(Milagre ou engodo?)
Considerado por religiosos como o milagre
mais constante do mundo, o fogo divino que toma o Santo Sepulcro durante a
Páscoa é também apontado por céticos como uma fraude que já dura vários séculos.
Por Carlos Eduardo Ferreira em 30/04/2014
Fonte da imagem: Reprodução/Varvara
Costuma-se dizer
que religião e ciência não devem se misturar, posto que a primeira repousaria
sobre a fé a segunda sobre a razão. Entretanto, ao vislumbrar um fogo que se
acende magicamente, toma todo um local
sagrado para, por fim, repousar sobre
uma vela — sendo incapaz de queimar a pele ou as vestimentas do seu portador,
conforme relatos —, é realmente difícil não colocar os dois universos
conflitantes frente a frente.
A LITURGIA
O referido
acontecimento é uma das liturgias mais antigas da tradição ortodoxa, sendo
considerado o milagre mais constante no mundo (desde 1106, embora existam
referências mais antigas). Em evento televisionado para diversos países — como
Geórgia, Grécia, Ucrânia, Romênia, Bielo-Rússia, Bulgária, Chipre, Líbano,
Egito etc. —, o patriarca grego ortodoxo inicia uma procissão solene ao redor
do Santo Sepulcro, local onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo foi
sepultado.
Juntamente com
outros membros do clero, o homem santo da Igreja Católica Ortodoxa marcha por
três vezes ao redor do local entoando hinos. Em seguida, ele é despido de suas
roupas religiosas e examinado por autoridades israelenses, entrando no
sepulcro. É ali que ele recitará orações tremendamente antigas, até que o local
seja preenchido pelo que normalmente é descrito como uma “misteriosa luz azul surgida do nada”.
Postados na parte
externa do Santo Sepulcro, fiéis celebram e se acotovelam com velas nas mãos,
esperando pelo momento em que o patriarca deixará a tumba, trazendo consigo uma
vela acesa pelo próprio fogo da “sarça
ardente do Monte Sinai” — o qual, depois de serpentear pelas paredes do
Sepulcro, acaba por estacionar sobre 33 velas amarradas juntas pelo clérigo —,
simbolizando a idade de Cristo quando foi crucificado.
Eis o evento,
conforme descrito por Diodoro de Jerusalém, patriarca da Igreja Ortodoxa de
Jerusalém entre 1981 e 2000:
“Eu passei pela escuridão até a câmara
interna e caí de joelhos. Lá, eu recitei algumas orações que nos foram passadas
através dos séculos e, tendo-as dito, esperei. Algumas vezes, por alguns
minutos, mas normalmente o milagre acontece imediatamente após eu ter recitado
as orações. Do centro da pedra na qual Jesus esteve deitado, uma luz
indescritível aparece. Ela geralmente tem um tom azulado, mas a cor pode mudar
e tomar diversas outros padrões.
“Ela não pode ser descrita em termos humanos. A luz sai da pedra como
uma bruma que sobe de um lago, quase como se a pedra estivesse coberta por uma
nuvem úmida, mas de luz. Esta luz se comporta de maneira diferente a cada ano.
Algumas vezes, ela cobre apenas a pedra, enquanto em outras ela ilumina o
sepulcro todo, de forma que as pessoas que estão do lado de fora do túmulo e
olham para dentro deles o virão cheio de luz.”
No que se refere à propriedade de ser “fria”, ele
relata:
“A luz não queima. Eu jamais queimei a minha barba nos dezesseis anos que eu fui patriarca em Jerusalém e recebi o Fogo Sagrado. A luz é de uma consistência diferente do fogo normal que queima numa lâmpada de óleo.
“A certo ponto, a luz sobe e forma uma coluna na qual o fogo é de uma natureza diferente, de tal forma que eu sou capaz de acender as minhas velas nele. Quando eu termino de receber a chama desta forma em minhas velas, eu saio e entrego o fogo primeiro para o patriarca armênio e depois para o copta. Depois, para todos os presentes na igreja.”
“A luz não queima. Eu jamais queimei a minha barba nos dezesseis anos que eu fui patriarca em Jerusalém e recebi o Fogo Sagrado. A luz é de uma consistência diferente do fogo normal que queima numa lâmpada de óleo.
