Conto de Victor
Hugo
NR/ Victor-Marie
Hugo (Besançon, 26 de
fevereiro de 1802 - Paris, 22 de maio de 1885) foi um
novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos
direitos humanos francês
de grande atuação política em seu país. É autor de Les
Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras.
Na noite de
17 de março de 1870, o capitão Harvey fazia sua travessia habitual entre
Southampton e Guernesey. Um nevoeiro cobria o mar. 0 capitão Harvey estava de
pé no passadiço do steamer, e manobrava cuidadosamente por causa da
noite e da bruma. Os passageiros dormiam.
O Normandy era um
navio muito grande; talvez o mais bonito dos que faziam a travessia da Mancha:
seiscentas toneladas, duzentos e vinte pés ingleses de comprimento, vinte e cinco
de largura; era “jovem”, como dizem os marinheiros: não tinha sete anos. Fora
construído em 1863.
0 nevoeiro
aumentava, tinha-se saído do rio de Southampton, estava-se em pleno mar, cerca
de quinze milhas além das Agulhas. 0 paquete avançava devagar. Eram quatro
horas da manhã.
A escuridão era
absoluta, uma espécie de teto baixo rodeava o steamer; a custo
avistava-se a ponta dos mastros.
Nada tão terrível
quanto esses navios cegos; que avançam dentro da noite.
De súbito surge um
negrume entre a bruma, fantasma e montanha, um promontório de sombra correndo
na espuma e varando as trevas. Era o Mary, grande steamer de
hélice que vinha de Odessa e se dirigia para Grimsby com um carregamento de
quinhentas toneladas de trigo; velocidade enorme, peso imenso. O Mary avançava
direto sobre o Normandy.
Nenhum recurso
havia para evitar o choque, tamanha a rapidez com que surgem no nevoeiro esses
espectros de navios. São encontros sem aproximação. Antes de acabar de vê-lo, a
pessoa está morta. 0 Mary, correndo a todo vapor, colheu o Normandy
perpendicularmente ao costado e arrebentou-o.
Ele próprio,
avariado com o choque, parou.
Havia no Normandy
vinte e oito homens de tripulação, uma criada… e trinta e dois passageiros, dos
quais doze eram mulheres.
0 abalo foi
violentíssimo. Num momento todos estavam no tombadilho: homens, mulheres,
crianças, seminus, correndo, gritando, chorando. A água entrava furiosa. A
fornalha das máquinas, alcançada pela inundação, arquejava. Os salva-vidas
faltavam.
0 capitão Harvey,
de pé no passadiço do comando, bradou: “Silêncio para todos, e atenção! Botes
ao mar. As mulheres primeiro, os passageiros depois. Em seguida a tripulação.
Há sessenta pessoas para salvar”.
Eram sessenta e
uma, porém ele esquecia-se de si próprio.
Soltaram as
embarcações. Todos correram para elas. Esse açodamento podia fazer os botes
virarem. Ockleford, o imediato, e os três contramestres, contiveram aquela
multidão desvairada. Dormir, e de súbito, imediatamente, morrer, é pavoroso.
Enquanto isso,
acima dos gritos e do tumulto, ouvia-se a voz grave do capitão, e este curto
diálogo ocorria nas trevas: “Maquinista Locks? – Capitão. – Como está a
fornalha? – Submersa. – 0 fogo? – Apagado. – A máquina? – Morta.”
0 capitão gritou:
“Imediato Ockleford?” 0 imediato respondeu: “Presente”. 0 capitão prosseguiu:
“De quantos minutos dispomos? – Vinte. – É o bastante, disse o capitão. Que
todos embarquem, cada qual por sua vez”.
“Imediato
Ockleford, está com suas pistolas? – Sim, capitão. – Queime os miolos de
qualquer homem que quiser passar antes de uma mulher”.
Todos se calaram.
Ninguém resistiu; a multidão sentia acima de si própria aquela grande alma.
O Mary,
por seu lado, descera seus botes e acudia em socorro daquele naufrágio que era
obra sua.
0 salvamento
operou-se com ordem e quase sem luta. Havia, como sempre, tristes egoísmos;
também houve dedicações patéticas.
Harvey, impassível
em seu posto de comandante, ordenava, dominava, dirigia, ocupava-se com tudo e
com todos, governava calmamente aquela agonia e parecia dar ordens à própria
catástrofe. Dir-se-ia que o naufrágio lhe prestava obediência.
Em determinado
instante ele gritou: “Salvem Clemente!”
Clemente era o
grumete. Uma criança.
0 navio diminuía
vagarosamente na água profunda. Apressava-se o mais possível o vaivém das
embarcações entre o Normandy e o Mary.
“Depressa!” gritava
o capitão.
No vigésimo minuto
o steamer soçobrou.
A proa afundou
primeiro, depois a popa.
O capitão Harvey,
de pé no passadiço, não fez um gesto, não disse uma palavra, entrou imóvel no
abismo. Viu-se, através da neblina sinistra, aquela estátua negra mergulhar no
oceano. Assim acabou o capitão Harvey.
Nenhum marinheiro
da Mancha o igualava. Depois de se ter imposto a vida toda o dever de ser um
homem, ele usou, ao morrer, do direito de ser um herói.
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