terça-feira, 27 de novembro de 2012

O FORTE RESTAURADO

                                                                     JC Teixeira Gomes*

O umbigo da Bahia, segundo Jorge Amado

A degradação dos monumentos e sítios históricos de Salvador é uma realidade tão permanente e constrangedora, que devemos saudar como verdadeira façanha a recuperação de um deles que seja. E é por isso que desejo registrar aqui a minha alegria, ao visitar recentemente o Forte de São Marcelo e testemunhar a magnífica obra de restauração que ali foi realizada, por iniciativa da Associação Brasileira dos Amigos das Fortificações Militares, dirigida na Bahia por Luís Carlos Facó, Anésio Ferreira Leite e Eduardo Morais de Castro.

Com a participação da Prefeitura, fizeram os três beneméritos o que a cidade há muito desejava, mas nenhuma administração se dispunha a concretizar: não só recuperaram o Forte, como lhe deram uma destinação prática que poderá assegurar-lhe a sobrevivência, se o ânimo de conservação prevalecer. Hoje funciona no Forte um restaurante de privilegiada localização, a partir do qual o freqüentador poderá desfrutar de uma das mais belas e imponentes vistas de Salvador e da Baía de Todos os Santos, emolduradas pela magia da evocação dos tempos pretéritos que o progresso não consegue anular. Ao contrário de outras cidades, Salvador se funde na sua história e é através dela que consegue vivificar-se.
Bastaria essa verdade para que o nosso passado merecesse dos administradores - os municipais e os estaduais, com igual responsabilidade na preservação do burgo histórico – o cuidado do amor, do desvelo e da competência, que, no entanto, em geral lhes tem faltado. Não é escassa a documentação sobre a perda da substância histórica da nossa cidade no esfacelamento dos seus monumentos, mas poucas podem igualar-se, na riqueza da iconografia e na densidade do texto, à alentada obra de Consuelo Novais Sampaio, “50 anos de urbanização – Salvador da Bahia no século XIX”, editada em 2002 pela Odebrecht.
  Não é preciso ser baiano, ou pelo menos amante das tradições baianas e do próprio Brasil, para que alguém, diante da eloqüência desse livro miraculoso no resgate de um tempo irremediavelmente perdido, se sinta arrasado e compungido com os exemplos sucessivos da desfiguração progressiva de Salvador, cuja fisionomia histórica, através de administrações competentes, bem que poderia ter coexistido com as imposições do progresso.
 Quem olha as fotos, os mapas, os desenhos, as reproduções paisagísticas, toda a rica documentação visual do livro de Consuelo Sampaio não deixa de fascinar-se, enfim, com a esplendorosa homogeneidade urbanística da velha Salvador. E é claro que falamos sobretudo da Salvador do século XIX,  incomparável em todo o Brasil pelos simétricos detalhes do seu casario, da sua localização privilegiada em cima da híspida montanha amuralhada, das múltiplas torres de igrejas varando os céus, da opulência do seu cais de amarras com a barreira dos edifícios densos, obras suntuosas que nunca deveriam ter sido demolidas, da riqueza dos sobradões da Conceição da Praia e, afinal de contas, com a topografia rara de duas cidades superpostas, numa visão inigualável para quem vinha do mar e não contemplava nada que se comparasse no mundo. Tudo isto no embalo da Baía imensa, concentração de águas diluvianas resguardadas pelo Forte heróico, cuja simples localização atemorizava a presença de piratas e aventureiros de todo o tipo, ávidos de se lançar sobre as riquezas da América Portuguesa, a partir das seduções da sua capital. Os piratas do mar já não ameaçam Salvador, mas o que têm feito prefeitos e vereadores para nos livrarem dos piratas urbanos?
Pois bem: é pelo menos com entusiasmo que podemos encerrar este artigo, relembrando que o Forte ainda se encontra no seu lugar, em cima do mesmo banco de areia e dos entulhos que lhe deram sustentação, hoje recuperado pelo esforço de cidadãos zelosos das tradições da sua terra. Guarda toda a sua imponência passada, com o acréscimo de uma função posta a serviço da atualidade baiana. Quem o visitar pode desfrutar do fascínio de um equipamento arquitetônico raro e viver, simultaneamente, a magia da história. Um exemplo de devoção histórica e comprometimento cultural que deveria ser imitado por todas as instituições governamentais, para que, enfim, a história da Bahia não continue sendo apenas um inventário de perdas.      
*É Professor, Jornalista, Escritor, Poeta, Membro da Academia de Letras da Bahia.
NR/*Infelizmente, meu caro Teixeira Gomes, Joca para os íntimos, a realidade atual do umbigo da Bahia, é outra. O Forte voltou a ser abandonado e, por isso mesmo, as conquistas estruturais – sublinhadas por você – conseguidas pela Associação dos Amigos das Fortificações Militares e Sítios Históricos, sem utilizar um centavo de dinheiro público, para o restauro daquele monumento, estão sendo, paulatinamente, apagadas pela ação inexorável do tempo. O IPHAN (Bahia), não renovou o contrato de comodato existente entre ele e àquela associação, para a continuidade da prestação dos serviços operacionais, turísticos e culturais, ali correntes, tão exitosos e elogiados por entidades internacionais, chamando a si, o direito de prestá-los. Passados dois anos, o Forte está fechado. Voltando àquela fase em que esteve imerso, por volta de cinquenta anos. Virou, atualmente, valhacouto de bandidos, fumadores de crack, prostitutas, e se tem transformado em mais um monumento baiano amortalhado.  Pobre Bahia! Pobres administradores públicos e suas insensatas decisões!        

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