Por Luiz Carlos Facó
Não sou
bairrista, mas considero Salvador uma das cidades mais lindas do mundo. Jamais
vi uma baía tão harmoniosamente bela como a de Todos os Santos. Um pôr do sol mais magnificente como o observado
do belvedere da Praça Municipal ou da Praia do Porto da Barra. Uma lagoa como
Abaeté. Pérola negra, engastada em garra de platina. Belezas naturais adornadas
por um céu e um mar que mesclam os diversos
tons de azul numa composição
incapaz de ser reproduzida até por um Giotto,
Masaccio ou Michelangelo.
São pelo
menos seis décadas encandeado por esta paixão sedimentada. Alimentada no imenso
braseiro que aquece o meu coração, que nem mesmo o tempo, capaz de transformar
sentimentos em cinzas, é adequado para apagá-lo, sequer arrefece-lo.
Hoje, numa
peregrinação de saudades e consolidação das minhas reminiscências, me dou conta
de que comecei a viver Salvador com olhos desbravadores a partir dos sete ou
oito anos de idade.
Nada me
escapava. Nem sua inusitada topografia, a estreiteza e sinuosidade de suas
ruas, largos, ladeiras e praças com nomes patéticos, por vezes poéticos, como
os das ruas da Oração, Guiri-Guiri, Fonte do Boi, Fonte do Capim,
Passo, Forca, Céu, Bângala, Mouraria, Saúde, Misericórdia, Tira Chapéu, Dendezeiro do
Canela, Pau Miúdo, Curva Grande, Piedade, Pelourinho, a ladeira do
Quebrabunda. Tampouco a irregularidade do seu calçamento. A majestade dos
seus sobrados. A suntuosidade dos seus casarões erguidos entre imensos jardins
adornados por belos caramanchões. Os bondes da antiga Companhia Circular da
Bahia, que nos conduziam a passeios fascinantes. Ao Rio Vermelho de Baixo, hoje
denominado Avenida Vasco da Gama, à Amaralina, à aprazível península de
Itapagipe, ao bairro de Brotas. Veículos que portavam em seu interior reclames
que ficariam famosos e inesquecíveis como: “Veja ilustre passageiro, o belo
tipo faceiro, que o senhor tem ao seu lado. No entanto acredite, quase morreu
de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”. Ou, “Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex”.
“Regulador
Xavier. Número um excesso. Dois, escassez”. Da gente que circulava
pelas suas avenidas e vielas. Das mulatas sestrosas com seus alvos sorrisos.
Resultado de uma benfazeja miscigenação de etnias. Sem olvidar os mascates e as
baianas mães e filhas de santos, arrecadando dinheiro no cumprimento de
obrigações para com os seus santos protetores. São Roque, Cosme, Damião e Doum,
São Lázaro, Santa Bárbara e tantos outros que fazem parte do sincretismo
religioso que que grande patê de nossa gente abraça. Principalmente as rezadeira que todas as
sextas-feiras iam às nossas casas fazer uma limpeza, tirar o mau olhado, ou
mesmo curar uma espinhela caída, uma azia, uma dor de dentes, uma indisposição
qualquer.
De uma delas
recordo=me em particular. Chamava-se Sofia. Era baixinha. Um pingo de gente.
Beirava os oitenta anos, mas alardeava ter quarenta. Bem-apessoada, vestindo-se
apropriadamente, todo final de semana, na hora do almoço, indefectivelmente, lá
estava ela em nossa residência. Com galhos de arruda e outras ervas milagreiras
entre as mãos, benzendo os aposentas da casa e, depois, cada um dos familiares,
recitando sempre: “Com dois te botaram, com três eu te tiro, com os poderes de Deus
Padre, e Nossa Senhora do Retiro”.
Admiração
maior me reservavam os vendedores e vendedoras.
Como as
mulheres símbolos da terra, as baianas, vestidas a caráter, trajando saias
compridas, rodadas, e blusas rendadas, pano de costa sobre os ombros, turbantes
recobrindo suas cabeças, usando contas e joias verdadeiras que lhes enfeitavam
colo, orelhas e braços, oferecendo nos seus tabuleiros os mais saborosos
quitutes. Abarás, acarajés, doce de tamarindo, amoda, acaçás de leite e milho, cocada preta e
branca, queijadinhas de coco, um festival gastronômico capaz de ensandecer de
prazer o mais exigente apreciador da boa comida. Algumas, como Rosinha, que se
postava ao lado do colégio Marista, acrescia a tão variado cardápio o bolinho
de estudante, que ela denominava punheta.
Para o fingido espanto e horror do Irmão Gonzaga, que acompanhava a saída
dos alunos do colégio, e arrelia dos fregueses
Doutro modo
agiam os ambulantes. Mercadejavam seus produtos de porta em porta,
apregoando-os em versos ou frases chistosas e irreverente: “”comprem, senhoras,
comprem, os meus ovos de fora”, no sentido de que eram do interior. O de
frutas, ao vender umbu, gritava: “aproveitem a safra, imbu sete a dúzia. Sete,
referindo-se a tostões ou centavos, moedas divisionárias da época. Qual delas,
não preciso.
Era assim a
Salvador entre os anos quarenta e cinquenta. Plena em belezas naturais,
excessivamente rica em monumentos históricos, como as Igrejas de São Francisco,
Conceição da Praia, Catedral Basílica, Santa Tereza, o Forte de São Pedro, São
Diogo, Santo Antônio da Barra, São Diogo, São Marcelo, Monte Serrat, Gamboa, os
solares do Saldanha, Unhão, Boa Vista, as casas do Sete Candeeiros e de José
Maciel de Sá Barreto. Buscando uma identidade própria, que me permito afirmar,
foi estabelecida após a apuração dos excessos da retórica, do barroquismo, do
gongorismo, da grandiloquência, da influência, quase imperceptível, mas
consistente, hindu, mulçumana, árabe e afro-asiática.
Resultando
no surgimento deste povo que é o cadinho da alegria da hospitalidade,
afabilidade. Fascinado pela música, dança e pelas demais artes. Qualidades que,
agregadas às da generosa terra mãe, lhe conferiram um estilo peculiar, um
acabamento imune a cópias, tornando Salvador insuspeitamente inigualável.
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