O DIA DOS ASSOMBROS
e caía n’água com óculos , pé-de-pato , uma faca afiada de quarenta centímetros presa à perna , precaução contra tubarão e barracuda , chamada de tigre-do-mar, bicho traiçoeiro e perigoso . A novidade era uma nadadeira que inventara, que lhe dava grande velocidade ao nadar . Enfiada nas mãos e unindo os dedos por uma membrana resistente feita de bucho de boi , era semelhante às mãos e os pés do sapo . Nunca fora atacado por peixes grandes e ferozes . Brincava com os pescadores , dizendo que ele era da família , vivente na terra , é certo , mas também muito querido dos seus parentes do mar . O povo achava graça , mas no fundo não tirava da cabeça que aquele homem tinha parte com alguma coisa sobrenatural . Com o diabo não era , porque se tratava de uma pessoa boa que nunca fizera mal a alguém . O tempo todo era só escrever e nadar , nadar e escrever . Se não era com o diabo , então com quem seria? Com um ente poderoso e desconhecido , ou com a própria rainha do mar ? A pergunta ficava sem resposta e a dúvida continuava.
- Hum! Tem coisa , tem coisa ! - estavam certos , embora não soubessem o que era .
Será que desta vez também nada aconteceria? – se perguntavam. Não era possível , pois , fazia dez anos , que a cada 20 de dezembro , se esperava por algo assombroso . E neste ano , quando o Escrevinhador completava 80 anos , justo quando seu aniversário caía num domingo , dia propício a milagres , não poderia haver engano . Já um bom número de pessoas impacientes deixara a praça , algumas até revoltadas, se sentindo enganadas mais uma vez . A maioria , entretanto , acreditava e esperava. Era uma questão de fé e de curiosidade em presenciar o assombro , como diziam.
O sol já se inclinava a caminho do mar , onde antes de dormir brindava o mundo com um espetáculo luminoso de mil cores , crepúsculo de beleza indescritível . A ansiedade aumentava. Os mais ponderados argumentavam que o dia só termina à meia-noite e não se pode correr com o tempo , fato aceito sem contestação . Que a segunda-feira ficasse bem quietinha, esperando no seu canto . Aliás , como todo mundo está cansado de saber , a segunda é o pior dia da semana , que começa com a tristeza do entardecer do domingo . Entretanto , os assombros não têm hora para acontecer e vêm quando menos se espera . Tudo é possível , até mesmo o impossível , como , por exemplo , Napoleão virar gaivota e sumir no céu ? Ou , quem sabe, mergulhar no mar e sumir ? Ele não imitava o golfinho com perfeição , igualzinho, igualzinho, sem tirar nem por , inclusive com aquele divertimento de saltar para fora d’água , se revirando todo no ar , dando saltos mortais como trapezista de circo ?
- Até meia-noite , este domingo se garante e não vai falhar . Podem esperar para ver ! – afirmavam os pescadores
Napoleão, imperturbável , continuava a escrever debaixo da frondosa mangueira e não tomava conhecimento da inquietação dos curiosos . Havia uma novidade , porém . Ali não estava apenas sua mesa onde colocava a máquina de escrever e as laudas , mas outra bem maior e mais firme , sobre a qual estava o fruto do trabalho diuturno de 50 anos , o livro , com o título singular : “Assim Caminham os Seres Viventes ”. Os volumes ,
separados por capítulos , formavam uma pilha de cerca de dois metros , coisa de umas dez mil páginas , trabalho de uma vida inteira , que começara ainda na adolescência . Homem disciplinado e de hábitos rígidos , neste dia não interrompera o trabalho para almoçar em casa , como fazia sempre .
- Aquilo era um indicativo , não havia dúvida ! – comentavam.
Napoleão continuava ali , indiferente aos curiosos , batucando sua velha Remington, naquele tic-tac ritmado e nem se dando conta da hora sagrada do almoço .
Hum! – está para acontecer – especulavam - pois o homem nem foi almoçar !?!
Fazia trinta anos desde que viera morar em Peixe Vivo , pequena aldeia de pescadores na enseada da Baía da Bem-Aventurança , município de Mangueiral. Pelo visto , era pessoa de posses porque mandara construir uma bela casa , arrodeada de varandas , jardim interno com fonte luminosa , e estantes cobrindo as paredes da ampla sala de estar e da biblioteca . Os aldeões , no começo , pensavam que , pelo tamanho da casa , aquilo seria um hotel ou morada de numerosa família . Qual o quê ? Os operários vieram de fora , assim como todo o material , a não ser o madeirame de aroeira e umburana de cheiro , abundantes na região . Só se mudou quando tudo estava pronto , acompanhado apenas de uma cozinheira , um jardineiro e um empregado para todo serviço , todos surdos-mudos, o que causou estranheza entre os moradores da aldeia . Será que o homem é casmurro , não gosta de conversar ? Logo viram que estavam enganados. No dia seguinte , caminhou pela aldeia , cumprimentando os moradores, sorrindo, tirando o chapéu panamá para as mulheres , se apresentado e perguntando pelo nome deles, trocando dois dedos de prosa com cada um , o que lhe valeu de imediato grande simpatia . No segundo dia é que mandou colocar uma mesa num platô , debaixo de uma frondosa mangueira , com vista maravilhosa para o mar , paixão de sua vida . Sobre a mesa sua inseparável máquina Remington e muito papel para escrever . Ali seria seu primeiro escritório ; o segundo , em casa . O nome da aldeia se devia a uma particularidade : os pescadores não usavam redes , tarrafas ou espinhéis para pescar . Saíam na boca da noite com as lanternas apagadas presas à popa e à proa dos barcos . Em um determinado ponto , cujo fundo era de coral , cerca de umas vinte milhas da costa , desligavam os motores e acendiam as lanternas . Contando não se acredita. Com pouco , atraídos pela luz , os peixes pulavam para dentro das embarcações . A singular pescaria durava no máximo de duas a três horas . Apagavam, então , as lanternas e rumavam para a praia com os barcos cheios de pescado vivo , graças aos tanques de água que lhes serviam de lastro . Daí, o nome da aldeia : Peixe Vivo . O perigo era a barracuda , dona de poderosos caninos , bicho que morde feito cão
Fazia seis meses que , apesar da boa saúde , Napoleão não se arriscava mais a desafiar o mar aberto , permanecendo dentro da baía . Desde que tivera aquele sonho , sabia qual era seu destino neste mundo e quando seu dia haveria de chegar . Levantava com o canto dos galos e, durante meia hora , se aquecia com exercícios de calistenia. Depois , ao mar onde nadava por duas horas , mergulhando com freqüência para , como dizia, “ver seus amigos ”. É bem possível que , assim paramentado , com nadadeira de mão , pé-de-pato , óculos e máscara de mergulho fosse tomado pelos seus parentes como uma criatura estranha e rara , mas amiga .
