Extraído do O ESTADO DE SÃO PAULO
FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO
Finalmente se fez justiça no caso do mensalão. Escrevo sem júbilo: é
triste ver na cadeia gente que em outras épocas lutou com desprendimento. Eles
estão presos ao lado de outros que se dedicaram a encher os bolsos ou a pagar
suas campanhas à custa do dinheiro público. Mais melancólico ainda é ver
pessoas que
outrora se jogavam por ideais - mesmo que controversos - erguerem
os punhos como se vivessem uma situação revolucionária, no mesmo instante em
que juram fidelidade à Constituição. Onde está a revolução? Gesticulam como se
fossem Lenines que receberam dinheiro sujo, mas o usaram para construir a
"nova sociedade". Nada disso: apenas ajudaram a cimentar um bloco de
forças que vive da mercantilização da política e do uso do Estado para se
perpetuar no poder. De pouco serve a encenação farsesca, a não ser para
confortar quem a faz e enganar seus seguidores mais crédulos.
Basta de tanto engodo. A condenação pelos crimes do mensalão deu-se em
plena vigência do Estado de Direito, num momento em que o Executivo é exercido
pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo governo indicou a maioria dos
ministros do Supremo. Não houve desrespeito às garantias legais dos réus e ao
devido processo legal. Então, por que a encenação? O significado é claro:
eleições à vista. É preciso mentir, autoenganar-se e repetir o mantra. Não por
acaso, a direção do PT amplifica a encenação e Lula diz que a melhor resposta à
condenação dos mensaleiros é reeleger Dilma Rousseff... Tem sido sempre assim,
desde a apropriação das políticas de proteção social até a ideia esdrúxula de
que a estabilização da economia se deveu ao governo do PT. Esqueceram as
palavras iradas que disseram contra o que hoje gabam e as múltiplas ações que
moveram no Supremo para derrubar as medidas saneadoras. O que conta é a
manutenção do poder.
Em toada semelhante, o mago do ilusionismo fez coro. Aliás, neste caso,
quem sabe, um lapso verbal expressou sinceridade. "Estamos juntos",
disse Lula. Assumiu meio de raspão sua fatia de responsabilidade, ao menos em
relação a companheiros a quem deve muito. E ao País, o que dizer?
Reitero, escrevo tudo isso com melancolia, não só porque não me apraz
ver gente na cadeia, embora reconheça a legalidade e a necessidade da decisão,
mas principalmente porque tanto as ações que levaram a tão infeliz desfecho
como a cortina de mentiras que alimenta a aura de heroicidade fazem parte de
amplo processo de alienação que envolve a sociedade brasileira. São muitos os
responsáveis por ela, não só os petistas. Poucos têm tido a compreensão do alcance
destruidor dos procedimentos que permitem reproduzir o bloco de poder
hegemônico; são menos numerosos ainda os que têm tido a coragem de gritar
contra essas práticas. É enorme o arco de alianças políticas no Congresso cujos
membros se beneficiam por pertencerem à "base aliada" de apoio ao
governo. Calam-se diante do mensalão e das demais transgressões, como se o
"hegemonismo petista" que os mantém fosse compatível com a
democracia. Que dizer, então, da parte da elite empresarial que se ceva dos
empréstimos públicos e emudece diante dos malfeitos do petismo e de seus
acólitos? Ou da outrora combativa liderança sindical, hoje acomodada nas
benesses do poder?
Nada há de novo no que escrevo. Muitos sabem que o rei está nu e poucos
bradam. Daí a descrença sobre a elite política reinante na opinião pública mais
esclarecida. Quando alguém dá o nome aos bois, como, no caso, o ministro
Joaquim Barbosa, que estruturou o processo e desnudou a corrupção, teme-se que,
ao deixar a presidência do STF, a onda moralizante dê marcha à ré. É evidente,
pois, a descrença nas instituições. A tal ponto que se crê mais nas pessoas,
sem perceber que por esse caminho voltaremos aos salvadores da Pátria. São
sinais alarmantes.
Os seguidores do lulopetismo, por serem crédulos, talvez sejam menos
responsáveis pela situação a que chegamos do que os cínicos, os medrosos, os
oportunistas, as elites interesseiras que fingem não ver o que está à vista de
todos. Que dizer, então, das práticas políticas? Não dá mais! Estamos a ver as
manobras preparatórias para mais uma campanha eleitoral sob o signo do embuste.
A candidata oficial, pela posição que ocupa, tem cada ato multiplicado pelos
meios de comunicação. Como o exercício do poder se confundiu, na prática, com a
campanha eleitoral, entramos já em período de disputa. Disputa desigual, na
qual só um lado fala e as oposições, mesmo que berrem, não encontram eco. E
sejamos francos: estamos berrando pouco.
É preciso dizer com coragem, simplicidade e de modo direto, como fizeram
alguns ministros do Supremo, que a democracia não se compagina com a corrupção
nem com as distorções que levam ao favorecimento dos amigos. Não estamos diante
de um quadro eleitoral normal. A hegemonia de um partido que não consegue
deslindar-se de crenças salvacionistas e autoritárias, o acovardamento de
outros e a impotência das oposições estão permitindo a montagem de um sistema
de poder que, se duradouro, acarretará riscos de regressão irreversível.
Escudado nos cofres públicos, o governo do PT abusa do crédito fácil que agrada
não só aos consumidores, mas, em volume muito maior, aos audaciosos que montam
suas estratégias empresariais nas facilidades dadas aos amigos do rei. A
infiltração dos órgãos de Estado pela militância ávida e por oportunistas que
querem beneficiar-se do Estado distorce as práticas republicanas.
Tudo isso é arquissabido. Falta dar um basta aos desmandos, processo
que, numa democracia, só tem um caminho: as urnas. É preciso desfazer na
consciência popular, com sinceridade e clareza, o manto de ilusões com que o
lulopetismo vendeu seu peixe. Com a palavra as oposições e quem mais tenha
consciência dos perigos que corremos.
* SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Nenhum comentário:
Postar um comentário