Luiz Carlos Facó
Nasci no finalzinho da década de
trinta. Numa Salvador pródiga, embora paupérrima. Pródiga em solidariedade, em
filhos ‘porretas’. Exacerbadamente respeitosa ao sagrado e ao místico. Cujas
tradições populares eram respeitadas: procissões, a cruz, os patuás, as
lavagens das igrejas, as rezas de descarrego, benzeduras e simpatias. Onde não
se fornicava na Semana Santa, em sinal de respeito. As mulheres-damas ou não,
lacrando seus baús. Os homens, embainhando suas espadas. Receosos em cometerem
o pecado capital da luxúria, cuja expiação era difícil alcançar. Desastradamente
preconceituosa. Até, maledicente. Onde as locuções ‘cruz credo’, ‘vixe Maria’, ‘valha-nos Deus’, faziam parte
do vocabulário popular. E os ebós, nas encruzihadas, eram adornos das paisagens
locais. Cujos ingredientes: a farofa de dendê, o galo preto, as pipocas, a
garrafa de caninha “retada” e da boa (Jacaré ou Saborosa), mel, velas brancas,
pretas, encarnadas, eram disputados pelos famintos.
Numa terra de mil e várias cores.
Indo do dourado do nascer do sol, passando pelo rubro matizado do poente. Do
verde claro ao escuro da vegetação que recobria as escarpas e os seus grotões,
ralamente ocupadas. Do azul escuro pintado no firmamento ao esmaecido das águas
da baía que a margeia e tempera. Da púrpura das vestes cardinalícias ao negro
das dos padres seculares e ao marrom encardido dos hábitos franciscanos.
Terra chamada de Todos os Santos, dos
Orixás, Cidade Presépio. Havida por José
de Anchieta como “a melhor terra do mundo”.
Por Almeida Prado, como o “o mais belo
florão da coroa de D. João III”. Enaltecida por Caymmi em versos
apoteóticos: “Tudo, na Bahia/ Faz a gente
querer bem./ A Bahia tem um jeito/ Que nenhuma terra tem...” Anotada por
Gehová de Carvalho, boêmio, poeta, jornalista, criminalista, de “A cidade que
não dorme” e de “Cidade feita de dendê”, em resposta à pergunta posta por
Sartre (Jean Paul): de que é feita esta Cidade?
Dela que desfruto desde os cueiros
até hoje, enquanto envelheço, vendo o passar das horas fatigadas e mortas, dos
seus encantos, faltou dizer ser palco a céu aberto. Um imenso anfiteatro nos
moldes daqueles da Grécia antiga. Cujos filhos são, sem exceções, artistas de primeira
água. Quer os natos no seu chão, quer os adotados.
Quem não é artista neste caldo
cultural, proporcionado pela miscigenação entre negros, índios, brancos e o
sincretismo dos seus costumes e crenças, não vinga.
Por isso, uns se voltam à prosa, tantos à
poesia. Boa parte a arte cênica, à musical, à pictórica, à escultórica, à
cinematográfica. Mesmo os que não põem a mão nessa massa fazem parte desse
bolo. Uns consagram-se à cenografia, muitos à produção, à editoria, a
realizações culturais. Tantos outros são andróginos, porque orbitam num ou
noutro leito desses caminhos. Caminhos acessíveis a todos.
É verdade que vários jamais atingiram
o protagonismo. Conformaram-se em servirem de “escadas” – no meio teatral,
ator/atriz que alavanca o brilho da personagem principal com suas “deixas” – ou
coadjuvaram seus colegas.
Foi a partir dessa visão, por mim
experimentada e consolidada ao longo do tempo, que hoje posso atestar o
surgimento, dentre os da minha geração, de uma plêaide de talentosos artistas.
Deixando ao largo os não menos
importantes, considerados populares: Cuíca de Santo Amaro, A Mulher de Roxo,
Lagartixa, Pulga, Jacaré, Samir Queixo de Vidro, detive-me em apreciar aqueles
mais compromissados com a erudição e as ideias. Não por preconceito, mas,
porque com esses convivi mais amiudadamente do que com os componentes
daqueloutra entourage.
