Crônica
de Luiz Carlos Facó
Ando, ultimamente, entediado. Nada
satisfaz-me, tampouco alegra-me. Os espasmos de entusiasmo, aqueles que
alimentam o espírito, rareiam ao meu. Uma exceção: inda sinto prazer em
escrever.
Essa conquista da evolução humana,
que adoto com afeição de amante, tem o condão de aquecer o meu coração. E é sob
esse calor que, nesta crônica, me debruço sobre temas muito apreciados por mim:
a eloquência da beleza, a condolência do sofrimento. O perfeccionismo do homem,
absurdamente buscado para atingir a plenitude da mestria.
A arte, nas suas manifestações,
arquitetônicas, escultóricas, pictóricas, cinematográficas, teatrais, literárias,
musicais, tem acompanhado a evolução do espírito, através das idades, no
sentido do colossal para o delicado, o sutil, até o imaginário. Foi gigantesca
e anônima no Oriente, onde se erigiram os imperecíveis túmulos dos Faraós;
plástica e inimitável na Grécia, onde o gênio de Fídias imortalizou, na tosca
pedra, no mármore lindo e puro ou no granito, as mais belas estátuas; soberba
em Roma, onde o temperamento do romano, instigante e guerreiro levantou o
Coliseu, que hoje quase desaba, vítima dos rigores do tempo, quiçá, da poluição
urbana.
Os pintores da Renascença deram-nos
obras mestras da pintura, trabalhos em que a Gioconda de Da Vinci e as Madonas
de Rafael e outras à perfeição a que tinha atingido a estatuária grega com a
decantada Vênus de Milo, nas duas diferentes manifestações de arte.
Em todos os quadrantes, em todas as
etapas, em todos os estágios da civilização, a arte religiosa ergueu templos,
criou monumentos às divindades: pagodes, mesquitas, igrejas no culto a deuses e
a Deus.
Na Idade Média, época imersa na religiosidade,
no misticismo, os templos católicos chegaram à perfeição entontecedora com o
estilo gótico em que as linhas se enramam, se confundem, se entrelaçam e
simultaneamente se bordam – em ponto de cruz, labirinto, bainha aberta – num
conúbio do humano e do divino.
Elevaram-se majestosas catedrais,
magníficas abadias e superlativos conventos: Chartes ou Reims, Westminster ou
Jerônimos, Mafra ou Escurial
Victor Hugo, admirador do grande
Chateaubriand, a cuja glória, na adolescência, aspirava alcançar, fez de Notre
Dame de Paris, cenário de notável romance que muito se inspirou na obra do seu
ícone, sob o título Gênio do Cristianismo. Sendo que René é arminho e suavidade,
enquanto o cotejado Hugo é faísca que funde trovão que ruge e atemoriza.
O gênio de Victor Hugo imaginou a
fealdade suprema em Quasímodo e o encanto em Esmeralda. Quem pode atingir o
poder de contraste do autor de 93?
Aqui o paralelo entre o homem e a
mulher, ali o conflito entre o remorso e a consciência do criminoso na véspera
da morte, além da exacerbada fealdade física do sineiro de Notre Dame a guardar
no coração esse amor sem limites por Esmeralda!
Os encantos da linha cigana puseram
na maior fealdade humana a alma mais apaixonada! E ainda: na defesa da sua
bondade o sineiro tinha a intrepidez da fera no proteger a cria ou a afoiteza
do colossal cetáceo na do baleote. Extraordinário poder de gênio!
Mas essas imaginosas cenas do mais
puro e enlevado amor não se manifestam e medram somente sob a suntuosa nave da
grandiosa catedral de Paris, ocorrem também numa capelinha humilde, criada pela
fértil imaginação de Macedo Papança em A Filha do Sineiro.
Num dia terrivelmente infeliz,
Castilho, incensado autor português, prefaciando o D. Jaime de Tomás Ribeiro,
atacou o aclamado poeta dos Lusíadas.
Levantaram-se contra o autor de
Ciúmes do Bardo e Noite no Castelo os Novos de Portugal com a célebre “questão
coimbrã”, de que Papança e outros mais novos foram remanescentes.
Macedo Papança, quase parnasiano,
senão meio-parnasiano, escreveu essa jóia da literatura portuguesa, já
referida, poema, louvação do mais puro amor de pai.
Benvinda, rebento de duas criaturas
avançadas em anos, veio ao mundo cheia de virtudes e falha de fortaleza física.
A esposa do sineiro deu, com o último alento de vida, à cândida Benvinda, cuja
existência fora rápida e suave, como a brisa que acaricia e logo vai embora.
Em Benvinda se encontram todos os
carinhos e cuidados de pai e mãe da parte do velho sineiro. E um dia seguiu,
para o campo santo, enfeitada pelo próprio sineiro, a querida filha que
conduzia também a alma e o coração do velho pai.
Assim é que, posto na paupérrima
nave da capelinha o corpo idolatrado, o sineiro fez dobrar, a finados, os sinos
da sua igreja, num arranco supremo de esforço físico com que a alma se
transportou à eternidade, deixando a dor estampada no “trágico semblante”.
O gênio de Victor Hugo pôs, no mais
hediondo corpo humano o mais lindo sonho de núpcias e Macedo Papança, o
inspirado autor de Catarina de Athayde, no coração do sineiro o mais exaltado
amor de pai, amores que se contrastam no sentimento e se assemelham na
intensidade.
Quasímodo e o sineiro de Papança,
duas paixões que se abrasam na vida e emudecem no sono eterno.
Eis ai alguns livros, que se
desprezados, pela avidez dos leitores em conhecer os autores modernos, em
detrimento dos antigos, os quais devem fazer parte obrigatória do seu portfólio
literário, para que conheçamos, à exaustão, a alma humana em toda a sua
grandeza, e não menosprezemos as suas singularidades e os seus desvios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário