segunda-feira, 31 de março de 2014

A INVASÃO DO CONVENTO DA LAPA (SALVADOR-BA.), EM 19 DE FEVEREIRO DE 1822

As causas da invasão

Convento da Lapa

O Brasil foi Colônia de Portugal até a chegada do príncipe regente D. João, em 1808. Em 1815, o Brasil foi elevado à categoria de Reino Unido ao de Portugal. Em 1821, D. João VI retornou a Portugal, deixando o Brasil sob a administração de seu filho D. Pedro.  

As Cortes de Lisboa, temendo que D. Pedro fizesse a opção por um governo independente, procuraram evitar que existisse no Brasil um poder central no Rio de Janeiro. As províncias teriam Juntas governativas ligadas diretamente a Portugal. Para a Bahia designaram, por Carta Régia de 9 de dezembro de 1821, o brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo como governador de armas e, em 12 de fevereiro de 1822, uma nova Junta governativa tomou posse, contrariando o desejo dos brasileiros de se governarem sem as imposições vindas de Portugal.
Os baianos que não concordavam com essa decisão reagiram a tais determinações e a partir daí iniciaram-se os conflitos entre soldados portugueses, comandados por Madeira de Melo, e os soldados que defendiam os interesses nacionais. Por essa razão, diversos motins foram acontecendo pelas ruas da capital baiana, com toda sorte de atrocidades sendo cometidas pelos soldados portugueses até atingir a situação mais grave, a 19 de fevereiro de 1822, quando invadiram o Convento da Lapa e assassinaram a madre sóror Joana Angélica e o capelão Daniel da Silva Lisboa. Essa invasão de um lugar sagrado para a população religiosa e a morte de uma mulher cuja vida estava dedicada ao Senhor causaram profunda consternação na alma nacional. Esse trágico acontecimento deu mais impulso a que os baianos lutassem sem temor, obedecendo ao lema “Independência ou morrer”, até retomarem a Cidade do Salvador das mãos do general Madeira de Melo, a 2 de julho de 1823.
O sacrifício de Joana Angélica jamais foi esquecido e, muitas vezes, foi lembrado em narrativas e tomado como motivo de poemas patrióticos. Para rememorar essa data, que neste ano de 2012 completa exatos 190 anos, transcrevemos aqui três textos do século XIX que tratam da cena do assassinato da mártir da Independência do Brasil: o primeiro é um relato feito pelo historiador Joaquim Norberto, publicado originalmente, em 1862; os demais são três sonetos de dois poetas baianos, Amélia Rodrigues e João de Britto, publicados em jornais do final do século XIX. Em todos eles há o mesmo sentimento de indignação diante do horror causado pelos agressores da dignidade nacional e o engrandecimento e louvação do ato heroico da corajosa mulher baiana e religiosa convicta da sua fé que, perdendo sua vida, deu o exemplo de como se devia servir a Deus e à Pátria.

UM RELATO DO ACONTECIMENTO:

Joaquim NorbertoJoana Angélica, a freira mártir  

“O dia 19 de fevereiro foi um dia de luto para a cidade da Bahia; as tropas portuguesas, logo ao amanhecer, se derramaram pelas ruas e praças, e cometeram toda a casta de depredações; atacaram os quartéis onde se abrigavam as tropas liberais, e conseguindo entrá-los travaram braço a braço, peito a peito, uma luta feroz e encarniçada, uma luta de morte; e o saque foi geral, nem sequer pouparam as sagradas jóias da capela da Senhora do Rosário, ricamente paramentada, que existia dentro do aquartelamento do extinto 1º regimento de linha.
Já não guerreavam com as armas belicosas; soldados grosseiros, estúpidos e desenfreados, armados de alavancas, como um bando de salteadores, faziam saltar as portas, penetravam nos santos templos, roubavam as sagradas jóias, violavam as casas, profanavam o santuário sagrado de famílias inofensivas, e levavam o desacato ao seio das virgens. Tudo sacrificavam à sua brutalidade, à sua concupiscência, à sua avareza, e, bárbaros assassinavam a mãe, que apertava ao peito o fruto de suas entranhas, cravavam o ferro tinto do sangue ainda fumante nos coraçãozinhos de seus filhos! As tripulações dos navios portugueses vinham também juntar-se à soldadesca e ajudá-la em suas crueldades.
Estas cenas de sangue aterraram a população pacífica, e o general Madeira, frio e impassível como Nero, contemplava-as com um sorriso satânico. Animados os seus soldados com a sua tácita aprovação, renovavam os horrores, redobravam de atrocidades. Entre tantas profanações restava intacto o asilo sagrado das esposas de Deus, das virgens votadas ao culto do Senhor, e o grito tremendo, horrível, sacrílego: “Aos conventos!” partiu dentre eles, e seus olhos ávidos de ouro e de sangue se voltaram para o mosteiro da Lapa. Que silêncio, apenas interrompido pelo compassado ruído de seus passos, precede a bárbara tempestade!...
A madre Joana Angélica, senhora baiana, digna, por suas virtudes, por seus conhecimentos e por suas qualidades, da estima pública, tinha merecido o acatamento e a veneração de suas irmãs, que a escolheram para dirigi-las. Toda a cidade da Bahia apontava para o mosteiro da Lapa, como o asilo de virgens sem nódoa, e falava com orgulho de sua madre abadessa.
Essas virgens votadas ao culto do Senhor estavam prostradas ante os altares, subiam suas preces ardentes e fervorosas, levavam seus rogos a nossa mãe comum, e pediam a sua intervenção na causa da pátria, que se pleiteava nas ruas da cidade, quando as portas estremeceram e caíram pedaços aos golpes dos machados. Os soldados entraram, mas detiveram-se ante o postigo, que dava entrada para o interior; parecia que a unção, que se respirava naquele recinto os havia contido; de repente abriu-se o postigo e se apresentou ante eles uma débil mulher; seu trajo era respeitável; o hábito carmelitano cobria os cilícios, que apertavam as carnes, que haviam morrido para o mundo, e sua cabeça veneranda e sublime resplandecia com os cabelos, que lhe branquearam os anos e as macerações.
Era a madre abadessa, era a Sóror Joana Angélica.
Que dissuasões não empregou ela, como não falou eloquentemente em nome de Deus, como não conjurou-os a que se retirassem, como não lhes mostrou a ignomínia, que lhes resultava de tanta cobardia, a eles, os bravos da guerra peninsular, que, degenerados se glorificavam com o triunfo dos salteadores, e se coroavam com os louros do saque!.
E a turba, rugindo, como um leão, avançava compacta e ameaçadora.
- Detende-vos, bárbaros, bradou a madre abadessa com o acento nobre da indignação e da mais santa coragem; aquelas portas caíram aos vaivéns de vossas alavancas, aos golpes de vossos machados, mas esta passagem está guardada pelo meu peito, e não passareis, senão por cima do cadáver de uma mulher!
E eles, avançando sempre, lhe atravessavam o peito com as baionetas. A madre abadessa cruzou os braços sobre o seio ensanguentado, como se apertasse contra ele a gloriosa palma do martírio, que recebia com a sua morte, alçou os olhos para o céu, e expirou com um sorriso nos lábios. 
O capelão do convento, Daniel da Silva Lisboa, respeitável pelas suas virtudes e idade, acudiu ao conflito, entrou e contemplava cheio de horror o cadáver de uma santa no meio de tanta profanação, quando recebeu também a morte na ponta das baionetas! Que pavor! O pavimento, tinto do sangue dos mártires, estremeceu, como a terra sacudida por suas comoções internas, e as abóbodas ecoaram os gritos da soldadesca, que se derramava pelos longos corredores, que profanava o asilo sagrado, onde reboavam há pouco, ao som da música grave e profunda dos santos profetas, as vozes puras das esposas do céu, os hinos sagrados das filhas de Sião. As freiras, espavoridas fugiram, e buscaram no convento da Soledade uma guarida contra aqueles monstros, que ávidos das riquezas de seu claustro, se embriagavam no saque!”
Joaquim Norberto de Souza Silva.  Brasileiras célebres. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p.201-4. Edição fac-similar, Senado Federal, Brasília, 1997.
POEMAS:

Amélia Rodrigues: A ABADESSA DA LAPA

A soldadesca infrene, alucinada,
Sedenta de oiro, horrível de furor,
Como um tufão de ódio e de terror
Corre pela cidade consternada,

E rouba, e mata, e vai desenfreada,
Contra as portas da casa do Senhor,
Onde viceja da pureza a flor
Pelos anjos do céu custodiada...

Voa a madeira aos golpes da alavanca
Da turba vil... mas à segunda porta
Uma figura surge, doce e branca...

É sóror Joana que a passagem corta!
“Mate-se a freira!...” E logo a entrada franca
Faz-se por cima da abadessa morta!...

Outubro de 1894
A Bahia, 6 abr. 1897

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João de Britto: SÓROR ANGÉLICA

Mongil de neve, azul escapulário,
Pondo em relevo o rosto macilento,
Surge a abadessa à entrada do convento
Para conter o troço tumultuário.

Faz ver que esse mosteiro solitário
É o asilo da paz; santo aposento
Das que, votando o mundo ao esquecimento,
Esposaram o mártir do Calvário.

Um anjo que dos céus ali baixasse,
Não mostrara na voz tanta doçura,
Nem mais serenidade em sua face.

Nada basta, porém, na conjuntura.
Verificado à miséria o traspasse,
Penetra a horda, em grita, na clausura.

                       ***

“Que pretendeis aqui?” bradava a freira,
À soldadesca do mosteiro à porta,
Que forçada se abriu; e logo exorta
Toda a comunidade a opor barreira.

“Permite acaso o general Madeira
Que se viole o claustro? Oh! isso importa
Num sacrilégio vil, que não suporta
A monja, à vossa fúria sobranceira.”

Ia continuar, quando um soldado,
D’arma que traz, usando brutalmente,
Vara-lhe o coração, de lado a lado.

Pálida, oscila e cai; mas de repente
O espírito, do corpo desatado,
Anuncia o Brasil independente!

Itaparica, 1899.
Jornal de Notícias, 3 jul. 1899


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