sexta-feira, 27 de maio de 2016

PENSAR É ESTAR DOENTE DOS OLHOS (ALBERTO CAEIRO - HETERÔNIMO DE FERNANDO PESSOA)



Literatura: crônica


É escritora, autora de contos como "O dogma feminino" e "Psicanalhismo".


Se pensar é uma atividade inerente ao homem, conforme sublinhado por Descartes, em sua máxima “cogito ergo sum”, ou seja, penso, logo existo, e considerando o desenrolar de nossa aventura humana, em que sentido podemos compreender a afirmação do maior poeta lusitano?





Devotado à natureza, Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, viveu quase toda a sua existência no campo, como declarou seu próprio inventor. Com efeito, aquele é o poeta que aceita o mundo exatamente como ele é, sem ter a necessidade de pensar ou investigar os fenômenos e suas causas. Valoriza apenas a observação através dos sentidos, desconsiderando passado - porque recordar é atraiçoar a natureza, que é apenas o agora, e futuro - já que este é recinto de miragens.
É bem verdade que sua poesia encerra uma tentativa de negar a metafísica, atribuindo-se-lhe criticamente uma antimetafísica: aquela de não pensar em nada. Observa-se, portanto, o propósito do poeta em rejeitar a orientação constante da humanidade na busca de um sentido transcendente em tudo aquilo que existe, e promover uma reconciliação do homem com a natureza, libertando-o de sua relação de submissão para com a necessidade de compreensão dos entes e dos fatos.
Em “O guardador de Rebanhos” (poema II), Alberto Caeiro, embora afirme que não tem filosofia, revela a sua: O meu olhar é detido como um girassol./ Tenho o costume de andar pelas estradas / Olhando para a direita e para a esquerda,/E de vez em quando olhando para trás.../ E o que vejo a cada momento/ É aquilo que nunca antes eu tinha visto,/ E eu sei dar por isso muito bem.../ Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../ Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do Mundo.../ Creio no mundo como num malmequer,/ Porque o vejo. Mas não penso nele/ Porque pensar é não compreender.../ O mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos)/ Mas para olharmos para ele e estamos de acordo.../ Eu não tenho filosofia; tenho sentidos.../ Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,/ Mas porque a amo, e amo-a por isso/ Porque quem ama nunca sabe o que ama/ Nem sabe por que ama, nem o que é amar.../ Amar é a eterna inocência, / E a única inocência não pensar...
À primeira vista parece paradoxal que um pensador do quilate de Fernando Pessoa, tenha propalado, ainda que por intermédio de seu heterônimo, que “pensar é estar doente dos olhos”. Contudo, devemos atentar para a questão de que se levarmos a necessidade de pensamento até as últimas consequências, e passarmos a analisar todos os acontecimentos e circunstâncias de um ponto de vista puramente individual e egoístico, acabaremos por nos convencer de determinadas ideias estapafúrdias, como por exemplo aquela de que não vale a pena viver, uma vez que no final da trajetória é a morte que nos espera.
Em suas palavras, vê-se que a contemplação da natureza reveste-se de elemento de sabedoria, em consonância com a filosofia praticada na antiguidade. Olho e as coisas existem./ Penso e existo só eu (“Poemas Inconjuntos”).
Com efeito, o poeta heterônimo também nos faz enxergar que, se abraçarmos a intelectualidade e a racionalidade ao extremo, seremos impregnados de uma insensibilidade doentia e enganadora, cuja implicação maior é o egocentrismo e o distanciamento do universo do qual somos parte. Já a palavra mítica, ao contrário, não pensa, não só no sentido de não abrir espaço para o questionamento radical, mas no sentido de que, por ser mítica, impede eficientemente esse propósito ao pensamento: ela é puro poetar, configura-se em mera poesia.
Se pararmos para pensar - e aqui eu sugiro que o pensamento é salutar, verificamos que as pessoas que não estão em paz consigo mesmas, e especialmente aquelas que são atingidas por um sofrimento psíquico expressivo e patológico, são as primeiras a perderem a capacidade de ver as coisas como elas se apresentam na realidade, e passam a se voltar unicamente para elas próprias, consumidas, muitas vezes, por pensamentos de intensa ruminação.
Importa verificar que o poeta nasceu, conforme registro de seu criador, em 1889, período que ultrapassa o início da revolução científica e industrial. Sendo assim, levando-se em conta o desenvolvimento tecnológico dos últimos tempos, assim como a chamada Gestell (termo cunhado por Heidegger, traduzido em português como “armação” ou “enquadramento”, na abordagem da questão da técnica) presente em nossos dias, somos forçados a reconhecer o quão verdadeiro se caracteriza o aforismo inscrito no poema de Caeiro, ante a seguinte constatação: o ser humano perde paulatinamente a capacidade de se relacionar de forma salubre com tudo aquilo que o gerou, e a impossibilidade de enxergar o sublime é uma patologia que se alastra em proporções devastadoras, comprometendo a aventura humana, que nada mais é do que um desdobramento da própria natureza.
O pensamento calculista e instrumental que tomou conta da humanidade, especialmente com o “progresso” tecnológico, compromete cada vez mais o pensamento reflexivo e a capacidade de contemplação. Aliás, o que possibilita o desenvolvimento da técnica não é, em si, algo técnico, mas um saber, enfatiza Heidegger. Tal saber, conquistado através de um direcionamento no ato de pensar, alargou-se de forma gigantesca em comparação aos demais. A permanente exploração e o crescente controle sobre tudo o que é vivo constituem, agora, o principal objetivo a serviço do qual a consciência se ocupa. A necessidade de poder, amparada e alimentada por um sistema devorador, que é o capitalismo, ultrapassa todos os limites toleráveis pela physis.
Ante essa tragédia já delineada, considerando que a intuição é um recurso humano que depende fundamentalmente da contemplação e da introspecção - e que por isso é atributo concedido a poucos, sua tendência não há de ser outra que não o rareamento. Tal assertiva não é uma simples previsão, mas a certificação de um fato verificável pelo curso da história: não se fazem mais artistas, literatos e cientistas como antigamente.
Não obstante, dada a diversidade dos entes que compõem a espécie humana, penso que, por hora, ainda podemos acreditar que, enquanto fizermos parte deste empreendimento (a humanidade), sempre existirão, ainda que de maneira cada vez mais reduzida, indivíduos cuja visão não seja deteriorada e incapacitada pelo predomínio do calculismo ofuscante e da tirania pensante, por manterem os olhos sempre abertos.
(Imagens: Google)



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