segunda-feira, 26 de maio de 2014

CARTA A MACHADO

Hélio Pólvora
Membro da Academia de Letras da Bahia

Mestre perdoe a ousadia de perturbar-lhe o tumular repouso, mas tenho de dividir minha indignação, e ninguém mais adequado que o senhor, a quem
desrespeitam. Saiba que, tendo virado autor defunto e caído em domínio público, suas obras são reescritas por certa Patrícia Secco e o que ela chama “um monte de gente”.
É de pasmar, não? O Brasil oficial, que o senhor considerava caricato, entende que, para acabar com as desigualdades, é preciso nivelar por baixo. Por que não adotar logo a linguagem oral, a gíria, aquele “nós vai” e “menos a verdade”? Facilitaria a educação, encurtaria a distância criada pela elite reacionária. De um jovem não se exigiria mais aquele empenho que o senhor, menino de morro, aprendiz de tipógrafo e negro, demonstrou para adquirir cultura e conhecimentos, ao ponto de ser, ainda hoje, o ícone das letras brasileiras.
Ser autodidata perdeu o sentido. Autoeducação é palavra e pensamento arcaicos. Nosso patrimônio comum, a língua portuguesa, se abastarda à falta de leitura. O hábito de ler jamais se desenvolveu, conforme prometia na sua época. Quanto mais cresce a população, menos se lê para saber, ocupar o vazio, agarrar-se à lógica, fruir a beleza da comunicação.
Morro de vergonha de dizer-lhe, mestre, que um de seus magníficos contos, quase uma novela, O Alienista, de 1882, foi transformado pela soi-disant escritora Patrícia Secco, com apoio de verbas públicas da lei de incentivo à cultura, em arremedo. Ela o acusa de escrever difícil, de ter vocabulário rico, de pensar com largueza e profundidade – e adultera seu texto para estimular a leitura dos preguiçosos e alienados.
Sei que o senhor desprezaria esse tipo de leitor que, talvez por viver em tempos de corrupção escancarada, sabe o que é esperteza, mas ignora o que significa sagacidade. Então, a autora do pastiche que já circula em pdf faz a substituição apenas com o intuito de facilitar. Ficam banidos doravante os dicionários que encantavam o senhor, como leitura obrigatória, e encantaram também Carlos Drummond de Andrade e outros maiores. Anula-se o esforço do aprendizado, foge-se do caminho pedregoso da conquista de intelectualidade, troca-se a riqueza vocabular pelo monossílabo gaiato ou grosseiro.
Faltou-me coragem, Machado, de percorrer as páginas da versão de O Alienista. Nada sei das artes da autora do pastiche para trazer à tona, cara a cara, as sutilezas de expressão que o mestre punha nas entrelinhas. Para esclarecer as suas ironias, tirando-lhes o prazer das arremetidas, o sabor da língua culta, assentada. Mexer em texto alheio, sobretudo de um escritor clássico, e mexer para cortar, acrescentar, substituir, devia ser crime. Para nós todos que, bem ou mal escrevemos um crime hediondo.
Abre-se uma porta larga para o estelionato. O que se fará de outros títulos seus? Memórias Póstumas de Brás Cubas passará a chamar-se Lembranças de um Autor Depois de Morto, conforme alguém já escarneceu? O romance Dom Casmurro se transformará em Dom Cabeçudo ou Dom Carrancudo? Os olhos oblíquos e dissimulados de Capitu serão doravante tortos e falsos?
No conto “Missa do Galo”, segundo li na Folha, conversação é papo; “há muitos anos” se transforma em “há uma pá de tempo”; vizinho é bróder; peralta é sacana. A exclamação “com a breca” é substituída por “mas qui carai...”
A única vantagem do projeto de descomplicar está na tiragem de 300 mil cópias gratuitas. Quem gostará de circular em versão alheia, mesmo regiamente pago? Talvez os herdeiros de direitos autorais, ou os eternos candidatos à boa escrita. Quanto aos autores de obras à mercê do domínio público, nada a fazer. Estão condenados.
Mestre prevejo a glória dos alfarrabistas. Dos antiquários. Dos sebos. Venderão obras originais a preço fulgurante – o que, aliás, já fazem, porque os editores detestam repor obras esgotadas no mercado e, além disso, certos professores universitários, mais empenhados em turismo cultural do que em formar leitores de escol, preferem passar súmulas de obras-primas a instigar a leitura de fato, que muda segundo os temperamentos e pontos de vista.
Adeus, mestre, mais uma vez. E calma, muita calma. Não adianta, da eternidade em que se encontra distribuir piparotes nos tolos. Os pobres de espírito e ricos de gula material não valem os nós dos seus dedos.


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