terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O ANJO EXTERMINADO E O FIM DA COMUNICAÇÃO ARTÍSTICA, POR MARCO GAVAZZA


Quatro da manhã de um sábado qualquer, Rodrigo Sá Menezes convida educadamente os boêmios mais renitentes a saírem da sua boate, o Anjo Azul, lindamente decorada com painéis imensos de Carlos Bastos. João Ubaldo Ribeiro protesta, toma os últimos goles de sua Cuba Libre e sai caminhando tranquilamente
pela Rua do Cabeça, cumprimentando os feirantes que começam a armar suas barracas. Atravessa o Largo 2 de Julho e mergulha no Sodré em direção ao Mercado Modelo aonde chega após uma parada estratégica na casa de Maria da Vovó pra ver umas amigas generosas.


No Mercado, já comendo o sarapatel de Bio, encontra o mestre Jorge Amado que conversa animadamente com Carybé e Mario Cravo, cercados por verduras e frutas. Ruy Espinheira, Caetano e Gil, sentados num canto próximo, escutam atentamente, recolhendo cada palavra que escorrega das mesas. Silenciosa, Irmã Dulce passa recolhendo contribuições para seus pobres. João Ubaldo se junta a eles e começa a manhã de mais um sábado na cidade do Salvador. 


Cena exatamente assim como esta descrita, pode não ter acontecido, porém com algumas poucas variações e outros personagens tão ilustres quanto estes, certamente repetiram-se inúmeras vezes nos anos 60 e até quase o final dos 70. 


Rodrigo Sá Menezes, hoje publicitário, dono da Interamericana e morando em Brasília era proprietário do Anjo Azul, boate que reunia a inteligentzia e a boemia baianas, em noites que atravessavam a quietude da cidade para desembocar no Mercado Modelo ou no das Sete Portas, entre violões, poesias, grandes debates culturais e felicidade geral. 


O Anjo acabou e acabaram os intelectuais, a boemia, o samba canção, as poesias, a quietude, a madrugada silenciosa, as casas das meninas e os saveiros chegando na rampa da manhã. 

Hoje, a noite de Salvador amanhece resfolegante, exausta diante de gols mil tocando axé music pelo porta-malas, explodindo a nova música sertaneja, -agora o muar do sertão- em decibéis histéricos, em cocaína, engarrafamentos em portas de barzinhos sem caráter e prostitutas amadoras. 


Amanhece entulhada de restos de pizzas hut, big-macs, camisinhas, latas de cerveja, red bulls e frequentemente sangue, muito sangue. Sem qualquer charme. Sem o mínimo vestígio de sentido, sabedoria e propósito. Com os pés em cima da poltrona no cinema, a provocação diante de tudo ou o olhar anestesiado diante da boquinha da garrafa, seja ela qual for e sirva para o que servir. 

Quantos novos Jorges, Ubaldos, Ruys, Caetanos, Gils e Carybés sairão na noite baiana de hoje? Nenhum. 

A comunicação sob a forma de arte está em lento processo de extinção na Bahia e a convivência espontânea com quem ainda faz arte ou já desapareceu totalmente ou está por trás de cercas eletrificadas. Quem escreve, quem compõe, quem pinta, quem pensa? Ninguém sabe. Se existem, não estão mais disponíveis como se costumava encontrar pelas madrugadas, saindo dos cinemas, das boates e dos bares. Estão certamente enclausurados em suas casas, vagando na Internet ou refugiados em algum lugar seguro. Longe da horda amorfa e por isso mesmo escandalosa, que povoa a noite baiana sem fazer a menor idéia de pra que ela existe. 

Houve um tempo, muito remoto, em que a noite trazia o medo do desconhecido e por isso os homens primitivos reuniam-se em bandos, faziam fogo e barulho até o amanhecer para espantar o perigo, as feras, os espíritos do mal. Mais ou menos parecido com o que acontece hoje, pois os espíritos do mal agora são convocados. 


Depois o homem evoluiu e tornou-se íntimo da noite, retirando dela as respostas para as mais inquietantes perguntas, deslizando nela mansamente até a barra de novo dia e de uma nova descoberta. A observação da mecânica celeste abriu horizontes e o homem percebendo-se parte de um sistema perfeito, procurou de diversas formas, a perfeição. A noite inspirou cientistas, poetas e trovadores, os astros revelaram os mais escondidos segredos da alma e a bruma de cada novo dia revelava um mundo sempre em renovação.

Quem sabe hoje estamos recomeçando um ciclo, quem sabe estamos tentando espantar novos fantasmas com a mesma fórmula dos velhos tambores, corpos pintados, danças tribais e rituais exóticos? 


Quem sabe serão os habitantes da nova noite, os homens modernos que primeiro perceberam a necessidade de voltar ao princípio paleolítico? Quem sabe a nova verdade não está nas vagas disputadas a tapas na frente das lojas Select? Talvez o novo ciclo de civilização seja exatamente isto que se vê compulsoriamente por aí.


Talvez o Anjo Azul tenha sido apenas um equívoco, simplesmente uma visão um pouco mais bem acabada das antigas cavernas e suas figuras rupestres, sem serventia alguma.


Não sou arauto do passado nem nasci há 10 mil anos atrás. Sou apenas um maior abandonado, um senhor de rua. Sem estatuto, sem proteção e sem mais ter onde passar as noites.


Extraído do Blog: Tatau News de Octaviano Moniz, Artista Visual e Jornalista



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