do uso. A ética, chafurdada na lama da corrupção. A vergonha, enterrada sem “choro nem vela”. 

(Olhando, apontando para o infinito e com as mãos juntas como se orasse, arremata).

QUINCAS – Por que será, meu Deus, que o Senhor não vê tudo isso?

(Juntamente com Quincas, todos respondem em uníssonos)

 – Não vê porque Deus é brasileiro.

NARRADOR – E a festa continuou sem maiores arrepios ou surpresas. Frida Kahlo está pintando com o mesmo prazer e alegria como fazia na Terra. Curou-se do sofrimento que suportara em vida, graças à intercessão de Oxóssi.
Se o xirê não foi o mais grandioso visto no Céu, pelo menos, até hoje, tem sido o mais comentado.
Essa comédia não é uma comédia de costumes. Vamos defini-la como de maus costumes.

(Fecha-se a cortina).



UM DIA O FIM DESTA HISTÓRIA OCORRERÁ, OS CORRUPTOS CELESTIAIS IRÃO PARA A CADEIA. SERÁ?    
                     

 


  


 

 

 

 

 

 

 

 

 


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