Janeiro de
2011.
Luiz Carlos
Facó
LUIZ
CARLOS FACÓ
TANTO
NO CÉU
QUANTO
NA
TERRA
Peça
em dois atos
Salvador-2011
PERSONAGENS
O narrador, Carybé, pintor e muralista
argentino radicado na Bahia, Mirabeau Sampaio (pintor de Madonas), Norma sua
esposa, Quincas Berro D’Água, funcionário público, personagem de Jorge Amado,
Camafeu de Oxossi, comerciante, famoso capoeirista baiano e três dos seus
discípulos. Jorge Amado, Pierre Verger; fotografo francês, adepto do candomblé,
conhecido no meio como Oju Obá, Essá Elemexó, Frida Kahlo, pintora mexicana.
Mãe Menininha do Gantois, equédes ou filhas-de-santo, alabês, tocadores de
atabaques – rumpi, rum e o lê – ogãs ou oficiantes, ialorixás e babalorixás –
mães e pais de santo – figurantes, dançarinos.
CENÁRIO
Um céu de azul radioso. Poeira de nuvens
(gelo seco). Em espaço, não muito amplo, decorado monasticamente (um sofá,
algumas cadeiras, um banquinho e um cavalete sustentando um quadro inacabado –
uma madona –, uma mesa na qual repousam paletas, espátulas, tintas, pinceis e
uma espécie de telefone. Nas paredes, quase nuas aparecem fixados esboços do
pintor e obras de seus colegas contemporâneos. O sofá é ocupado por Mirabeau
Sampaio e Carybé (artistas baianos, um nativo, o outro adotado), que conversam
descontraidamente.
Ao lado deles, numa cadeira, assenta-se
Norma, esposa de Mirabeau, entretida em fazer uma manta de tricô, mas com os
ouvidos antenados à conversa dos dois amigos.
Antes da abertura do pano de boca soam as
batidas do bastão de Molière
.
PRIMEIRO
ATO
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
NARRADOR:
Esta
história se passa no Céu, em território destinado a oriundos brasileiros natos
ou adotivos. Qualquer semelhança com fatos reais acontecidos na Terra,
particularmente no Brasil, é fruto de mera coincidência.
Vamos a ela em dois atos.
Abre-se
a cortina.
CARYBÉ
(com sotaque argênteo-baiano) – Compadre Mirabeau, o céu está uma merda.
Parece até a cidade do Salvador no fim do carnaval, sem a zoeira dos
trios-elétricos e afoxés. Uma ressaca só.
A preguiça se abate sobre todas as cabeças. Resultado do contágio. É de fazer dó.
NORMA
(levantando a cabeça e dirigindo-se a Carybé) – Não diga essa palavra – preguiça –,
compadre. Não sabe que é proibido pronunciá-la por aqui? Eles são onipresentes,
ouvem tudo o que dizemos e, às vezes, ouvem mal. Convém, portanto, evitá-la, já
que designa um dos sete pecados capitais. Se um dia você precisar de uma
certidão negativa de pecados para resolver qualquer pendência, eles certamente
a negarão.
CARIBÉ
(retomando a palavra, com tom de indignação) – Às favas com tanta frescura. Já
não aguento mais tais arrochos. (Voltando
à naturalidade) – Mas, retomando o quanto dizia, este pedaço do céu está
uma pasmaceira de fazer dó. A Sinfônica Celeste terminou sua temporada. Nos
teatros, não existem novos lançamentos, bons espetáculos e muito menos o
surgimento de jovens talentos. Só apresentam as peças de sempre. Dos mesmos
autores: Molière, La Fontaine, Shakespeare. Os vaudevilles foram censurados depois que algumas vedetes importaram
uns biquinis brasileiros para neles se exibirem. Fotografias de bundas
femininas estão proibidas por ato legislativo celeste. Adeus bundas nossas de
cada instante! As televisões só mostram a vida dos santos. Um porre, além de ouvirmos “colhudas” pra cacete! Retretas, nem
pensar. As praças celestes estão vazias. De gente, música e alegria. Nem um
afoxé, nem os filhos de Gandhi têm saído às ruas. Até os candomblés deixaram de
bater: Mãe Menininha do Gantois, Mãe Creusa e as demais ialorixás fecharam seus
barracões. Nada de festas, xirês. Nos bares não se vê ninguém. Não mais que
quatro ou cinco bêbados e olhe lá. Ainda por cima, acredito que, só de
sacanagem,
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
Austregésilo de Athayde, na Arcádia
Celeste, réplica da Academia Brasileira de Letras, insiste em promover reuniões
insípidas, regadas a chás e bolinhos intragáveis, tratando-nos como se fôssemos
lordes ingleses.
MIRABEAU
(calmo e disposto ao diálogo) – É a crise, meu amigo, que assola esta
parte do céu. Os juros estão exorbitantes. Os supermercados entregues às moscas
por causa dos preços extorsivos que cobram pelos alimentos. Soube que os
comerciantes já astuciaram vender comida pronta (self-service) a quilo, para aumentarem a saída das mercadorias. O
pão-nosso-de-cada-dia está cada vez mais difícil. Nossos veículos, os
“aeromóveis”, estão parados nas garagens. O combustível, o ozônio, subiu de
preço duas vezes em um mês. Já pensam na utilização de veículos alternativos,
os bi ou “triflexes”. A cachaça importada lá da Terra, do nosso Brasil, aqui é
vendida mais cara que uísque envelhecido. Não vê como andam rindo Clemente
Mariani, Fernando Góes e Miguel Calmon?
CARYBÉ – Estão com as
burras cheias. O povo que se foda.
NORMA – Que é isso,
Carybé? Deixe de indecências. A qualquer hora você será chamado ao Tribunal dos
Pecados para explicações. Olhe bem, se for condenado, a pena é grande. No
mínimo, você passará sete dias em jejum e será obrigado a rezar, nesse período,
cinquenta terços diários. E o terço agora tem mais um mistério.
CARYBÉ
(com riso de mofa)
– Jejum? Já faço todos os dias. Meus quadros não vendem. Meus capoeiristas de
dorsos nus e minhas mulatas de roupas coladas ao corpo são considerados
sensuais demais. Vivo na mais completa pindaíba, liso e duro que nem pau de
jequitibá – madeira de dar em doido. Outro dia, no Banco da Bahia, procurei o
Fernando Góes, que se diz meu amigo, para fazer um empréstimo pessoal. Sabe
quanto ele queria de juros? Quinze por cento ao mês. Vejam bem, falar aqui em
preguiça é pecado, mas a prática da agiotagem é considerada normal.
MIRABEAU – Os meus vendem.
Por preço vil, é verdade. Minhas madonas ainda fazem sucesso. Mas só conseguem
bons preços por seus trabalhos os artistas do infinito desenvolvido: Da Vinci,
Rafael, Sandro Boticelli. Os quadros deles são disputados na butique Daslu Celestial
por milhões de patacas celestinas. Dólar, euro, libra esterlina e real aqui não
valem nada. Os meus quadros e o dos pintores deste infinito emergente
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alcançam, no máximo, duas centenas de
patacas, quando muito. Tentei pintar outros Santos visando obter maiores
lucros. Mas aqui, para estas bandas, só veem santos meia-solas. São Silva, São
Santos, São Bispo, São Rufino, São Torquato e outros menos conhecidos. E quando
os instei, mesmo em sendo desconhecidos, nada “famosos”, a pousar para minhas
pinturas, cobraram-me o que não posso pagar. Os Santos famosos, esses nem se
dão ao desplante de pôr os pés por aqui. Não peregrinam por estas bandas.
Aderiram à economia de mercado, ao livre comércio. Vivem todos onde corre o vil
metal. Desfilam em veículos de luxo, blindados, frequentam a Cote d’Azur,
Biarritz, Cancun e outros balneários elegantes universo afora. Cassinos,
teatros e os “cambau”. Bebem os vinhos mais caros, fumam charutos cubanos,
vestem roupas de grife. Tudo isso depois que o Partido dos Traquinas, o PT, que
reúne hostes de peraltas, aquele da estrela vermelha, assumiu o poder, e, sob a
benção de São Lula, São Delúbio, São Valério, São Gushiken e São Silvinho,
instalou o propinoduto celeste. Eles agora têm dinheiro que não acaba mais.
NORMA – Cala a boca
Mirabeau. Eta homem boquirroto! Você termina parando no purgatório. Lá eles
confiscam até seus pinceis. E depois, babau...
CARYBÉ – Quem diria que
um dia eu veria Santo corrupto, sem ética, fazendo caixa dois, pagando custos
de campanha com dinheiro guardado em bancos no exterior! Dizem as más línguas
que quem trouxe o know how dessas
“trambicagens” foi um tal de Half, Ralf... não, isso é inglês, em português é
mesmo Meio Barquete, figura recém-chegada de Ribeirão Preto.
(Nesse
instante, ouvem-se palmas e uma voz gritando do lado de fora)
- Ô do céu!
NORMA
–
Ô de fora! Vá entrando, a porta está aberta.
(No
vão da porta aparece um senhor todo de branco com sorriso largo nos lábios. È
Quincas Berro d’Água)
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QUINCAS
–
Vim para ver dois irmãos e vejo três. Quanta felicidade! Por falar em
felicidade, irmãzinha Norma, sirva-me uma daquelas talagadas generosas da
melhor branquinha da sua adega. Sem esnobismo, traga-me a
cachaça mais porreta da casa. O seu Quincas
Berro d’Água está com a garganta seca e a língua estalando.
(Norma
levanta-se e vai apanhar um copo e a garrafa da caninha. Enquanto isso a
confraternização entre os amigos continua)
MIRABEAU – O que tem feito
amigo? Quais as novidades?
CARYBÉ – Conte-nos como
vai o Jorge Amado. Tem visto ele, não tem? Aquele descobridor de mulheres
fogosas, dengosas, sestrosas, de ancas largas e seios fartos, é incapaz de nos
procurar. O “sacana”, depois que
chegou aqui, só vive metido com intelectuais de “bosta”.
QUINCAS – Eia! Vá com
calma camarada. O Jorge é o mesmo. Incapaz de desprezar um amigo, um irmão. Chegou animadão. Tratou logo de
escrever. Exercer seu ganha-pão, reavivar sua paixão. Fez um romance intitulado
os Pastores do Céu. Só porque o Cabo Martim e o Curió, aquelas mesmas
personagens dos Pastores da Noite,
comeram no novo romance, uma freirinha catita que estava a fim deles, o Céu
veio abaixo. Ao nível da Terra.