Dentre os mais apreciados despontam
figuras insubstituíveis, inesquecíveis. Como a lírica poeta Sonia Coutinho, a
vanguardista Virgínia Andrade e a talentosa Miriam Fraga. Helena Inês, Nilda
Spencer – prima dona do teatro baiano. Glauber Rocha – o inventivo de “uma
ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Juarez Paraíso, Mário Cravo Jr., Carlos
Bastos, Jenner Augusto, Sante Scaldaferri, Calazans Neto, Caribé e Hansen
Bahia, expressões maiores da nossa pintura e escultura. João Ubaldo Ribeiro,
Jehová de Carvalho, Nilton de Oliva César, o Pixoxó, Wilson Lins – muitas vezes
incorporado em Rubião Braz – Walfrido Morais, Aristóteles Gomes, João Carlos
Teixeira Gomes, Ivan Americano da Costa, João Eurico Matta, Joaci Góes, Hélio
Contreiras, Milze Soares Eon, Jayme Barbosa, Junot Silveira, Altamirando
Requião, Cid Teixeira, Mário Cabral, Jorge Amado, Adroaldo Ribeiro Costa,
Berbert de Castro. Nomes que ecoam no imaginário das nossas fantasias. Gente de
todas as idades, de todos os credos e sem credos. Cruz credo! Os mais jovens,
compromissados com os movimentos MAPA e CEPA, doutrinariamente díspares.
Atentos ou partidários das ideologias que ‘mambembeavam’, mundo afora, fazendo
as cabeças dos eruditos ou pretensos. Quem haveria de impedi-los?
Os que não ‘curtiam’ d’algumas
daquelas opções estavam amarrados, atrelados, devotados ou compromissados com a
dança. Herdada dos seus ancestrais que deram vida ao samba de roda, ao maculelê,
ao berimbau da capoeira, ao pau elétrico ou guitarra baiana, cujos acordes
ganharam o mundo com o trio elétrico e tantos outros ritmos que, de roupagem
nova, embalam, ainda hoje, os acordes da musicalidade brasileira. Coisas de
sentimento. De jeito e trejeito.
Confesso! Fui um desses. Não sei dos
porquês desse gosto! Na família, afora minha mãe, ninguém dançava. Naquela
época, ler e escrever eram-me os exercícios mais prazerosos. Mas, a dança
constituía-se em fascínio. Tendo Fred Astaire e Gene Kelly como espelhos.
Inspiração.
Adolescente, antes dos dezoito,
frequentei o ‘Rumba Dancing’. Nele vi
cavaleiros e damas de excepcionais qualidades, como dançarinos. Eu babava ao
vê-los bailar!
Encorpado, taludo, entretanto
considerado, por muitos, ‘fedelho’, através portas travessas insinuei-me nas
noitadas do “Cassino Tabaris”,
aplaudindo as apresentações dos ‘ballets’ de Carlan e de Evandro Castro Lima.
Aquele claustro ímpio do burlesco, da
revista, repleto de mulheres bonitas provenientes de muitas nacionalidades, de
boêmios escrachados e intelectualizados, até líricos, românticos, notívagos,
exibicionistas, arrivistas, ricaços, de adolescentes que desejavam experimentar
as primícias da libidinagem e o coito, frequentei até o dia do seu lastimável
encerramento.
Um passamento imperdoável, que quase
fez da Salvador boêmia órfã de pai e mãe, não fora a resistência, em seguir-lhe
o mesmo destino, de suas congêneres ou irmãs siamesas: Churrascaria Ide, Anjo
Azul, O Abaixadinho, Belvedere, Galeria 19, O Guaciara, O 63, Rio Verde, O
Cacique, e tantos outros bares, botequins, ‘puteiros’, onde a vida dava asas
aos prazeres sob o lema: divirta-se à larga, pois a vida é curta.
Foi naquele recinto profuso de formas
feminis alucinantes, beleza, alegria, que este contador de memórias, “causos”,
peripécias e aventuras viu Mário Príncipe, o mais profissional de todos os ‘cabaretiers’, fadado desde cedo ao
exercício dessa profissão, Mário “Balé”, um jovem de classe média e Ankito,
barbeiro sem a fama do de Sevilha, evoluírem em passos e gestos elegantes pelo
salão de danças, com parceiras formosas e hábeis, proporcionando espetáculos
memoráveis aos que os assistiam, tomados de inveja. Sentimento de difícil
ocultação, pois marcantemente expresso em suas faces embasbacadas e nada
complacentes.
Vendo-os, guiando suas damas com a
leveza dos seus passos e portando a elegância dos dândis, tentei emulá-los.
