terça-feira, 27 de novembro de 2012

NAPOLEÃO, O ESCREVINHADOR

       O DIA DOS ASSOMBROS
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Hélio Contreiras*

             Dia radiante, início da primavera, temperatura amena. Se todos os dias do ano fossem assim, o município de Mangueiral seria o éden e a aldeia de Peixe Vivo sua capital. Alto, lúcido, ereto, cabeleira de poeta, branquinha, dentadura perfeita, ligeiramente magro, musculoso, ninguém lhe dava os anos que tinha. Aparentava uns sessenta e poucos, não mais. O físico privilegiado creditava ao esportista que sempre fora desde muito jovem, quando se apaixonou pelo mar e dedicara-se à natação com tal empenho que os amigos e familiares comentavam com certa preocupaçãoque ele queria mesmo era virar peixe”. Gostava de nadar em mar aberto e desenvolvera uma maneira de respirar, usando também o diafragma, que lhe dava um fôlego excepcional, capaz de ficar até quatro minutos debaixo d’água. Para desconforto dos aldeões, jamais quisera que um barco ou canoa o levasse para além da barra. Não era por soberba, não. Agradecia
 e caía n’água com óculos, pé-de-pato, uma faca afiada de quarenta centímetros presa à perna, precaução contra tubarão e barracuda, chamada de tigre-do-mar, bicho traiçoeiro e perigoso.  A novidade era uma nadadeira que inventara, que lhe dava grande velocidade ao nadar. Enfiada nas mãos e unindo os dedos por uma membrana resistente feita de bucho de boi, era semelhante às mãos e os pés do sapo. Nunca fora atacado por peixes grandes e ferozes. Brincava com os pescadores, dizendo que ele era da família, vivente na terra, é certo, mas também muito querido dos seus parentes do mar. O povo achava graça, mas no fundo não tirava da cabeça que aquele homem tinha parte com alguma coisa sobrenatural. Com o diabo não era, porque se tratava de uma pessoa boa que nunca fizera mal a alguém. O tempo todo era escrever e nadar, nadar e escrever. Se não era com o diabo, então com quem seria? Com um ente poderoso e desconhecido, ou com a própria rainha do mar?  A pergunta ficava sem resposta e a dúvida continuava.
            - Hum! Tem coisa, tem coisa! - estavam certos, embora não soubessem o que era.
            Não foi ainda desta vez, de manhãzinha, como se esperava. O avexo era grande, pois passava do meio- dia. Desde cedo o povo estava na praça esperando o
                                                                                                                                                                                                                                                                             
que deveria acontecer.  Era aniversário de Napoleão Benito, o Escrevinhador, que completava 80 anos. Algo extraordinário deveria acontecer neste dia. Estava na boca do povo, coisa que vinha de longe, não se sabe como. Profecia de um oráculo? Destino traçado pela leitura das linhas da mão feita por velha cigana? Ou quem sabe, sentença profética das cartas ou dos búzios? Cada vez chegava mais gente e a praça estava cheia. O que estava determinado estava determinado e, como todo mundo sabe, com essas coisas não se brinca. As pessoas agora se inquietavam e algumas chegavam mesmo a dizer que tudo não passava de uma farsa, invenção de comerciantes para atrair turistas e ganhar mais dinheiro.
Será que desta vez também nada aconteceria? – se perguntavam.  Não era possível, pois, fazia dez anos, que a cada 20 de dezembro, se esperava por algo assombroso. E neste ano, quando o Escrevinhador completava 80 anos, justo quando seu aniversário caía num domingo, dia propício a milagres, não poderia haver engano. um bom número de pessoas impacientes deixara a praça, algumas até revoltadas, se sentindo enganadas mais uma vez. A maioria, entretanto, acreditava e esperava. Era uma questão de e de curiosidade em presenciar o assombro, como diziam.
             O sol se inclinava a caminho do mar, onde antes de dormir brindava o mundo com um espetáculo luminoso de mil cores, crepúsculo de beleza indescritível. A ansiedade aumentava. Os mais ponderados argumentavam que o dia termina à meia-noite e não se pode correr com o tempo, fato aceito sem contestação. Que a segunda-feira ficasse bem quietinha, esperando no seu canto. Aliás, como todo mundo está cansado de saber, a segunda é o pior dia da semana, que começa com a tristeza  do entardecer do domingo. Entretanto, os assombros não têm hora para acontecer e vêm quando menos se espera. Tudo é possível, até mesmo o impossível, como, por exemplo, Napoleão virar gaivota e sumir no céu? Ou, quem sabe, mergulhar no mar e sumir? Ele não imitava o golfinho com perfeição, igualzinho, igualzinho, sem tirar nem por, inclusive com aquele divertimento de saltar para fora d’água, se revirando todo no ar, dando saltos mortais como trapezista de circo?
- Até meia-noite, este domingo se garante e não vai falhar. Podem esperar para ver! – afirmavam os pescadores
Napoleão, imperturbável, continuava a escrever debaixo da frondosa mangueira e não tomava conhecimento da inquietação dos curiosos. Havia uma novidade, porém. Ali não estava apenas sua mesa onde colocava a máquina de escrever e as laudas, mas outra bem maior e mais firme, sobre a qual estava o fruto do trabalho diuturno de 50 anos, o livro, com o título singular: Assim Caminham os Seres Viventes”. Os volumes,
                                                                                                                                                                                                                                                                             

separados por capítulos, formavam uma pilha de cerca de  dois metros, coisa de umas dez mil páginas, trabalho de uma vida inteira, que começara ainda na adolescência. Homem disciplinado e de hábitos rígidos, neste dia não interrompera o trabalho para almoçar em casa, como fazia sempre. 
- Aquilo era um indicativo, não havia dúvida! – comentavam.
 Napoleão continuava ali, indiferente aos curiosos, batucando sua velha Remington, naquele tic-tac ritmado e nem se dando conta da hora sagrada do almoço.
            Hum! – está para acontecer – especulavam - pois o homem nem foi almoçar!?!
            Fazia trinta anos desde que viera morar em Peixe Vivo, pequena aldeia de pescadores na enseada da Baía da Bem-Aventurança, município de Mangueiral.  Pelo visto, era pessoa de posses porque mandara construir uma bela casa, arrodeada de varandas, jardim interno com fonte luminosa, e estantes cobrindo as paredes da ampla sala de estar e da biblioteca. Os aldeões, no começo, pensavam que, pelo tamanho da casa, aquilo seria um hotel ou morada de numerosa família. Qual o quê? Os operários vieram de fora, assim como todo o material, a não ser o madeirame de aroeira e umburana de cheiro, abundantes na região. se mudou quando tudo estava pronto, acompanhado apenas de uma cozinheira, um jardineiro e um empregado para todo serviço, todos surdos-mudos, o que causou estranheza entre os moradores da aldeia. Será que o homem é casmurro, não gosta de conversar? Logo viram que estavam enganados. No dia seguinte, caminhou pela aldeia, cumprimentando os moradores, sorrindo, tirando o chapéu panamá para as mulheres, se apresentado e perguntando pelo nome deles, trocando dois dedos de prosa com cada um, o que lhe valeu de imediato grande simpatia. No segundo dia é que mandou colocar uma mesa num platô, debaixo de uma frondosa mangueira, com vista maravilhosa para o mar, paixão de sua vida. Sobre a mesa sua inseparável máquina Remington e muito papel para escrever. Ali seria seu primeiro escritório; o segundo, em casa. O nome da aldeia se devia a uma particularidade: os pescadores não usavam redes, tarrafas ou espinhéis para pescar. Saíam na boca da noite com as lanternas apagadas presas à popa e à proa dos barcos. Em um determinado ponto, cujo fundo era de coral, cerca de umas vinte  milhas da costa, desligavam os motores e acendiam  as lanternas. Contando não se acredita. Com pouco, atraídos pela luz, os peixes pulavam para dentro das embarcações. A singular pescaria durava no máximo de duas a três horas. Apagavam, então, as lanternas e rumavam para a praia com os barcos cheios de pescado vivo, graças aos tanques de água que lhes serviam de lastro. Daí, o nome da aldeia: Peixe Vivo. O perigo era a barracuda, dona de poderosos caninos, bicho que morde feito cão
                                                                                                                                                                                                                                                                             
danado e custa a morrer. Tinha que ser abatida a cacete. Às vezes, os pescadores se deparavam com um cardume delas e era uma praga. Pulavam às dezenas para dentro dos barcos e atacavam de imediato os peixes que ali se encontravam. Os pescadores, com seus grandes puçás, tentavam devolvê-las ao mar, mas elas voltavam. Uma guerra.  Quem facilitasse poderia perder parte da mão, dos artelhos ou da batata da perna, como acontecera. E os bichos mordiam e não largavam. O único jeito era cortar suas cabeças, que, mesmo assim, continuavam com os afiados dentes cravados na carne dilacerada de suas vítimas. Feras sanguinárias.
            Fazia seis meses que, apesar da boa saúde, Napoleão não se arriscava mais a desafiar o mar aberto, permanecendo dentro da baía.  Desde que tivera aquele sonho, sabia qual era seu destino neste mundo e quando seu dia haveria de chegar. Levantava com o canto dos galos e, durante meia hora, se aquecia com exercícios de calistenia. Depois, ao mar onde nadava por duas horas, mergulhando com freqüência para, como dizia, “ver seus amigos”. É bem possível que, assim paramentado, com nadadeira de mão, pé-de-pato, óculos e máscara de mergulho fosse tomado pelos seus parentes como uma criatura estranha e rara, mas amiga.
            Chegando a casa, tomava a refeição da manhã: frutas, leite, mel e pão. Em seguida, arrumava-se, vestindo camisa e calça brancas de linho, chapéu panamá e ia para a Praça do Farol, onde debaixo de uma mangueira de copa centenária começava a escrever. Logo o tic-tac da Remington se incorporava ao murmúrio do mar de águas azuis e calmas e ao farfalhar da palha dos coqueiros. No ar, o cheirinho bom da manga carlota, madurinha, misturado à maresia trazida pela brisa. Quando vinha uma  brisa mais forte, muitas caíam no chão forrado de folhas secas e faziam ploft, nem chegando a rachar. Uma delícia.  Adorava aquele paraíso, seu éden particular. Mangueiral, como se chamava o município, vinha do fato de haver na região uma infinidade de pés de manga. Mas o que ninguém sabia explicar: por que da variedade carlotinha? Bois, cabras, jumentos e cavalos comiam os doces frutos e descomiam por toda a região. Os pequenos caroços, adubados pelo esterco, davam mudas fortes e com o tempo se transformavam em árvores frondosas. Mangueiral, terra da manga! E era tanta manga que ninguém dava vencimento. Vez por outra, parava de escrever e saboreava algumas frutas caídas a seus pés.
            - Que delícia!- exclamava, satisfeito. Melhor que a ambrosia do Olimpo!
             Escrevia rápido e parava ao meio-dia.  Depois de um almoço frugal, tirava uma sesta. Acordava por volta das cinco da tarde, ia para a varanda do primeiro andar e recomeçava a escrever até as onze da noite, quando se recolhia.
                                                                                                                     
Nos fins de semana, vinha gente de fora para levar manga, comprar peixe e tentar chegar perto do O Escrevinhador. Os aldeões, não deixavam que os curiosos se aproximassem dele. Olhar, bem que podiam, mas não chegar tão perto que perturbasse o trabalho do escritor. O sol começava a descer no horizonte e o sino da pequena igreja tocou as seis badaladas da Ave Maria. se deu o primeiro assombro: Napoleão ficou algum tempo olhando para a máquina de escrever, passou os dedos pelo seu teclado, respirou fundo e, finalmente, escreveu:
                                                              FIM
            Em seguida, recostou-se na cadeira, deu um longo suspiro e morreu. Concretizara-se o vaticínio de um sonho, sonhado quando ele era apenas um rapaz e começou com esta mania de escritor: quando terminasse o livro, deixaria este mundo, coisa que vinha adiando faz tempo. Com oitenta anos, as forças lhe faltando e a memória fraca, tomara enfim a decisão.
            Os pescadores esperaram ainda algum tempo, antes de se aproximarem. Por fim, colocaram a mão na testa dele, constataram a morte e fecharam seus olhos. Então, quando se dispunham a levá-lo para casa, ocorreu o primeiro assombro, um susto medonho: Napoleão ergueu-se, sorriu e, para espanto geral, foi se despindo e ficou nu.  As pessoas não acreditavam no que estavam vendo?!? E foram se afastando, com medo, fazendo o sinal da cruz, pois aquilo poderia ser coisa do maligno. Mas o sorriso dele era tão doce e o semblante de uma grande ternura...
- Coisa do maligno, como, se mais parece um anjo? – era perturbador.
 E, calmamente, então, ele foi caminhando para a praia, o povo abrindo passagem, e entrou n’água. veio o segundo assombro: caminhou sobre as águas, quase levitando, e a uns cem metros adiante é que mergulhou e sumiu.
- O que será isto, meu Deus? – perguntavam, sem acreditar no que viam. Será uma miragem, um fantasma ou ele pode fazer o que Jesus fez, como está na Bíblia? – Se é assim, então é um anjo, um santo – concluíam.
            Várias pessoas se dirigiam à igreja para buscar uma explicação do padre, se persignando e rezando, quando se deu o terceiro assombro: do lugar onde ele mergulhou, pulou um golfinho, revolteando no ar e chegando quase à areia da praia. Ficou algum tempo ali, brincando, como a se despedir, e depois partiu como uma flecha em direção à entrada da barra e nunca mais foi visto. O último assombro veio
                                                                                                                                
logo em seguida: quando recolhiam as pilhas dos capítulos do livro para levar para a casa dele, alguém notou uma sombra que aparecia logo na capa. Que seria aquilo? Pegaram folhas de pilhas diferentes, olharam contra a luz, e em todas elas a mesma mancha: a marca d’água com a imagem de um golfinho. Tomaram, então, algumas folhas de uma resma que ainda não tinha sido utilizada e viram que não havia a marca d’água. Ficaram arrepiados. Ninguém encontrava explicação. Como? Como? Como? – não cansavam de perguntar e, quanto mais perguntavam, menos entendiam. Por fim, resignados, aceitaram os acontecidos, inclusive o padre, que, também assombrado e sem ter o que dizer, repetia, como numa ladainha: mistério, desígnios de Deus; mistério: desígnios de Deus; mistério, desígnios de Deus! Mistério... As pessoas, perplexas, entre assombradas e admiradas, lhe perguntavam: mas, como seu vigário?
            - Mistério... Não tinha nada a dizer.
            Sem respostas, se conformaram e aceitaram o insondável e se despediram:
            - Eta Napoleão soberbo! Vivente, assombração, fantasma, anjo, santo, demônio ou sabe-se o quê? Vá com Deus! Cruz-credo, diacho!
 E veio a noite, lua cheia prateando o mar. A multidão foi se dispersando, os visitantes partindo, os pescadores se recolhendo às suas casas, cada qual remoendo o incompreensível mistério dos assombros, que um dia se deu em Peixe Vivo, município de Mangueiral. Por via das dúvidas, nesta noite nunca se acenderam tantas velas e se rezou tanto. E quase ninguém dormiu.
NR/* Com a publicação deste conto homenageio a lembrança do meu grande e fraterno amigo Hélio Contreiras: jornalista, escritor, músico, compositor, letrista, idealista, desaparecido prematuramente. Faço-o movido por admirar o seu talento e pela estatura do seu caráter, onde virtudes sobejavam: amor ao próximo, honestidade e o espírito da doutrina socialista, além doutros tantos. Este conto é considerado como “conto fantástico”, conceituado como daqueles que arrepiam os leitores, levando-os à cartase. Foi bem escrito, por isso mesmo digno de publicação. Hélio insere-se entre os nomes mais importantes da MPB. 

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