(Quincas
pigarreia e é instado por Mirabeau)
MIRABEAU – Deixe de
pigarrear e conte logo tudo, seu goela-seca.
(Quincas
serve-se da bebida trazida por Norma, derrama um pouco da aguardente no chão e,
com a maior fleuma, volta-se aos amigos).
QUINCAS
–
Este bocado é do santo. Vamos
devagar, que o andor é pesado e o santo é de barro. Conto tudo, mas com
calma...
(Quincas
enche novamente o copo com a branquinha e, de um só gole, sorve-a)
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QUINCAS – Esta é da boa
mesmo. Deve ser lá de Santo Amaro, Ouro Preto ou de Mariana, lá das bandas das
Minas Gerais. Pois bem, como ia dizendo, o Jorge está “retado” porque proibiram
a circulação do seu livro só por causa daquelas “trepadinhas” sem consequências.
Lamenta-se, com razão, porque os seus livros sempre foram o oásis do pleno
exercício da liberdade. Ademais, anda com uma saudade enorme do “Partidão”, o
da sua juventude. Disse-me ele, inda agorinha, fazendo coro ao zum-zum-zum do
povo e ao que se diz à boca pequena, aquele partido era puro, idealista. O que
hoje governa este pedaço do céu é a sua antítese. Uma vergonha. Eu digo, uma
esculhambação, uma excrescência.
(Quincas
toma outro gole da branquinha com avidez, ação finalizada por um ruidoso
estalido da língua)
MIRABEAU
–
Não entendo a sua irritação, meu amigo. Há bem pouco tempo, você proclamava a
necessidade de ter um Santo sindicalista na presidência. Dizia: ele cumprirá as
promessas feitas em campanhas. É Santo de fé, irmão camarada. Que tudo ia
melhorar. Principalmente a educação e a saúde. E agora você vem se opondo a
tudo quanto abraçava e cantava, em prosa
e verso.
QUINCAS – Porque só agora
entendi que Santo de casa não faz milagres. Que seja assim; arrependimento
sempre é bom. Antes tarde do que nunca...
(Quincas emborca o copo, novamente, empurra
goela abaixo o precioso líquido, repete o estalido anterior e, dirigindo-se a
Carybé, arremata seu pensamento)
QUINCAS
–
Já notou, Carybé, como hoje estou tinindo nos provérbios?
CARYBÉ – Você está tão
bom como sempre, ou melhor. Só lamentarei quando a cachaça terminar ou quando
você for tomado por ela.
QUINCAS – Vou lhes contar
a maior. Acordei, tempos atrás, depois de um grande porre, com uma vontade
danada de ir ao Haiti. Nada melhor do que conhecer outros povos. Mas a escolha
não foi aleatória, queria ver os nossos orgulhosos militares e saber como eles
estão se saindo no exercício da missão de paz que a ONU lhes confiou. Fui ao
PCC...
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Luiz
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NORMA – Que é isso? É um
novo partido político?
QUINCAS – Qual o quê,
comadre! Não é sigla partidária, nem o famigerado Primeiro Comando da Capital
das nossas lembranças terrenas. É a Polícia Celestial de Costumes. Réplica da
Polícia Federal, lá de baixo. Pois então. Fui tirar meu passaporte. Sabe o que
os burocratas de lá me exigiram para conceder-me o documento? Nada mais, nada
menos que a apresentação da minha certidão de óbito. Ah! Não aguentei. Explodi.
Exigir logo de mim, a quem o compadre Jorge Amado concedeu três mortes: a
física, a social, a fantástica, e dos demais que estão aqui, atestado de óbito,
é muita sacanagem. Depois veio a explicação: tudo se resolve com o pagamento de
três mil patacas, à vista. Corrupção pura, seu mano.
CARYBÉ – Outro dia, o
Gláuber Rocha me contou que está impedido de filmar aqui só porque produziu lá
embaixo, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Por enquanto, com recursos
provenientes dos fundos de incentivo à cultura. O Raul Seixas está censurado em
vista das regravações aqui de Tá todo mundo louco e Maluco Beleza. Os políticos
oposicionistas daqui, todos Santos também, quando apontam irregularidades, são
chamados de denunciadores vazios. Os órgãos de imprensa deste infinito celeste,
que tanto se empenharam na eleição dos que ai estão nos comandando, quando
divulgam as falcatruas detectadas deste governo, são acintosamente tachados de
sem-credibilidade. As revistas de maior tiragem estão todas nesse rol. Não se
salvam nem as Epokhe, Id Est, Examen e Vide, que lá no velho Ceará é chamada de
Óia. Todas com título em grego e latim o que é demais para nós aturarmos.
MIRABEAU – e do comércio de
indulgências plenas, vocês já ouviram falar? É um descalabro...
NORMA – Mirabeau,
Mirabeau, você não se emenda? Não se meta em camisa de onze varas, como diz o
Quincas. O purgatório não é brincadeira. Se nós estivermos grampeados pela
escuta celeste, não haverá escapatória. Você será encarcerado naquela cafua,
sem dó nem piedade, e não adianta prometer nada aos Santos juízes para escapar
do castigo. Deles dizem: são incorruptíveis e fazem o que bem entendem. Estão
nos mesmos tribunais desde os tempos da Inquisição. São como os magistrados da
Terra que possuem as prerrogativas da inamovibilidade, irredutibilidade dos
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vencimentos e vitaliciedade. Quando
flagrados vendendo sentenças ou praticando outros crimes, são punidos com
aposentadoria compulsória com direito a remuneração integral.
MIRABEAU – Esta é mais uma
empulhação. Acho que remonta à época do dilúvio. Mesmo em sendo um assunto
sério para discutirmos, deixemos isso para depois. É importante que eu comente
o caso das indulgências. Pois bem. Tenho lido e visto nos mais diferentes
canais da TVcéu, casos de corrupção explícita. Deputados celestes afirmam ter
recebido pagamentos do propinoduto: os famosos mensalões. Justificam que eram
contribuições para fazer face aos débitos de suas campanhas eleitorais e da
presidencial. A esses desvios de conduta, ao invés de nominá-los como crime
eleitoral, arranjaram um eufemismo para defini-los. Agora, os tratam como
subsídios não contabilizados. E o Santo presidente, São Lula, admite-os,
concedendo aos faltosos indulgências plenas, sob alegação de que essa era uma
prática corriqueira na política celestial. Parece até que já instituíram o
balcão de vendas de tais indulgências. Arre! Não suporto tanta insensatez.
(O
telecéu, cujo toque se assemelha o dobrar de sinos de igrejas, desperta com
estridência).
MIRABEAU – Corre, Norma,
atenda logo ao telecéu, essa porcaria barulhenta que mais parece sino de igreja
anunciando chegada de defunto fresco. Se for algum chato me procurando, diga
que saí.
(Atendendo
ao telecéu).
NORMA – Alô... Camafeu
de Oxóssi?... Como vai?... Fale mais alto, acho que está havendo alguma
interferência de nuvens carregadas ou de meteoritos... Sim... Sim... Não
demorem...Ficaremos esperando por vocês.
(Desligando
o telecéu e voltando-se para os circunstantes).
NORMA – Nosso Camafeu
vem aí com três afilhados dele. São novos alunos, capoeiristas de sua escola.
Mas antes que ele chegue quero contar com uma novidade para vocês. É uma
daquelas que se espalhou às caladas, mas ganhou força, graças ao boca-a-boca.
Cheguem mais para perto, não vou me arriscar a falar alto. Dizem que, há três
anos, aqui chegou, precedida de fama duvidosa, uma senhora que se dizia
promotora
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de eventos. Trazia como credencial o fato
de ter trabalhado com Jeany Mary Córner, aquela cearense que ganhou fama
promovendo festas para políticos, banqueiros e empresários lá na Terra, em
Brasília. Pois bem, aquela senhora aqui logo apelidada de Madame Periquita –
porque solta penas por onde passa – fez-se amiga de pessoas influentes no
governo e começou a exercer sua profissão.
QUINCAS – Quer dizer:
praticar a caftinagem, o lenocínio. Conheço bem essas madames de longe.
NORMA – A princípio, ela
realizou festas modestas. Com o passar do tempo, apoiada pelos Santos, promoveu
verdadeiras bacanais, orgias. Coisas de Sodoma e Gomorra. Aluga dois ou três
andares dos melhores hotéis da cidade, convida toda a Santidade e as
comemorações se prolongam madrugada adentro. Na última, mandou vir, numa
espaçonave celeste, particular, diretamente de São Paulo, mais de vinte e cinco
modelos, das mais bonitas e boazudas.
QUINCAS – Ou seja: putas!
Não é comadre?
NORMA – Não me
interrompa, homem de Deus... E essa senhora ainda teve a petulância de afirmar
à imprensa que sua prestação de serviço é paga à vista, justificando: “vendo um
produto que ninguém entrega fiado, porque não tem como tomar de volta”. Com
esse modus operandi, está milionária.
QUINCAS – Não é que ela
tem razão? Esse tipo de mercadoria, depois de usada, perde o selo de qualidade
e, sem esse selo, não tem cliente que queira pagar um valor mais alto ou um
preço justo. Tem que ser mesmo pagamento antecipado. Senão é calote na certa.
Estou por dentro.
MIRABEAU – Agora caiu a
ficha. Li outro dia duas notícias interessantes. Uma dizia: a Secretaria das
Vocações anda abarrotada de processos. Existem quase mil petições de Santos
pedindo dispensa dos votos de castidade. A outra divulgava: a venda de viagra
cresce, no céu, a índices geométricos.
CARYBÉ – Pois é, tem
Santo trepando adoidado. Perdendo a cabeça ou esfolando a mesma. Alguns tinham
duzentos, trezentos ou mais anos que não davam uma fornicada. Estão indo à
forra depois dessa abstinência tão longa. Vivem se lambuzando de tanto comer
mel.
QUINCAS – Comer mel?
Conheço isso por outro nome...
(Quando
Quincas tentava abrir à boca para complementar o seu pensamento, foi
abruptamente interrompido).
NORMA – Basta. Não diga
mais nada. Todos aqui sabem como se chama aquilo.
CARYBÉ – Um desses
Santos, se não me engano, São Buratti, abandonou a família e fugiu com uma das
afilhadas de madame Periquita. O que não faz mulher bonita e gostosa, hem?!
Outro dia um cirurgião plástico daqui, famoso e competente, me confidenciou que
seus clientes do sexo masculino, todos Santos, dobraram ou triplicaram, á
procura, sobremodo, de lipoaspiração para a retirada da gordura da barriga,
pneus e implantação de prótese peniana. Querem se empetecar e rejuvenescer de
qualquer forma.
QUINCAS – Não sei por que
esses fazedores de milagres não trabalham usando seus poderes em benefício
pessoal. Um milagrezinho à-toa e ei-los em perfeita forma! Prontos para o que
der e vier. Para qualquer bate-bola. Peladas não faltam. Até as freiras e
noviças já ensaiaram um protesto porque madame Periquita, segundo a voz do
povo, as discrimina. Não deixam que elas façam parte desse time de estrelas.
Elas, com vantagem sobre aquelas, porque se dizem virgens. Mercadoria
apreciável e rara, nos dias atuais.
MIRABEAU – Os Santos não
podem promover ou interceder por tais milagres. A lei celestial, em tais casos,
proíbe o uso desse privilégio em vantagem própria. Quanto a esse veneno, acerca
das madres e noviças, é invenção sua, canalha.
NORMA – Não me conformo
com vocês. Botam todos os Santos no mesmo balaio. Saibam que muitos não se
corromperam. São Francisco de Assis continua com a humildade de sempre. São
José, além de se apegar à discrição, jamais deixou de exercer sua profissão de
marceneiro. Santo Antônio persegue seus princípios e aprimora a sua fé. São
Judas Tadeu atende às causas impossíveis. São Jorge guerreia, permanentemente,
os dragões da maldade. São Pedro, sempre bondoso, mantêm sua caminhada
evangelizadora. São João Batista promove batizados, apagando o pecado original.
Tanto
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Luiz
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QUINCAS – E as Santas,
comadre?
NORMA – Essas, nada
mudaram. Estão cotidianamente aprimorando as suas virtudes. Dedicadas ao
exercício pleno da fé. Assusta-me que lá na Terra, Dilma Rousself, titular do
Ministério da Minas e Energia, já se proclame Santa e a sua secretária, Erenice
Guerra, havida como seu braço direito, aspire sua beatificação sumária. Enfim,
lá em baixo tudo é possível...
QUINCAS – Quer dizer que
os Santos de meia-tigela, os “cagados”, os feitos nas coxas foram os que se
destrambelharam?
NORMA – Exatamente. Só
agem mal os que chegaram aqui com suas deformações de caráter. Os vindos
honestos continuam limpos. São como os nossos políticos terrenos. Existem os
bons, dispostos a servir, unicamente, à causa pública. E coexistem juntamente
com aqueles, os maus. Esses, sedentos por entrarem na política para atuar em
benefício próprio.
(A
conversa é interrompida pelo soar do toque característico do berimbau. Ao mesmo
tempo, todos se levantam e dizem: é Camafeu de Oxóssi que, sem perda de tempo
assoma à porta todo vestido de branco, usando colares de contas verdes,
acompanhado de três dos seus discípulos, todos de dorso nus, vestindo calças
brancas e coronhas, portando instrumentos musicais).
CAMAFEU – Okê, meus reis!
Okê, mainha.
(Ao
tempo em que abraça a todos ritualisticamente, como uma ialorixá ou um
babalorixá, abraça uma filha-de-santo ou um filho-de-santo recebendo um
encantado, deseja axé a cada um dos presentes. Seus discípulos acompanham-no
nos festejos).
NORMA
–
Bem-vindos, irmãozinhos. Fiquem à vontade. Acomodem-se. A casa é pequena, mas
cabe todos que amamos.
CAMAFEU – Tem muita gente
reunida aqui, mas não sinto, pelo semblante de vocês, nada parecido com um
encontro social. Tem mais, é
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cheiro e jeito de conjuração. Trama.
Conluio. Posso estar enganado, mas, meu São Jorge me aconselha a ficar de
orelha em pé.
CARYBÉ – Não existe
maquinação alguma, mesmo porque, você bem sabe, não somos políticos. Somos
artistas. Nosso encontro foi meramente casual e, em acontecendo, aproveitamos
para falar sobre os últimos acontecimentos deste pedaço do Céu. Isso porque
estamos revoltados e decepcionados. Vendo a ética ser substituída pela mentira,
à verdade pelo engodo, à correção pela corrupção, o decoro pela lassidão dos
costumes.
CAMAFEU – Solta lá,
mainha, uma rodada da esquenta-por-dentro, da “arretada”. Eu e os meus meninos
estamos precisados dela. Na certa, meu compadre Quincas também.
(Ante
esse pedido, Quincas e os discípulos esfregam as mãos em sinal de
contentamento).
NORMA – Arre, gente! Só
me aparecem aqui paus-d’água.
CAMAFEU – Você tem razão,
meu rei. Vi, na Tvcéu, há bem pouco tempo, um Santo do segundo escalão, ou
melhor, um bem-aventurado, um neófito, ser detido por transportar milhares de
patacas celeste na cueca. Se o fato em si já era inusitado e contundente, o que
mais me chocou foram suas explicações para o crime flagrado. Disse ele: “o
dinheiro era frio, precisava ser esquentado e nada melhor para isso do que
colocá-lo na cueca”. Parece piada, mas não é. Esses meus meninos, esses
moleques, sentadinhos ali, já aprenderam a lição. Há alguns minutos, depois da
dança-demonstração de capoeira que fizeram na praça da matriz, e após
recolherem doações entre a plateia, vejam onde colocaram o dinheiro recebido.
Andem logo, rapazes. Mostrem onde...
(Os
três levantam-se, arriam as calças e mostram algumas cédulas de patacas dentro
das cuecas).
MIRABEAU – Apesar de
públicas, notórias e confessadas trampolinagens, um péssimo exemplo para a
sociedade, toda a publicidade do governo vem chancelada com o seguinte slogan:
Brasil, país de todos. Onde já se viu tamanha heresia! Desconjuro! Cruz credo!
Se só uns poucos se beneficiam das benesses que ele distribui.
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no céu quanto na terra
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DISCÍPULO
–
O povo mudou o slogan, meu rei. Substituiu-o por: Brasil, país de tolos.
(Depois
de esvaziarem a segunda garrafa de aguardente).
CAMAFEU – Pois é, diante
de tanto Santo confesso, enriquecido com propinas, mensalão, dinheiro advindo
de concorrências públicas dirigidas e com sobrepreços nelas embutidos, empréstimos
fraudulentos concedidos por terceiros a esses privilegiados, vem o Santo
presidente e diz que nada disso existe. Tudo é fuxico da oposição e da imprensa
inescrupulosa. Quanto ao mensalão, já virou refrão de música de carnaval. Este
Céu não tem mais jeito. Virou deboche.
DISCÍPULO – Isso dá samba.
Vamos lá, pessoal.
(Incontinente,
os três discípulos levantam-se e cantam acompanhados pelos seus instrumentos).
Você diz que mensalão
É refrão de carnaval.
Mensalão é roubalheira.
Você é um cara de pau.
(Camafeu
demonstrando autoridade).
CAMAFEU – Deixem de
patuscadas meus filhos. Sentem-se. Preciso dizer a que vim. Na verdade, meus
reis e mainha, trago-lhes convites para uma festa.
NORMA – Uma festa ou um
milagre presencial?
CAMAFEU
–
As duas coisas. O milagre foi a autorização dada para a realização da festa.
Não é que mãe Menininha conseguiu esse feito espantoso?! Ela vai abrir o
barracão em louvor a Oxóssi, na próxima quinta-feira. E ela pede que todos
estejam lá. Comida e bebida não faltarão.
(A essas
palavras os circunstantes, em coro, batem palmas e cantam).
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TODOS – Okê! Okê! Pai
Celeste. Nosso Santo Protetor. Viva! Viva! Uma festa. O céu vai tremer e não
vai ter “bundalelê”.
(Neste
instante, os discípulos, empunhando seus instrumentos, tocam acordes e cantam
músicas oriundas das rodas da capoeira, do samba de roda e do maculelê e, dois
deles evoluem pela casa mostrando seus gingados. O pano de boca, vagarosamente,
vai se fechando anunciando o fim do primeiro ato).
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SEGUNDO
ATO
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CENÁRIO
(O cenário é um típico barracão onde
se realizam as festas nas casas de candomblé. O teto enfeitado por bandeirolas
de papel reflete as cores de Oxóssi (verde e branco). Em um dos esconsos do
barracão, visualizam-se os atabaques – o rum, o rumpi e o lê – além de inúmeros
vasos de plantas ornamentais e ritualísticas (a exemplo, espada-de-ogum).
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Luiz
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NARRADOR
–
Depois de meses sem bater, sem fazer um xirê, Mãe Menininha conseguiu autorização
das autoridades celestiais para realizar uma festa em homenagem a Oxóssi. Todos
os preparativos para o evento foram cuidadosamente alcançados. As homenagens a
Exu ocorreram sem transtornos. Ninguém queria surpresas! Sendo esse um Orixá
dual, ao mesmo tempo bom e mau, companheiro prestativo, mas, algumas vezes,
afoito, destrambelhado, até mesmo corrupto e obsceno, o único Orixá capaz de
dialogar com os filhos e filhas-de-santo, faziam-se necessárias aquelas
cortesias. Caso elas não ocorressem, ninguém ousaria prognosticar como a festa
transcorreria. Portanto, fazia-se melhor prevenir que remediar. Laroiê, Laroiê!
Laroiê! Saudaram-no, a uma só voz, os homenageantes.
Como os convidados já estavam chegando, os
alabês prontos para bater seus tambores, as equédes ou filhas-de-santo
enfeitadas, os ogãs ou oficiantes, vestidas com suas melhores e mais belas
roupas ritualísticas, as ialorixás e babalorixás a postos, participemos dos
festejos.
(Abre-se
a cortina).
(Camafeu
de Oxóssi encontra-se em plena atividade recebendo os convidados. Chegam Jorge
Amado acompanhado de Quincas Berro d’Água, Pierre Verger, Mirabeau, Carybé,
Norma em companhia de Frida Kahlo e outros não menos importantes visitantes.
Enquanto ocorrem as saudações sociais de praxe, há rapapés entre os convivas,
as equédes defumam todo o ambiente com incenso perfumado – ervas de Oxóssi).
NORMA – Compadre
Camafeu, esta senhora é Frida Kahlo. Ela e o marido, Diego Rivera, foram
considerados, na Terra, na Cidade do México, os maiores artistas plásticos do
século XX, naquelas bandas. Ela nunca assistiu a uma festividade desta. Devido
a um acidente em que foi vítima, desde então, sofre dores insuportáveis nas
costas. Por isso resolvi trazê-la. Quem sabe se Oxóssi não se compadece dela e
alivia seu padecimento?
CAMAFEU – Deixa estar. Se
meu pai Oxóssi puder, ela sairá daqui curada. E ele pode...
(Dirigindo-se
a Carybé).
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
CAMAFEU – Meu irmão, nossa
festa será de arromba. A maior que o Céu já viu. Nós que temos fé nos mesmos
preceitos vamos acreditar que isso aconteça. E como você conhece todos os
Santos, sabe ser esse meu desejo mais que possível.
CARYBÉ – Alto lá! Conheço
os nossos Santos. Oxóssi, Oxalá, Xangô, Ogum, Iansã: os nascidos do poder de
Olorum. Dos fajutos, dos Santos mequetrefes que estão nos governando, não faço
ideia. Principalmente dos que dizem que a mãe nasceu analfabeta, que nós botamos
“urucubaca e olho gordo” no governo deles, dos recebedores de “aeromóveis” Land Rover de presente, dos tomadores de
empréstimos fantasmas para corromper políticos, dos que nada sabem, nada ouvem
e nada veem. Desses quero distância. Não rezo no credo deles. Nem poderia. Sou
um homem honesto.
(Mirabeau,
que a tudo ouvia, mete-se na conversa).
MIRABEAU – Eu sou como
Simão Sinai de Mântua – antes de tudo católico, depois luterano, depois
calvinista, depois outra vez católico, mas sempre um ateu. Basta substituir
ateu por artista. Dos Santos, só gosto é
de colecionar suas imagens esculpidas por artífices dos séculos passados e de
pintar Madonas.
CAMAFEU – Peço desculpas,
meus irmãos. Tenho assuntos a resolver. Vou falar com a Mãe Menininha
intercedendo pela pintora, dona Frida Kahlo. A um pedido da minha comadre
Norma. Não descanso antes de cumpri-lo.
(Camafeu
afasta-se, toma das mãos da pintora, beija-as e juntinho ao seu ouvido
sussurra-lhe algo).
FRIDA – Esta bien señor
Camafeu. Estoy a su disposición. Voy a tenir Oxóssi em mi corazón.
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
(Camafeu
dirige-se a Mãe Menininha, fala-lhe com recato, obsequioso respeito, e dela
recebe uma bênção e um menear de cabeça, como se expressasse assentimento.
Enquanto isso o adjá (sino) avisa o início da festa. Os atabaques rugem
acompanhados pelo ganzá e pela cabaça oca. As equédes, em roda, começam o xirê,
ou roda de força, invocando os Orixás, cantando o ponto).
“Banda eu, como gira
Como gira dentro de um gongá.
Gira com todas as giras
Gira este filho da fé.
Banda eu, como gira
Salvando estes filhos
De pai Oxóssi.
Abrimos nossa gira
Pedimos de coração
Ao nosso pai Oxóssi
Para cumprir nossa “missão.”
(Neste
instante, uma das equédes vai para o meio do xirê e começa a dançar
violentamente e desnuda-se. Uma dança obscena, num ritmo tão alucinante que os
mais exímios alabês tinham dificuldades em percutir seus atabaques para
acompanhá-la em suas evoluções).
TODOS
OS ASSISTENTES A UMA SÓ VOZ – Xi! Valha-nos Olorum! Valha-nos Oxóssi! Foi Exu quem
desceu.
(Mãe
Menininha sai do seu lugar vai até o cavalo (a equéde) e põe a mão em sua
cabeça, depois no coração e deita falação firme, bem composta).
MÃE
MENININHA
– Vá embora compadre Exu. A festa não é sua. Nossa obrigação com você foi
cumprida. Dê lugar a Oxóssi e aos outros encantados que desejam baixar.
(A
equéde responde com voz grossa, explícita e compassada).
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
EQUÉDE
(EXU)
– Vou nada. Dessa vez não fui o último a chegar. Fui o primeiro e serei o
derradeiro a sair. Eta! Cavalo bom este que estou montado. Escoiceia, mas é
porreta. É dos que gosto de domar.
MÃE
MENININHA –
Eu o intimo a ir embora. Você quer acabar com a festa que tanto lutei para
realizá-la, compadre? Seja razoável, desmonte do cavalo. Melhor, eu o ordeno,
sem outras considerações, agora mesmo.
EQUÉDE
(EXU)
– Não adianta exigir-me tal atitude. Não vou atendê-la, nem a ninguém. Tenho,
também, meus direitos. Para submeter-me à sua vontade quero e vou dar o meu
recado.
MÃE
MENININHA –
E se der o seu recado, você promete ir de vez?
(A
equéde (Exu) se desvencilha da ialorixá e sai abraçando as demais equédes e os
assistentes, sem dar uma resposta definitiva à Mãe Menininha).
EQUÉDE
(EXU) –
Quero charuto e cachaça, dos bons. Vocês parecem uns filhos-da-puta. Por que
não oferecem nada aos visitantes? Onde fica a cordialidade nesta casa? Guardada
na dispensa? Cercada pela sovinice? Ou enfiada no “cu” dos “putos” que aqui
estão?
MÃE
MENININHA –
Laroriê! Laroriê! Laroriê! Compadre Exu. Você foi o primeiro a receber os mimos
desta casa, ademais foi muito considerado. Oferecemos ao compadre tudo o que
tínhamos de melhor. Charutos, cachaça, a comida que aprecia, pipoca e farofa de
dendê, a nossa saudação, o nosso acato por sua figura, enfim, respeito e
admiração. Se tudo isso não bastou, aqui tem mais (entrega à equéde (Exu) a cachaça pedida e os charutos). Dou-lhe o
que pediu sob o compromisso de que logo partirá. Avexe-se para dizer a que
veio. Passadas as explicações, os minutos, que a partir de agora lhe
concederei, não terei contemplação. Ponho-lhe no olho da rua.
(A
equéde - (Exu) - se acalma, toma uma talagada da cachaça, acende o charuto e
após algumas baforadas, desabafa).
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
EQUÉDE
(EXU)
– Chamam-me de Tranca-Ruas, Zé Pelintra, Exu Calunga, Maria Padilha, Cigana
Devassa. Têm-me como desordeiro, moleque, irreverente. Mau, pornográfico. Dizem
todos vocês, seus sacanas, que eu, além de dar nós em pingos d’água, carrego
azeite de dendê em mocó ou numa peneira sem derramar uma só gota. Contam as
mais estapafúrdias histórias sobre mim. Tem uma que ouvi outro dia: a de que
“matei um passarinho ontem com a pedra que atirei hoje”. Confundem-me até com o
tinhoso. Alguns me apupam. Vaiam-me. Querem distância de mim. Contudo não vejo
a mesma reação de vocês em relação a essa “canalhada” que governa o Céu
atualmente. Ela promete, mente, engana, furta despudoradamente, e vocês a aplaudem.
Desrespeita a legislação celeste e vocês fingem não ver. Chama o que a lei
define como pecado, crime celestial, de simples prática usual da vida política
e vocês não se dão conta do embuste. Envia dinheiro, nosso dinheiro, desviado
dos cofres públicos para contas secretas em paraísos fiscais, engordando o
patrimônio de todos os partícipes da “mutreta”, e o que vejo é o silêncio de
todos. Serão vocês uns frouxos? A indignação e o sangue não lhes correm nas
veias? Por que não reagem? Não dizem: basta? Será por medo desses Santos
“fajutos”? Acomodação? E depois ainda afirmam, com a mesma cara de pau dos
participes da gangue, que sou eu e não eles que vivem a embrulhar água em papel
crepom. Que é Exu o safado e não os membros dessa corja destemperada. Que eu
sou o devasso, mas são eles que praticam, sem qualquer freio moral ou pudor, a
libidinagem, usando como palco de suas travessuras os melhores e mais caros
hotéis da cidade. Segundo voz corrente, para a melhoria e oficialização desse
saudável entretenimento, já pensam em criar a “Xoxotobras”, a “Bundabras”, a
“Peitobras”. Não é a Petrobras. Não confundam. Embora ambas tenha slogan
parecidos. Enquanto uma afirma que o petróleo é nosso, a outra diz: o peito é
nosso. Acrescentando: os sem silicone. Tudo isso sob a alegação de que agem em
defesa dos bens culturais celestes.
Estou de partida. Dei o meu recado.
Desabafei como pretendia. Só lamento ter de desmontar desse cavalo fogoso. Bom
pra cacete. Mas algum dia, quem sabe se não montarei, numa camarinha qualquer
da eternidade, nessa égua de ancas largas e seios firmes, em condições mais
favoráveis?
(Nesse
instante, a equéde deixa de evoluir e a ogã a encaminha para a camarinha. Mas a
voz de Quincas Berro d’Água se faz ouvir).
Tanto
no céu quanto na terra
Luiz
Carlos Facó
QUINCAS – O compadre Exu
tem razão, minha gente. Nosso pedaço do Céu virou um caos administrativo,
ético, moral. Só os Santos prosperam por aqui. Os Santos e os banqueiros. Os
demais vivem da bolsa família celeste, tão chocha como os óbolos arrecadados
nas igrejas. Isso não pode continuar. Há vida, mas não há alegria. Os pobres,
como sempre, estão pobres e os ricos, sempre mais ricos. As desigualdades estão
cada vez mais acentuadas. A educação, sem esperanças. A saúde, corroída pela falta
de saneamento básico. As estradas intransitáveis, destruídas pela ação do uso.
A ética, chafurdada na lama da corrupção. A vergonha, enterrada sem “choro nem
vela”.
(Olhando,
apontando para o infinito e com as mãos juntas como se orasse, arremata).
QUINCAS – Por que será,
meu Deus, que o Senhor não vê tudo isso?
(Juntamente
com Quincas, todos respondem em uníssonos)
–
Não vê porque Deus é brasileiro.
NARRADOR – E a festa
continuou sem maiores arrepios ou surpresas. Frida Kahlo está pintando com o
mesmo prazer e alegria como fazia na Terra. Curou-se do sofrimento que
suportara em vida, graças à intercessão de Oxóssi.
Se o xirê não foi o mais grandioso visto no
Céu, pelo menos, até hoje, tem sido o mais comentado.
Essa comédia não é uma comédia de costumes.
Vamos defini-la como de maus costumes.
(Fecha-se
a cortina).
UM
DIA O FIM DESTA HISTÓRIA OCORRERÁ, OS CORRUPTOS CELESTIAIS IRÃO PARA A CADEIA.
SERÁ?
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