“A certo ponto, a luz sobe e forma uma coluna na qual o fogo é de uma natureza diferente, de tal forma que eu sou capaz de acender as minhas velas nele. Quando eu termino de receber a chama desta forma em minhas velas, eu saio e entrego o fogo primeiro para o patriarca armênio e depois para o copta. Depois, para todos os presentes na igreja.”
Uma vez que o patriarca tenha deixado o sepulcro
com a chama sagrada, esta será então distribuída para todos os locais. Além
disso, a chama é também “depositada” em uma lamparina, a qual será conduzida
por voo especialmente fretado até a Catedral de Cristo Salvador de Moscou, na
Rússia. Dali a chama é ainda remetida a diversas dioceses ortodoxas espalhadas
pelo mundo.
DISPOSITIVOS ANTIFRAUDE
A fim de garantir a legitimidade da experiência
sobrenatural do fogo sagrado do Santo Sepulcro, há diversos protocolos que
precisam ser cumpridos previamente. Durante a Sexta-Feira Santa, após o Ofício
das Exéquias de Cristo, autoridades israelenses e representantes de outras
igrejas se dirigem ao sepulcro, a fim de conduzir uma investigação minuciosa do
local.
Após apagar todas as lamparinas da igreja e
garantir que não haja fontes de foto possíveis no local, os membros da comitiva
terminam por lacrar o Santo Sepulcro, imprimindo cada um o seu timbre sobre a
cera. Esta será rompida apenas no momento imediatamente anterior à entrada do
patriarca ortodoxo no recinto.
MILAGRE COM DATA E HORA CERTAS
Embora não propriamente sirva como garantia, há
ainda uma peculiaridade comumente levantada por defensores do suposto milagre.
Ao que parece, o Fogo Sagrado é absolutamente preciso no que se refere ao dia
em que deve “baixar” até o Santo Sepulcro.
De fato, conta-se que a mudança no calendário
introduzida pelo patriarca grego de Jerusalém na virada de 1969 para 1970 — por
conta de uma revisão pedida pelo Concílio Mundial das Igrejas —, por alterar
cronologia, terminou por comprometer o aparecimento do Fogo Sagrado. Isso fez
com que a medida fosse imediatamente revogada e, no ano subsequente, o fogo,
então, tornaria a reaparecer no Santo Sepulcro.
DENÚNCIAS AO LONGO DOS SÉCULOS
É claro que a natureza milagrosa/mágica do fogo do
Santo Sepulcro não poderia deixar de suscitar desconfianças em muita gente,
sendo a principal suspeita a de um sortilégio qualquer lançado para ludibriar
os fiéis, que seriam conduzidos por interesses seculares e por um simples passe
de mágica. E essa “pulga atrás da orelha” é até muito mais antiga do que se
poderia imaginar.
De fato, o cronista inglês Gautier Vinisauf, o
Sultão Saladino, liderando os sarracenos na tomada de Jerusalém em 1192, quis
então presenciar o famoso milagre. “Em
sua chegada, o fogo sagrado desceu repentinamente, e os assistentes ficaram
profundamente emocionados; os sarracenos disseram que o fogo que eles viram
descer fora produzido por meios fraudulentos”, relatou Vinisauf.
O sultão Saladino, um dos mais célebres críticos do
Fogo Sagrado
Ele continua: “Saladino,
querendo expor o impostor, apagou a lamparina que o fogo celeste acendera, mas,
uma vez feito isso, a lamparina imediatamente reacendeu. Ele a apagou uma
segunda vez, e uma terceira, mas ela reacendeu sozinha. Então, o Sultão,
confundido, chorou, dizendo, em tom profético: ‘Sim, morrerei ou perderei
Jerusalém’”.
A possível “secularidade” do evento também foi
ressaltada pelo historiador inglês Edward Gibbon: “Essa fraude piedosa, divisada pela primeira vez durante o século nono,
foi devotamente acarinhada pelos cruzados latinos, e é anualmente repetida pelo
clericato grego, armênio e pelas seitas coptas [cristãos egípcios], os quais se
impõem aos espectadores crédulos para seus próprios benefícios e de seus
tiranos”.
VELAS DE FÓSFORO
BRANCO?
Mas o sultão Saladino não foi o único e,
possivelmente, talvez não tenha sido também o mais cuidadoso dos questionadores
da legitimidade do fenômeno pascoal ortodoxo. Uma aposta cética um tanto mais
científica foi levada à TV em 2005, em transmissão ao vivo, pelo historiador
Michael Kalopoulos.
Supostamente recriando o evento, Kaloupoulos fez
com que três velas acendessem espontaneamente após aproximadamente 20 minutos.
Ocorre que o material havia sido mergulhado em fósforo branco, de forma que a
reação era natural e esperada, por conta das propriedades e do contato com o ar.
“Se o
fósforo for dissolvido num solvente orgânico apropriado, a autoignição é
atrasada até o ponto que o solvente tenha se evaporado completamente”, relatou
o historiador. “Repetidos experimentos mostraram que a ignição pode ser
atrasada por meia-hora ou mais, dependendo da densidade da solução e do
solvente empregado.”
Kalopoulos afirma ainda que semelhante artifício
era utilizado pelos magos caldeus já no século V a.C., e também pelos gregos
antigos. O processo, de acordo com ele, era exatamente o mesmo de que se vale
até hoje o patriarca da Igreja Ortodoxa de Jerusalém.
Plasma de baixa
temperatura
Mas há ainda uma peculiaridade do Fogo Sagrado que
também é comumente sujeitada a hipóteses científicas. Conforme mencionado
anteriormente, consta que a chama espontânea do Santo Sepulcro é incapaz de
queimar a pele ou as roupas, pelo menos durante algum tempo.
Nesse sentido, uma
medição feita sutilmente pelo físico russo Andrey Volkov em uma das liturgias
oferece uma explicação possível. “Um
aparelho fixado para registro de espectro eletromagnético detectou um estranho
impulso com longo comprimento de onda dentro do templo”, explicou ele ao
site Pravda.Lâmpada de plasma.
“Esse impulso não foi mais detectado desde
então”, ele afirma. “Havia algum tipo de descarga elétrica. Não se sabe se
houve a descarga de um raio ou se havia problemas com algum equipamento de TV
no local.”
Entretanto, embora
não possam ser vistos hoje (sobretudo por conta dos flashes utilizados por
dezenas de fotógrafos), o evento foi originalmente associado a energias que
desciam pelas paredes. Segundo Volkov, essas energia não tem nada a ver com a
chama propriamente dita. Antes, seria uma manifestação do chamado “plasma de
baixa temperatura”.
Em outras palavras,
o dito fogo inicial “que não queima” não passaria de partículas ionizadas pela
presença de um campo elétrico — semelhante ao que acontece durante o fenômeno
conhecido como fogo-de-santelmo.
UMA FRAUDE
CINSCIENTE?
Em se tratando de
uma possível fraude, independentemente dos métodos empregados, há quem garanta
que o engodo é bem conhecido pela Igreja Ortodoxa desde sempre. O cético russo
Igor Dobrokhotov compartilha dessa opinião, alegando que trechos do diário do
bispo Porphyrius (1804 — 1885) deixavam claro que o clericato de Jerusalém não
ignorava a natureza fraudulenta do Fogo Sagrado.
PANCADARIA “SAGRADA”
Mesmo sendo um
evento solene, a aparição do Fogo Sagrado, eventualmente, traz também consigo o
aparecimento do também muito conhecido “espírito de porco”. De fato, há vários
relatos de atos violentos que tomaram a Basílica do Santo Sepulcro em mais de
uma ocasião.
"O Milagre do Fogo Sagrado", de William
Holman Hunt
Em 1856, o cônsul
britânico James Finn afirma ter presenciado um combate generalizado entre
peregrinos gregos e armênios — ambos os lados armados com pedras e paus
previamente escondidos no local. Como resultado, o paxá (governante durante o
Império Otomano) precisou ser escoltado por soldados armados. Retirada figura
ilustre, os soldados teriam, então, voltado para combater ambos os lados com
baionetas.
Há também um relato
do viajante inglês Robert Curzon. De acordo com ele, durante a liturgia
conduzida no dia 3 de maio de 1834, um pânico generalizado tomou conta da
igreja lotada, resultando na morte de mais de 400 pessoas. Na ocasião, o paxá
Ibrahim teria escapado unicamente porque seus guardas pessoais abriram caminho
a espadadas através da multidão.
Fonte: Retalhos do Quixadá,
Megacurioso – o mistério
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