Literatura: crônica
Por ADLLA RIJO
É escritora, autora de contos como "O dogma
feminino" e "Psicanalhismo".
Se pensar é uma
atividade inerente ao homem, conforme sublinhado por Descartes, em sua máxima
“cogito ergo sum”, ou seja, penso, logo existo, e considerando o desenrolar de
nossa aventura humana, em que sentido podemos compreender a afirmação do maior
poeta lusitano?
Devotado à natureza, Alberto Caeiro, um dos
heterônimos de Fernando Pessoa, viveu quase toda a sua existência no campo,
como declarou seu próprio inventor. Com efeito, aquele é o poeta que aceita o
mundo exatamente como ele é, sem ter a necessidade de pensar ou investigar os
fenômenos e suas causas. Valoriza apenas a observação através dos sentidos,
desconsiderando passado - porque recordar é atraiçoar a natureza, que é apenas
o agora, e futuro - já que este é recinto de miragens.
É bem verdade que sua poesia encerra uma
tentativa de negar a metafísica, atribuindo-se-lhe criticamente uma
antimetafísica: aquela de não pensar em nada. Observa-se, portanto, o propósito
do poeta em rejeitar a orientação constante da humanidade na busca de um sentido
transcendente em tudo aquilo que existe, e promover uma reconciliação do homem
com a natureza, libertando-o de sua relação de submissão para com a necessidade
de compreensão dos entes e dos fatos.
Em “O guardador de Rebanhos” (poema II),
Alberto Caeiro, embora afirme que não tem filosofia, revela a sua: O
meu olhar é detido como um girassol./ Tenho o costume de andar pelas estradas /
Olhando para a direita e para a esquerda,/E de vez em quando olhando para
trás.../ E o que vejo a cada momento/ É aquilo que nunca antes eu tinha visto,/
E eu sei dar por isso muito bem.../ Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma
criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../ Sinto-me nascido a
cada momento/ Para a eterna novidade do Mundo.../ Creio no mundo como num
malmequer,/ Porque o vejo. Mas não penso nele/ Porque pensar é não
compreender.../ O mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente
dos olhos)/ Mas para olharmos para ele e estamos de acordo.../ Eu não tenho
filosofia; tenho sentidos.../ Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela
é,/ Mas porque a amo, e amo-a por isso/ Porque quem ama nunca sabe o que ama/
Nem sabe por que ama, nem o que é amar.../ Amar é a eterna inocência, / E a
única inocência não pensar...
À primeira vista parece paradoxal que um
pensador do quilate de Fernando Pessoa, tenha propalado, ainda que por
intermédio de seu heterônimo, que “pensar é estar doente dos olhos”. Contudo,
devemos atentar para a questão de que se levarmos a necessidade de pensamento
até as últimas consequências, e passarmos a analisar todos os acontecimentos e
circunstâncias de um ponto de vista puramente individual e egoístico,
acabaremos por nos convencer de determinadas ideias estapafúrdias, como por
exemplo aquela de que não vale a pena viver, uma vez que no final da trajetória
é a morte que nos espera.
Em suas palavras, vê-se que a contemplação da
natureza reveste-se de elemento de sabedoria, em consonância com a filosofia
praticada na antiguidade. Olho e as coisas existem./ Penso e existo só
eu (“Poemas Inconjuntos”).
Com efeito, o poeta heterônimo também nos faz
enxergar que, se abraçarmos a intelectualidade e a racionalidade ao extremo,
seremos impregnados de uma insensibilidade doentia e enganadora, cuja
implicação maior é o egocentrismo e o distanciamento do universo do qual somos
parte. Já a palavra mítica, ao contrário, não pensa, não só no sentido de não
abrir espaço para o questionamento radical, mas no sentido de que, por ser
mítica, impede eficientemente esse propósito ao pensamento: ela é puro poetar,
configura-se em mera poesia.
Se pararmos para pensar - e aqui eu sugiro
que o pensamento é salutar, verificamos que as pessoas que não estão em paz
consigo mesmas, e especialmente aquelas que são atingidas por um sofrimento
psíquico expressivo e patológico, são as primeiras a perderem a capacidade de
ver as coisas como elas se apresentam na realidade, e passam a se voltar
unicamente para elas próprias, consumidas, muitas vezes, por pensamentos de
intensa ruminação.
Importa verificar que o poeta nasceu,
conforme registro de seu criador, em 1889, período que ultrapassa o início da
revolução científica e industrial. Sendo assim, levando-se em conta o
desenvolvimento tecnológico dos últimos tempos, assim como a chamada Gestell (termo
cunhado por Heidegger, traduzido em português como “armação” ou
“enquadramento”, na abordagem da questão da técnica) presente em nossos dias,
somos forçados a reconhecer o quão verdadeiro se caracteriza o aforismo
inscrito no poema de Caeiro, ante a seguinte constatação: o ser humano perde
paulatinamente a capacidade de se relacionar de forma salubre com tudo aquilo
que o gerou, e a impossibilidade de enxergar o sublime é uma patologia que se
alastra em proporções devastadoras, comprometendo a aventura humana, que nada
mais é do que um desdobramento da própria natureza.
O pensamento calculista e instrumental que
tomou conta da humanidade, especialmente com o “progresso” tecnológico,
compromete cada vez mais o pensamento reflexivo e a capacidade de contemplação.
Aliás, o que possibilita o desenvolvimento da técnica não é, em si, algo
técnico, mas um saber, enfatiza Heidegger. Tal saber, conquistado através de um
direcionamento no ato de pensar, alargou-se de forma gigantesca em comparação
aos demais. A permanente exploração e o crescente controle sobre tudo o que é
vivo constituem, agora, o principal objetivo a serviço do qual a consciência se
ocupa. A necessidade de poder, amparada e alimentada por um sistema devorador,
que é o capitalismo, ultrapassa todos os limites toleráveis pela physis.
Ante essa tragédia já delineada, considerando
que a intuição é um recurso humano que depende fundamentalmente da contemplação
e da introspecção - e que por isso é atributo concedido a poucos, sua tendência
não há de ser outra que não o rareamento. Tal assertiva não é uma simples
previsão, mas a certificação de um fato verificável pelo curso da história: não
se fazem mais artistas, literatos e cientistas como antigamente.
Não obstante, dada a diversidade dos entes
que compõem a espécie humana, penso que, por hora, ainda podemos acreditar que,
enquanto fizermos parte deste empreendimento (a humanidade), sempre existirão,
ainda que de maneira cada vez mais reduzida, indivíduos cuja visão não seja
deteriorada e incapacitada pelo predomínio do calculismo ofuscante e da tirania
pensante, por manterem os olhos sempre abertos.
(Imagens: Google)
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