Chegando a casa , tomava a refeição da manhã : frutas , leite , mel e pão . Em seguida , arrumava-se, vestindo camisa e calça brancas de linho , chapéu panamá e ia para a Praça do Farol , onde debaixo de uma mangueira de copa centenária começava a escrever . Logo o tic-tac da Remington se incorporava ao murmúrio do mar de águas azuis e calmas e ao farfalhar da palha dos coqueiros . No ar , o cheirinho bom da manga carlota, madurinha, misturado à maresia trazida pela brisa . Quando vinha uma brisa mais forte , muitas caíam no chão forrado de folhas secas e faziam ploft, nem chegando a rachar . Uma delícia . Adorava aquele paraíso , seu éden particular . Mangueiral, como se chamava o município , vinha do fato de haver na região uma infinidade de pés de manga . Mas o que ninguém sabia explicar : por que só da variedade carlotinha? Bois , cabras , jumentos e cavalos comiam os doces frutos e descomiam por toda a região . Os pequenos caroços , adubados pelo esterco , davam mudas fortes e com o tempo se transformavam em árvores frondosas. Mangueiral, terra da manga ! E era tanta manga que ninguém dava vencimento . Vez por outra , parava de escrever e saboreava algumas frutas caídas a seus pés .
- Que delícia !- exclamava, satisfeito . Melhor que a ambrosia do Olimpo !
Escrevia rápido e parava ao meio-dia . Depois de um almoço frugal , tirava uma sesta . Acordava por volta das cinco da tarde , ia para a varanda do primeiro andar e recomeçava a escrever até as onze da noite , quando se recolhia.
Os pescadores esperaram ainda algum tempo , antes de se aproximarem. Por fim , colocaram a mão na testa dele, constataram a morte e fecharam seus olhos . Então , quando se dispunham a levá-lo para casa , ocorreu o primeiro assombro , um susto medonho : Napoleão ergueu-se, sorriu e, para espanto geral , foi se despindo e ficou nu . As pessoas não acreditavam no que estavam vendo?!? E foram se afastando, com medo , fazendo o sinal da cruz , pois aquilo só poderia ser coisa do maligno . Mas o sorriso dele era tão doce e o semblante de uma grande ternura ...
- Coisa do maligno , como , se mais parece um anjo ? – era perturbador.
E, calmamente , então , ele foi caminhando para a praia , o povo abrindo passagem , e entrou n’água . Aí veio o segundo assombro : caminhou sobre as águas , quase levitando, e só a uns cem metros adiante é que mergulhou e sumiu.
- O que será isto , meu Deus ? – perguntavam, sem acreditar no que viam. Será uma miragem , um fantasma ou ele pode fazer o que Jesus fez, como está na Bíblia ? – Se é assim , então é um anjo , um santo – concluíam.
Várias pessoas já se dirigiam à igreja para buscar uma explicação do padre , se persignando e rezando, quando se deu o terceiro assombro : do lugar onde ele mergulhou, pulou um golfinho , revolteando no ar e chegando quase à areia da praia . Ficou algum tempo ali , brincando, como a se despedir , e depois partiu como uma flecha em direção à entrada da barra e nunca mais foi visto . O último assombro veio
- Mistério... Não tinha nada a dizer.
Sem respostas, se conformaram e aceitaram o insondável e se despediram:
- Eta Napoleão soberbo! Vivente , assombração , fantasma , anjo , santo , demônio ou sabe-se lá o quê ? Vá com Deus! Cruz-credo, diacho !
E veio a noite, lua cheia prateando o mar. A multidão foi se dispersando, os visitantes partindo, os pescadores se recolhendo às suas casas , cada qual remoendo o incompreensível mistério dos assombros , que um dia se deu em Peixe Vivo , município de Mangueiral. Por via das dúvidas , nesta noite nunca se acenderam tantas velas e se rezou tanto . E quase ninguém dormiu.
NR/* Com a publicação deste conto homenageio a lembrança do meu grande e fraterno amigo Hélio Contreiras: jornalista, escritor, músico, compositor, letrista, idealista, desaparecido prematuramente. Faço-o movido por admirar o seu talento e pela estatura do seu caráter, onde virtudes sobejavam: amor ao próximo, honestidade e o espírito da doutrina socialista, além doutros tantos. Este conto é considerado como “conto fantástico”, conceituado como daqueles que arrepiam os leitores, levando-os à cartase. Foi bem escrito, por isso mesmo digno de publicação. Hélio insere-se entre os nomes mais importantes da MPB.
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