Hélio Pólvora
Membro da
Academia de Letras da Bahia
Mestre perdoe a ousadia de perturbar-lhe
o tumular repouso, mas tenho de dividir minha indignação, e ninguém mais
adequado que o senhor, a quem
desrespeitam. Saiba que, tendo virado autor
defunto e caído em domínio público, suas obras são reescritas por certa Patrícia
Secco e o que ela chama “um monte de gente”.
É de pasmar, não? O Brasil oficial,
que o senhor considerava caricato, entende que, para acabar com as
desigualdades, é preciso nivelar por baixo. Por que não adotar logo a linguagem
oral, a gíria, aquele “nós vai” e “menos a verdade”? Facilitaria a educação,
encurtaria a distância criada pela elite reacionária. De um jovem não se
exigiria mais aquele empenho que o senhor, menino de morro, aprendiz de
tipógrafo e negro, demonstrou para adquirir cultura e conhecimentos, ao ponto
de ser, ainda hoje, o ícone das letras brasileiras.
Ser autodidata perdeu o sentido.
Autoeducação é palavra e pensamento arcaicos. Nosso patrimônio comum, a língua
portuguesa, se abastarda à falta de leitura. O hábito de ler jamais se desenvolveu,
conforme prometia na sua época. Quanto mais cresce a população, menos se lê
para saber, ocupar o vazio, agarrar-se à lógica, fruir a beleza da comunicação.
Morro de vergonha de dizer-lhe,
mestre, que um de seus magníficos contos, quase uma novela, O Alienista, de 1882, foi transformado
pela soi-disant escritora Patrícia
Secco, com apoio de verbas públicas da lei de incentivo à cultura, em arremedo.
Ela o acusa de escrever difícil, de ter vocabulário rico, de pensar com
largueza e profundidade – e adultera seu texto para estimular a leitura dos
preguiçosos e alienados.
Sei que o senhor desprezaria esse tipo
de leitor que, talvez por viver em tempos de corrupção escancarada, sabe o que
é esperteza, mas ignora o que significa sagacidade. Então, a autora do pastiche
que já circula em pdf faz a substituição apenas com o intuito de facilitar.
Ficam banidos doravante os dicionários que encantavam o senhor, como leitura
obrigatória, e encantaram também Carlos Drummond de Andrade e outros maiores.
Anula-se o esforço do aprendizado, foge-se do caminho pedregoso da conquista de
intelectualidade, troca-se a riqueza vocabular pelo monossílabo gaiato ou
grosseiro.
Faltou-me coragem, Machado, de percorrer
as páginas da versão de O Alienista.
Nada sei das artes da autora do pastiche para trazer à tona, cara a cara, as
sutilezas de expressão que o mestre punha nas entrelinhas. Para esclarecer as
suas ironias, tirando-lhes o prazer das arremetidas, o sabor da língua culta,
assentada. Mexer em texto alheio, sobretudo de um escritor clássico, e mexer
para cortar, acrescentar, substituir, devia ser crime. Para nós todos que, bem
ou mal escrevemos um crime hediondo.
Abre-se uma porta larga para o
estelionato. O que se fará de outros títulos seus? Memórias Póstumas de Brás Cubas passará a chamar-se Lembranças de um Autor Depois de Morto,
conforme alguém já escarneceu? O romance Dom
Casmurro se transformará em Dom
Cabeçudo ou Dom Carrancudo? Os
olhos oblíquos e dissimulados de Capitu serão doravante tortos e falsos?
No conto “Missa do Galo”, segundo li
na Folha, conversação é papo; “há
muitos anos” se transforma em “há uma pá de tempo”; vizinho é bróder; peralta é
sacana. A exclamação “com a breca” é substituída por “mas qui carai...”
A única vantagem do projeto de descomplicar
está na tiragem de 300 mil cópias gratuitas. Quem gostará de circular em versão
alheia, mesmo regiamente pago? Talvez os herdeiros de direitos autorais, ou os
eternos candidatos à boa escrita. Quanto aos autores de obras à mercê do
domínio público, nada a fazer. Estão condenados.
Mestre prevejo a glória dos
alfarrabistas. Dos antiquários. Dos sebos. Venderão obras originais a preço
fulgurante – o que, aliás, já fazem, porque os editores detestam repor obras
esgotadas no mercado e, além disso, certos professores universitários, mais
empenhados em turismo cultural do que em formar leitores de escol, preferem
passar súmulas de obras-primas a instigar a leitura de fato, que muda segundo
os temperamentos e pontos de vista.
Adeus, mestre, mais uma vez. E calma,
muita calma. Não adianta, da eternidade em que se encontra distribuir piparotes
nos tolos. Os pobres de espírito e ricos de gula material não valem os nós dos
seus dedos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário