sábado, 30 de novembro de 2013

A CEGUEIRA QUE DOMINA O BRASIL

Fernando Alcoforado*



Em O Ensaio sobre a cegueira editado pela Companhia das Letras, o escritor português
José Saramago nos apresenta uma imagem aterradora dos tempos sombrios em que

vivemos. O romance começa mostrando um motorista parado aguardando a abertura do semáforo quando se descobre subitamente cego e as pessoas correm em seu socorro até que se forma uma cadeia sucessiva de cegueira, isto é, uma cegueira, branca, como um mar de leite jamais conhecida que se alastra rapidamente em forma de epidemia. O governo decide agir, e as pessoas infectadas são colocadas em uma quarentena com recursos limitados quando irá desvendar aos poucos as características primitivas do ser humano.

A força da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo e depressa o
mundo se torna cego, onde apenas uma mulher, misteriosa e secretamente manterá a sua visão, enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam na obra: poder, obediência, ganância, carinho, desejo, vergonha, dominadores, dominados, subjugadores e subjugados. Nesta quarentena esses sentimentos se irão desenvolver sob diversas formas: lutas entre grupos pela pouca comida disponibilizada, compaixão pelos doentes e os mais necessitados, como idosos ou crianças, embaraço por atitudes que antes nunca seriam cometidas, atos de violência e abuso sexual, mortes.

Ao conseguir finalmente sair do antigo hospício onde o governo os pusera em
quarentena, uma mulher se depara com a cidade toda infectada com cadáveres, lixo,
detritos, todo o tipo de sujidade e imundice. Os cegos passaram a seguir os seus
instintos animais, e sobreviviam como nômades, instalando-se em lojas ou casas
desconhecidas. Saramago mostra, através desta obra, as reações do ser humano às
necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos
também a refletir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da
personagem principal, a mulher do médico, que se depara ao longo da narrativa com
situações inadmissíveis. Ela mata para se preservar e aos demais, se depara com a morte de maneiras bizarras, como cadáveres espalhados pelas ruas e incêndios. A obra acaba quando subitamente, exatamente pela ordem de contágio, o mundo cego dá lugar ao mundo imundo e bárbaro. No entanto, as memórias e rastros não se desvanecem.

O cenário retratado por Saramago em sua obra traça uma analogia com a cegueira em
que vivemos no mundo e, em particular, no Brasil. Enfrentamos hoje no Brasil o risco
de a cegueira (o mundo cego de Saramago) que domina governantes e governados dar
lugar ao retrocesso político institucional (mundo imundo e bárbaro de Saramago) que
venha resultar em consequência do agravamento das crises econômica, social e política que contaminam os poderes da República. A cegueira que domina os governantes do Brasil se traduz no fato de adotar a política econômica neoliberal e antinacional inaugurada em 1994 no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e mantida nos governos Lula e Dilma Rousseff que está contribuindo para o País apresentar pífio crescimento econômico com taxas anuais de 1,45% de 1994 a 2012, promover a desindustrialização acelerada do País e a crescente desnacionalização da economia brasileira, bem como a privatização de portos, aeroportos e rodovias e, também, do petróleo da camada pré-sal devido à insuficiência de recursos públicos para investimento.

A cegueira do governo federal e de seus aliados é tão grande que não tomam nenhuma atitude para fazer frente à deteriorada situação macroeconômica do Brasil que se apresenta bastante vulnerável diante da perspectiva de déficits crescentes na balança comercial e no balanço de pagamentos em conta corrente que fazem o Pais se tornar cada vez mais dependente de capitais externos que estão sendo atraídos pelo governo federal para fazer frente a esses déficits. Para agravar a situação, metade dos
investimentos estrangeiros diretos no Brasil é utilizado por empresas estrangeiras para
aquisição de empresas brasileiras debilitadas pela concorrência no mercado interno e
dos produtos importados mais competitivos. É este processo de agravamento do balanço de pagamentos que alimenta a desnacionalização da economia brasileira que se aprofunda a cada dia. A progressão recente do saldo negativo no balanço de pagamentos em conta corrente causa preocupação porque sua evolução a médio e longo prazo pode tornar insustentável o financiamento do déficit em conta corrente com recursos externos contribuindo, desta forma, para a redução das reservas internacionais que passariam a ser utilizadas para a cobertura deste déficit.