Jamais consegui. Faltava-me talento, como me faltou quando estudei piano,
estimulado por familiares. Em razão do que desisti. Foi-me impossível resistir
ao enfado da obsessão causada no repetir, por horas, a escala musical, do dó ao
si e do si ao dó. Embora a imponência e o som do instrumento
enlevassem-me.
Também lá, no epicentro da
concupiscência de Salvador, vi cenas explicitas de proxenetismo,
homossexualismo, traição, amor nascente, ciúmes. Forjarem-se ódios
irremissíveis. Reconciliações amorosas, pessoais, políticas. Ouvi diálogos, tal
qual:
- Quanto é?
- Cem mil réis, afora o champanhe e o valor do aluguel do quarto no ‘castelo’.
- É muito caro!
- ‘Apois’, procure outra. Sem dinheiro, você só merece o orgasmo
solitário. Na hora do bem bom contente-se em pensar em mim, peladinha.
Mas, naquele carrossel de sedições de
ordem sentimental, humana, havia, também, a solidariedade, o compartilhar, a
piedade. Estavam nas mulheres que repartiam seus ganhos com as que nada
faturavam. Nos homens que se dispunham em acolher e sustentar as Madalenas.
Algumas das quais, fizeram ótimos e felizes casamentos. Na mansidão de todos em
aceitar o pouco que lhes cabia, sem abdicarem do divertimento, da conquista, da
fornicação.
Pois bem, nessa terra mágica, abrigo
de tantas alegrias e artistas, dos bondes e marinetes indo e vindo repletos de
passageiros, das reuniões agradáveis nas quais rolavam papos descompromissados,
acolhedores, quer nos bares quer nas esquinas e na Rua Chile, nos quais
teciámos o amanhã, as conquistas, os amores, quase inexistia a violência. Seus
parcos usuários eram conhecidos: Nei Torres ou “Navalhada”, o guarda civil
Tarzã, e alguns poucos policiais protegidos pelo fardamento usado. Outros
registros sobre o mesmo assunto serão fátuos.
Só a fome gritava entre a gente
baiana, aos berros, a sua dor. Além da fome, as iniquidades provocadas pelos
sucessivos governos insensíveis aos reclamos do povo. Dissimulados em não
avaliarem ou quantificarem as resultantes de suas inações: a tuberculose, o
impaludismo, a sífilis, paralisia infantil, coqueluche, e um sem número de
outras enfermidades que deformavam e matavam o ser humano.
A pobreza das ações públicas e a
demora em tomá-las era tamanha, no sentido de melhorar a vida do povo, que se
tornara gritante. Octávio Mangabeira, um dos maiores conhecedores da alma
baiana enfatizava: “Na Bahia, o atraso é de tal ordem que quando o mundo se acabar
os baianos só saberão cinco dias depois”.
Num mergulho de cinquenta anos aos
arquivos da minha memória, que jamais apago, risco ou rabisco, cotejo, tristemente
arrepiado, que no albor do século XXI, a minha cidade padece dos mesmos
problemas d’antanho, de forma recrudescida.
Aditados ao exarcerbamento da violência, sitiando-a inconsequente e
brutalmente. Vidas continuam a ser ceifadas pelas mesmas endemias de outrora.
Os capitães de areia, tão bem retratados por Jorge Amado, deixaram de ser
inofensivos punguistas, reles moleques, assumindo a condição de cheiradores de
cola, drogados e ladrões a mão armada. Assassinos frios e cruéis.
De lá pra cá a cidade cresceu, é
verdade, à custa da perda da sua inocência, quiçá identidade. Hoje, ninguém
conhece ninguém. Somos estranhos até para os vizinhos, que outrora se visitavam
e trocavam favores. Acabaram-se os botecos, substituídos pelos clubes do uísque
e da cachaça. Os motéis tomaram os lugares dos famosos ‘castelos’. Dos
assustados ou arrasta-pés improvisados, ficaram as lembranças. Os bate-papos do
entardecer finaram-se. As casas senhoriais, de belos e variados estilos
arquitetônicos foram derrubadas dando vez ao aparecimento das moradias
verticais, cuja estética é controversa. Os bondes cederam seus espaços ao
asfalto. Pejorativamente chamados velharias, foram considerados impróprios à
convivência com o progresso. Os seresteiros perderam a voz e o violão. Não têm
mais balcões ou sacadas para, sob eles, solfejarem as suas amadas canções de
amor em noites de lua cheia. As quermesses, de festas de largo, escafederam-se.
O carnaval virou comércio, de poucos. A ingenuidade dos verdadeiros foliões
mascarados, fantasiados, indo as ruas em grupos ou em corsos, virou
fumaça. O Natal e a festa de Nosso
Senhor do Bonfim, protagonizam o mesmo espírito comercial. Os morros, nas áreas
nobres citadinas, foram tomados de assalto pela especulação imobiliária.
Transformaram-se em condomínios fechados, a exemplo do morro Ipiranga. A visão
da área litorânea de Salvador – Ondina – foi supressa por hotéis portentosos.
As casas de candomblés viraram pontos turísticos, perdendo muito do seu
imaculado encanto, da sua originalidade, do seu apego à natureza e rituais.
Nossos usos e costumes estão indo para o beleléu: o povo deixou de persignar-se
ao passar confronte uma igreja, igreja que se omite em dobrar os sinos quando
morre um dos seus paroquianos, como de forma contumaz fazia naquela outra
quadra de tempo. Não se realizam mais velórios em casas. Não se bebe o morto
nem se cantam “incelências” durante seu enterro. As novenas e trezenas de Sto.
Antônio foram abandonadas, nas residências. Quantas saudades retenho do último
dia delas: da paçoca, do bolo de aipim, da canjica mole e de cortar, do
amendoim torrado e cozido, dos licores de jenipapo, maracujá, leite, passas,
ameixas, servidos aos convivas, antes e depois das celebrações religiosas e do
arrasta-pés que se seguia a elas. Da mesma forma, das dedicadas a Santa
Bárbara, Cosme e Damião, São João, São Pedro e Reis Magos. Na de São João,
desapareceram o pular a fogueira, os fogos. Na dos Reis Magos, o desfile das
pastorinhas – nos Terno de Reis, na Lapinha – onde era obrigatório o uso da
calça culote, paletó almofadinha. Tudo isso já era e não há de voltar. Embora
aqui fique o registro.
Hão de pensar os que leram esta
crônica até aqui, que sou um incorrigível saudosista. Um inadaptável aos tempos
atuais. Nada disso. Sou um homem atual, apesar da idade. Gosto do conforto que
a modernidade nos traz. O ar condicionado, a televisão de alta definição, do
micro-ondas, do home-theater, do computador, da internet, e-mails, do twiter,
dos progressos médicos que me fizeram chegar aos setenta e três anos, da
geração de crianças que sabe mais que os pais e os arguem. Dos jovens que se
emancipam, prematuramente, da família e alcançam sucesso na carreira escolhida.
Da mulher que venceu a luta por seus direitos, galgando postos diretivos e
relevantes, jamais concebidos. Dos homossexuais que defendem suas opções com
unhas, dentes e coragem. Só não concordo amigos, com o desleixo e a
despreocupação com o passado, nos seus aspectos positivos. Com nossos
governantes que continuam, com outra roupagem a exercitarem os mesmos ritos
daqueles que hoje são sarcasticamente denominados coronéis: as promessas vãs, o
engodo, o esquecimento, o silêncio nas horas cruciais para dar as informações
ao povo sobre o quanto lhes foi requerido. Ou, falando muito e dizendo mal e pouco,
utilizando-se do velho populismo e demagogia: ‘minha mãe nasceu analfabeta’, ‘quero
tirar o povo da merda, ´’nunca dantes na história deste país...’ Promovendo
inaugurações de obras fantasmas, fantoches ou superfaturadas – um baú de ouro,
para os que desejam enricar facilmente, por serem amigos do rei. Numa deslavada
recorrência aos discursos pronunciados em priscas eras.
Sou um citadino confesso. Fora de
Salvador, vivo como pato sem água para nadar. Arredio e banzeiro. Por isso, e
diante das considerações expressas, doe-me constatar que nossa terra continua
doente. Muito doente. E, de recaída em recaída, está perdendo a sua pródiga
humanidade, sua alma, seus costumes ancestrais. Mais, seu povo descrente, está
sem animo, prumo, sem a afabilidade que moldava sua figura. Pudera! Como um
povo pode ser feliz, se lhe é cassado o direito de educar-se, gozar saúde,
empregar-se, ter moradia decente, até mesmo esperanças?
Malditos os que tratam assim a terra
mãe do Brasil e o seu povo. Para esses, o meu repúdio e acredito de toda a
nossa comunidade, repúdio condensado nas sábias palavras de Octávio Mangabeira:
‘Amaldiçoada a iniquidade, inclusive a pior de todas que é a iniquidade social!’
Salvador, abril de 2011.
Interessaante!!!
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