Fernando Alcoforado*
Em
O Ensaio sobre a cegueira editado pela Companhia das Letras, o escritor
português
José
Saramago nos apresenta uma imagem aterradora dos tempos sombrios em que
vivemos.
O romance começa mostrando um motorista parado aguardando a abertura do semáforo
quando se descobre subitamente cego e as pessoas correm em seu socorro até que
se forma uma cadeia sucessiva de cegueira, isto é, uma cegueira, branca, como
um mar de leite jamais conhecida que se alastra rapidamente em forma de
epidemia. O governo decide agir, e as pessoas infectadas são colocadas em uma
quarentena com recursos limitados quando irá desvendar aos poucos as
características primitivas do ser humano.
A
força da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo e depressa o
mundo
se torna cego, onde apenas uma mulher, misteriosa e secretamente manterá a sua visão,
enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos
os sentimentos que se desenrolam na obra: poder, obediência, ganância, carinho,
desejo, vergonha, dominadores, dominados, subjugadores e subjugados. Nesta quarentena
esses sentimentos se irão desenvolver sob diversas formas: lutas entre grupos
pela pouca comida disponibilizada, compaixão pelos doentes e os mais necessitados,
como idosos ou crianças, embaraço por atitudes que antes nunca seriam cometidas,
atos de violência e abuso sexual, mortes.
Ao
conseguir finalmente sair do antigo hospício onde o governo os pusera em
quarentena,
uma mulher se depara com a cidade toda infectada com cadáveres, lixo,
detritos,
todo o tipo de sujidade e imundice. Os cegos passaram a seguir os seus
instintos
animais, e sobreviviam como nômades, instalando-se em lojas ou casas
desconhecidas.
Saramago mostra, através desta obra, as reações do ser humano às
necessidades,
à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos
também
a refletir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da
personagem
principal, a mulher do médico, que se depara ao longo da narrativa com
situações
inadmissíveis. Ela mata para se preservar e aos demais, se depara com a morte de
maneiras bizarras, como cadáveres espalhados pelas ruas e incêndios. A obra
acaba quando subitamente, exatamente pela ordem de contágio, o mundo cego dá
lugar ao mundo imundo e bárbaro. No entanto, as memórias e rastros não se
desvanecem.
O
cenário retratado por Saramago em sua obra traça uma analogia com a cegueira em
que
vivemos no mundo e, em particular, no Brasil. Enfrentamos hoje no Brasil o
risco
de
a cegueira (o mundo cego de Saramago) que domina governantes e governados dar
lugar
ao retrocesso político institucional (mundo imundo e bárbaro de Saramago) que
venha
resultar em consequência do agravamento das crises econômica, social e política
que contaminam os poderes da República. A cegueira que domina os governantes do
Brasil se traduz no fato de adotar a política econômica neoliberal e
antinacional inaugurada em 1994 no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e
mantida nos governos Lula e Dilma Rousseff que está contribuindo para o País
apresentar pífio crescimento econômico com taxas anuais de 1,45% de 1994 a
2012, promover a desindustrialização acelerada do País e a crescente
desnacionalização da economia brasileira, bem como a privatização de portos,
aeroportos e rodovias e, também, do petróleo da camada pré-sal devido à
insuficiência de recursos públicos para investimento.
A
cegueira do governo federal e de seus aliados é tão grande que não tomam
nenhuma atitude para fazer frente à deteriorada situação macroeconômica do
Brasil que se apresenta bastante vulnerável diante da perspectiva de déficits
crescentes na balança comercial e no balanço de pagamentos em conta corrente
que fazem o Pais se tornar cada vez mais dependente de capitais externos que
estão sendo atraídos pelo governo federal para fazer frente a esses déficits.
Para agravar a situação, metade dos
investimentos
estrangeiros diretos no Brasil é utilizado por empresas estrangeiras para
aquisição
de empresas brasileiras debilitadas pela concorrência no mercado interno e
dos
produtos importados mais competitivos. É este processo de agravamento do
balanço de pagamentos que alimenta a desnacionalização da economia brasileira
que se aprofunda a cada dia. A progressão recente do saldo negativo no balanço
de pagamentos em conta corrente causa preocupação porque sua evolução a médio e
longo prazo pode tornar insustentável o financiamento do déficit em conta
corrente com recursos externos contribuindo, desta forma, para a redução das
reservas internacionais que passariam a ser utilizadas para a cobertura deste
déficit.
A
cegueira do governo federal é tão grande que não toma nenhuma providência para
reverter
a deterioração das contas públicas que a cada ano destina quase 50% do
orçamento
da União para o pagamento dos juros e da amortização da dívida pública. Em 2013,
os maiores gastos do governo brasileiro previstos
são com juros e amortizações da dívida que correspondem a 43,98% do orçamento,
com a previdência social que correspondem a 22,47% do orçamento e com
transferências a Estados e Municípios que correspondem a 10,21% do orçamento.
Diante desta situação, não há disponibilidade suficiente de recursos públicos
para investir na infraestrutura econômica (energia, transportes e comunicações)
e social (educação, saúde, saneamento básico e habitação).
É
esta situação que faz com que o governo federal lamentavelmente adote a
política
neoliberal
de privatização da infraestrutura de portos, aeroportos e rodovias e da
exploração
do petróleo da camada pré-sal.
Enquanto
a situação econômica se deteriora a cada dia que se passa, a situação social
também
se agrava com o aumento da taxa de desemprego que foi de 4,6% da população economicamente
ativa em dezembro de 2012 e alcançou 5,6% em fevereiro de 2013 e a renda
continua bastante concentrada apesar da política de distribuição de renda com o
programa Bolsa Família (20% da população mais rica
do Brasil é detentora de 67% da renda nacional e 20% da mais pobre possui
apenas 2% da renda nacional). Para completar a grave situação social do Brasil constata-se a
existência de elevada
criminalidade
em que o Brasil apresenta os maiores índices em todo o mundo com uma taxa anual
de aproximadamente 22 homicídios a cada 100.000 habitantes enquanto os Estados
Unidos e a França, considerados exemplos, registram 6 e 0,7 assassinatos, respectivamente.
A cegueira dos governantes do Brasil, do PT e partidos aliados é tão grande que
apresentam como grande conquista do governo a inclusão social promovida pelo
Bolsa Família desconsiderando o evidente fracasso das políticas públicas nos campos
econômico e social.
A
cegueira dos governantes do Brasil e de seus apoiadores atingiu as culminâncias
recentemente
com a tentativa de desqualificar o Supremo Tribunal Federal e,
particularmente,
seu presidente, o ministro Joaquim Barbosa, que tomou a decisão de
prender
os “mensaleiros”. Os defensores dos “mensaleiros” afirmam que houve
julgamento
de exceção e de que não havia provas que os incriminassem. Quem
acompanhou
o julgamento do STF sabe que esta afirmativa é falsa porque os criminosos contaram
com a defesa de advogados regiamente pagos e até mesmo de ministros do STF
nomeados pelos governo Lula e Dilma Rousseff. Todos os “mensaleiros” foram condenados
com base em provas e em testemunho. Os defensores dos “mensaleiros”
estão
cegos diante dos fatos indiscutíveis do “mensalão”. A atitude dos defensores
dos
“mensaleiros”
é a de tentar salvar (cegamente) a face de um partido e de um governo
que
perderam a confiança da nação .
A cegueira
caracterizada pela falta de atitude dos governantes do Brasil e de seus
apoiadores
na busca de solução para evitar a deterioração econômica, social e política
em curso pode
levar ao retrocesso político institucional com o advento do mundo
imundo e
bárbaro citado por Saramago. É preciso não esquecer que a crise econômica
de 1929
levou ao fim da República Velha e ao advento da ditadura de Getúlio Vargas
(1930-1945)
e a crise econômica no início da década de 1960 levou ao advento da
ditadura
militar de 1964 a 1985. É preciso evitar que a deterioração econômica, social e
política da era contemporânea conduza o Brasil a um novo regime de exceção, o
mundo imundo e bárbaro citado por Saramago. Compete ao governo federal e à
Sociedade Civil evitarem que este cenário aconteça.
*Fernando Alcoforado, 73, engenheiro e doutor em Planejamento
Territorial e Desenvolvimento Regional
pela Universidade de Barcelona, professor universitário e
consultor nas áreas de planejamento estratégico,
planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de
sistemas energéticos, é autor dos
livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De
Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem
Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora
Nobel, São Paulo, 2000),
Os condicionantes do desenvolvimento do Estado
da Bahia (Tese
de doutorado. Universidade de
Barcelona, http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização
e Desenvolvimento
(Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do
Século XVI ao Século XX e Objetivos
Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The
Necessary Conditions of the
Economic and Social
Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller
Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento
Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e Editora, Salvador, 2010),
Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e
combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz
do Rio Pardo, São Paulo, 2011) e
Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento
Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), entre outros.
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