A cegueira do governo federal é tão grande que não toma nenhuma providência para
reverter a deterioração das contas públicas que a cada ano destina quase 50% do
orçamento da União para o pagamento dos juros e da amortização da dívida pública. Em 2013, os maiores gastos do governo brasileiro previstos são com juros e amortizações da dívida que correspondem a 43,98% do orçamento, com a previdência social que correspondem a 22,47% do orçamento e com transferências a Estados e Municípios que correspondem a 10,21% do orçamento. Diante desta situação, não há disponibilidade suficiente de recursos públicos para investir na infraestrutura econômica (energia, transportes e comunicações) e social (educação, saúde, saneamento básico e habitação).

É esta situação que faz com que o governo federal lamentavelmente adote a política
neoliberal de privatização da infraestrutura de portos, aeroportos e rodovias e da
exploração do petróleo da camada pré-sal.

Enquanto a situação econômica se deteriora a cada dia que se passa, a situação social
também se agrava com o aumento da taxa de desemprego que foi de 4,6% da população economicamente ativa em dezembro de 2012 e alcançou 5,6% em fevereiro de 2013 e a renda continua bastante concentrada apesar da política de distribuição de renda com o programa Bolsa Família (20% da população mais rica do Brasil é detentora de 67% da renda nacional e 20% da mais pobre possui apenas 2% da renda nacional). Para completar a grave situação social do Brasil constata-se a existência de elevada
criminalidade em que o Brasil apresenta os maiores índices em todo o mundo com uma taxa anual de aproximadamente 22 homicídios a cada 100.000 habitantes enquanto os Estados Unidos e a França, considerados exemplos, registram 6 e 0,7 assassinatos, respectivamente. A cegueira dos governantes do Brasil, do PT e partidos aliados é tão grande que apresentam como grande conquista do governo a inclusão social promovida pelo Bolsa Família desconsiderando o evidente fracasso das políticas públicas nos campos econômico e social.

A cegueira dos governantes do Brasil e de seus apoiadores atingiu as culminâncias
recentemente com a tentativa de desqualificar o Supremo Tribunal Federal e,
particularmente, seu presidente, o ministro Joaquim Barbosa, que tomou a decisão de
prender os “mensaleiros”. Os defensores dos “mensaleiros” afirmam que houve
julgamento de exceção e de que não havia provas que os incriminassem. Quem
acompanhou o julgamento do STF sabe que esta afirmativa é falsa porque os criminosos contaram com a defesa de advogados regiamente pagos e até mesmo de ministros do STF nomeados pelos governo Lula e Dilma Rousseff. Todos os “mensaleiros” foram condenados com base em provas e em testemunho. Os defensores dos “mensaleiros”
estão cegos diante dos fatos indiscutíveis do “mensalão”. A atitude dos defensores dos
“mensaleiros” é a de tentar salvar (cegamente) a face de um partido e de um governo
que perderam a confiança da nação .

A cegueira caracterizada pela falta de atitude dos governantes do Brasil e de seus
apoiadores na busca de solução para evitar a deterioração econômica, social e política
em curso pode levar ao retrocesso político institucional com o advento do mundo
imundo e bárbaro citado por Saramago. É preciso não esquecer que a crise econômica
de 1929 levou ao fim da República Velha e ao advento da ditadura de Getúlio Vargas
(1930-1945) e a crise econômica no início da década de 1960 levou ao advento da
ditadura militar de 1964 a 1985. É preciso evitar que a deterioração econômica, social e política da era contemporânea conduza o Brasil a um novo regime de exceção, o mundo imundo e bárbaro citado por Saramago. Compete ao governo federal e à Sociedade Civil evitarem que este cenário aconteça.

*Fernando Alcoforado, 73, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional
pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico,
planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos
livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem
Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000),
Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de
Barcelona, http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento
(Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos
Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the
Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller
Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e Editora, Salvador, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e
combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011) e

Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), entre outros.

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