Literatura: conto
Por Leandro
Andrade
Eu e minhas
circunstâncias! Meus bons companheiros, meus deuses domésticos! No verso de
Arnaud, uma síntese: "eu sou o espaço onde estou…"
A sala branca repleta de livros, formando um todo maior que as partes. A porta da rua, também branca, entreaberta, sugere a possibilidade da fuga iminente. O que seria inútil, diante das circunstâncias: seja por onde venha andar, carregarei comigo o espaço-tempo, dobrado e guardado em uma caixinha de surpresas.
A sala branca repleta de livros, formando um todo maior que as partes. A porta da rua, também branca, entreaberta, sugere a possibilidade da fuga iminente. O que seria inútil, diante das circunstâncias: seja por onde venha andar, carregarei comigo o espaço-tempo, dobrado e guardado em uma caixinha de surpresas.
Sobre o desejo, a tentação, e o
que pode acontecer com o porvir.
N. deste Blog: Eis um conto que merece ser lido quer por sua criatividade, quer pela
sua construção.
O Diabo me tentou, vejam só, como de costume,
na madrugada, em frente à catedral.
De chofre, não bastassem nossos contumazes
encontros ao longo dos séculos, ofereceu-me o contrato padrão: dez anos de
sucesso, riqueza, saúde, juventude, boniteza e pau duro.
Dei risada. Desde a invasão da América,
quando aqui cheguei, desembarcado daquela nave que era o verdadeiro inferno,
com os cabelos tomados pelos piolhos e a pele escamada das coceiras mais
imundas, desde nosso primeiro colóquio, vinha enganando o Chifrudo com meus
ingênuos ardis que funcionavam apenas graças a imensurável soberba do Capeta.
– Dez anos não me servem. – disse – São cem
ou nada.
– Nada ortodoxo. – replicou o Pé de Bode –
Serás, ao final, um velho decrépito a desgostar de uma longa e decadente vida.
– Como sempre, incluem-se as cláusulas do
sucesso, da riqueza, da saúde, da juventude, da boniteza e do pau duro.
O Sem Noção, como o andam nomeando mais
modernamente, titubeou. Porque eu havia trazido comigo a sífilis que matara os
gentis selvagens como mosquitos, minh’alma era-lhe valiosa. Assentiu...
– Sem mais exigências descabidas... terás teu
século de glórias, isso se ainda existir planeta ao final de uns poucos anos
mais.
– Conto com a engenhosidade dos meus atuais
contemporâneos. Ou, se tudo falhar, a mão d’Ele nunca falha, nunca nos falta na
beira do abismo.
Estremeceu, sabendo da verdade contida em
minhas palavras.
– Assina com teu sangue, e o acordo estará
selado.
Ocorreu-me então mais uma cláusula leonina,
como um golpe de misericórdia:
– Satisfação garantida, ou minh’alma de
volta…
– Satisfação é meu nome do meio. – o
Cramulhão rosnou, já sem convicção.
– Uma última coisa, meu caro negociante das
trevas. A quero comigo ao longo de cada dia dos anos que conformarão este novo
século das luzes. Com muita saúde, juventude, boniteza e xoxota molhada.
Eu havia, afinal, depois de quinhentos anos,
sucumbido ao amor. Depois de incontáveis paixões, todas destruídas pela
proximidade da entrega de minh’alma ao Capiroto, já não podia conceber um dia
apenas longe daquela senhorita de cabelos vermelhos, que cheirava a Coco Noir e
me causava arrepios.
– Muito, muito heterodoxo. – suspirou – Isso
mexe com a alma de outrem, e isso vai contra as regras. Acordo assim nunca
antes foi feito. Talvez esteja além até de minha jurisdição.
Não contive o júbilo pelo xeque-mate.
– Teu poder tem limites, então? Consulta,
pois, o advogado do Diabo!
– Lembra da pedra que Ele não pode mover,
graças ao famoso paradoxo? Para mim, é pedregulho…
O Coisa Ruim não perdia a pose facilmente.
Gostava de arrotar superioridade, mesmo quando as coisas não lhe iam bem. Um
vento frio varreu os degraus da catedral, como um sinal de sua rendição. Por
fim, falou:
– Será como queres. Ela estará contigo ao
longo de cada dia de cada ano de todo um século. Mais exatamente, trinta e seis
mil quinhentos e vinte e cinco dias. Permitiu-se um riso abafado:
– Deverias ter mais cuidado com o que desejas
diante do Rabudo.
E foi-se, deixando o nauseante rastro de enxofre.
E pude ouvir por muito tempo o sarcástico risinho da mais urdida ironia.
Senti, pela primeira vez, um desassossego com
o que havia sucedido. Tentei, sem conseguir, afastar o incômodo pensamento que
me tomava conta da razão.
Mas eu havia, afinal, conseguido meu intento.
Mais cem anos por aqui e por aí, embriagado de sucesso, riqueza, saúde,
juventude, boniteza e pau duro. E com Lu ao meu ladinho, com seu cheiro de
sexo, seu cabelo de fogo, seus beijos que me causavam calafrios na espinha…
Minha mente ficou, de súbito, congelada.
Calafrios de medo e terror paralisante diante da insana visão do amor que me
aguardava pelos próximos trinta e seis mil quinhentos e vinte e cinco dias.
– Chama-me apenas Lu… – ela dissera, quando
nos encontramos pela primeira vez, na madrugada, em frente à catedral.
E sorrira, como a vejo sorrir agora. Seu
sorriso misturando-se ao riso medonho do Medonho, que vai se tornando uma
gargalhada como uma chuva de agulhas.
– Lúcifer é teu nome, então… – deixei escapar
as palavras que me sufocavam.
A lua sumiu entre nuvens que surgiram do
nada. E a algazarra de uma multidão de demônios ecoou na negra madrugada. O
Diabo havia, finalmente, vencido o último round.
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