Artigo de João Ubaldo Ribeiro
Para
que mais, a não ser desfrutar desses privilégios, não se sabe, porque não
existe projeto, além da cantilena sobre justiça social, saúde para todos,
educação de qualidade e outras generalidades com as quais todos concordam. Que
modelo de estrutura socioeconômica queremos, que Estado queremos, que País
queremos, como chegaremos lá? Que propostas concretas são oferecidas? Ninguém
diz – e os programas partidários, como os próprios partidos, causam
constrangimento, pela ausência de ideias e compromissos sérios. O negócio é se
eleger e se abancar, depois se vê o que se pode fazer, conforme a necessidade e
a serventia para a permanência no poder. Na pátria, como se falava antigamente,
ninguém se mostra muito interessado.
Tudo
o que se faz hoje é visando às eleições, ou seja, a continuação no poder ou
ascensão a ele. Descobriram agora essa lambança das concorrências em São Paulo,
que não é propriamente inédita na história nacional, e grande parte da reação
parece do tipo “viu, viu? nós rouba, mas cês também rouba!”. Todo mundo na vida
pública rouba, o que pode não ser uma afirmação justa, mas já virou axioma na
descrição de nossa realidade e um dado importante em qualquer equação política.
Invoca-se o princípio da falcatrua consuetudinária. Ou seja, se é ilegal, mas costumeiro,
prevalece o costume e é considerado sacanagem e falta de coleguismo fazer
denúncias ou querer punições. Que outras novidades têm para nos segredar? Quem
não aposta que nada vai dar em nada?
O
Estado às vezes parece ter as pernas bambas. Recomeçou o dramalhão do
julgamento do mensalão e muita gente não entende mais nada, a começar por esse
singular minueto processual, através do qual o Supremo Tribunal Federal vira
penúltima instância, dia sim, dia não. Todo mundo quer saber se as sentenças
emanadas do Supremo eram à vera ou não eram, devia ser simples de responder.
Essa novela vai por aí, se arrastando já há não se sabe quanto tempo, todo dia
aparece uma notícia inesperada e creio que nenhum de nós se surpreenderá se,
esta semana, for noticiado que a decisão final do Supremo estará condicionada à
resposta a uma consulta feita pela Câmara de Deputados, ou coisa assim, o que,
com a gripe que atacou um ministro, o impedimento de outro, e o atraso de
outro, leva o caso, para que tenhamos certeza de uma decisão justa, para depois
do recesso do Judiciário, no próximo ano.
Vimos
também a cena envaidecedora em que nosso ministro das Relações Exteriores se
manifestou, conforme ouvi num noticiário, “com dureza”, sobre a espionagem
cibernética americana, numa fala dirigida em pessoa ao secretário de Estado
John Kerry. Disse umas verdades na cara do gringo, que o escutou com atenção,
cortesia e respeito, para logo após retrucar que nos devotava desmesurado amor
e descomedida amizade, mas continuaria a espionar e, acreditássemos, era para o
nosso próprio bem. Se não gostarmos, claro, temos todo o direito de nos queixar
ao bispo, ele compreende.
Esse
mesmo ministério, aliás, deve estar às voltas com o perdão de dívidas
milionárias que alguns países africanos têm com o Brasil. Comenta-se que isso é
por causa do esquerdismo do atual governo, notadamente em sua política externa.
Comenta-se também que o perdão dessas dívidas possibilita que os governos
beneficiados fechem novos contratos com empreiteiras brasileiras. É o que dá o
envolvimento com setores notoriamente de esquerda, como nossas empreiteiras,
essa linha avançada do socialismo. Há apenas um ligeiro embaraço na coisa, pois
se sabe que as empreiteiras, com toda a certeza, vão receber o dela, mas os
financiadores, ou seja, nós, vamos contribuir mais uma vez para os crimes e as
contas bancárias de déspotas, genocidas e saqueadores de riquezas nacionais.
No
cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a complexa coreografia
governamental se tem exibido em torno do trem-bala, que o pessoal lá do boteco
deu para chamar “trem-bala perdida”. O trem-bala é um exemplo notável de
aumento de custos recordista, talvez sem precedentes em todo o mundo, porque já
perdemos a conta de quantas vezes esses custos foram revisados para cima. E
agora li não sei onde, maravilhado com os nossos mecanismos de distribuição de
renda, que, mesmo que se venha a desistir do trem-bala, o custo dele já terá
sido mais ou menos um bilhão de reais. Não entendi direito, mas não se pode deixar
de manifestar admiração.
Diante
dessa sarabanda agitada e da luta para não largar o osso, lembro-me de quando
eu era menino em Itaparica, punha um pedaço de rapadura no chão e ficava
esperando formigas brotarem do nada, várias espécies que só tinham em comum
gostar de açúcar. Umas ruças, grandalhonas, eram minhas favoritas, porque
ficavam frenéticas e não paravam um segundo, para lá e para cá, em cima da
rapadura, apesar de que, volta e meia, uma parecia se saciar e caía imóvel –
dura para trás, dir-se-ia. Eu não sabia, mas estava vendo o Brasil, só que as
formigas não se saciam e quem cai para trás somos nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário