Conto de Lima Barreto
(Foi observada a ortografia da época)
À proporção que avançava em anos, mais nítidas lhe
vinham as reminiscências das cousas da casa paterna. Ficava ela lá pelas bandas
da Rua do Conde, por onde passavam então as estrondosas e fagulhentas
"maxambombas" da Tijuca. Era um casarão grande, de dois andares,
rés-do-chão, chácara cheia de fruteiras, rico de salas, quartos, alcovas, povoado
de parentes, contraparentes, fâmulos, escravos; e a escada que servia os dois
pavimentos, situada um pouco além da fachada, a desdobrar-se em toda a largura
do prédio, era iluminada por uma grande e larga clarabóia de vidros multicores.
Todo ele era assoalhado de peroba de Campos, com vastas tábuas largas, quase da
largura da tora de que nasceram; e as esquadrias, portas, janelas, eram de
madeira de lei. Mesmo a cocheira e o albergue da sege eram de boa madeira e
tudo coberto de excelentes e pesadas telhas. Que cousas curiosas havia entre os
seus móveis e alfaias? Aquela mobília de jacarandá-cabiúna com o seu vasto
canapé, de três espaldares, ovalados e vastos, que mais parecia uma cama que
mesmo um móvel de sala; aqueles imensos consolos, pesados, e ainda mais com
aqueles enormes jarrões de porcelana da Índia que não vemos mais; aqueles
desmedidos retratos dos seus antepassados, a ocupar as paredes de alto abaixo -
onde andava tudo aquilo? Não sabia... Vendera ele, aqueles objetos? Alguns; e
dera muitos.
Umas cousas, porém, ficaram com o irmão que morrera
cônsul na Inglaterra e lá deixara a prole; outras, com a irmã que se casara
para o Pará... Tudo, enfim, desaparecera. O que ele estranhava ter desaparecido
eram as alfaias de prata, as colheres, as facas, o coador de chá... E o
espevitador de velas? Como ele se lembrava desse utensílio obsoleto, de prata!
Era com ternura que se recordava dele, nas mãos de sua
mãe, quando, nos longos serões, na sala de jantar, à espera do chá - que chá! -
ele o via aparar os morrões das velas do candelabro, enquanto ela, sua mãe, não
interrompia a história do Príncipe Tatu, que estava contando...
A tia Maria Benedita, muito velha, ao lado, sentada na
estreita cadeira de jacarandá, tendo o busto ereto, encostado ao alto espaldar,
ficava do lado, com os braços estendidos sobre os da cadeira, o tamborete aos
pés, olhando atenta aquela sessão familiar, com o seu agudo olhar de velha e a
sua hierática pose de estátua tebana tumular. Eram os nhonhôs e nhanhãs, nas
cadeiras; e as crias e molecotes acocorados no assoalho, a ouvir... Era
menino...
O aparelho de chá, o usual, o de todo o dia, como era
lindo! Feito de uma louça negra, com ornatos em relevo, e um discreto esmalte
muito igual de brilho - donde viera aquilo? Da China, da Índia?
E a gamela de bacurubu em que a Inácia, a sua ama, lhe
dava banho - onde estava? Ah! As mudanças! Antes nunca tivesse vendido a casa
paterna...
A casa é que conserva todas as recordações de família.
Perdida que seja, como que ela se vinga fazendo dispersar as relíquias
familiares que, de algum modo, conservavam a alma e a essência das pessoas
queridas e mortas... Ele não podia, entretanto, manter o casarão... Foi o
tempo, as leis, o progresso...
Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu tempo
de menino, sem grande valia, hoje valeriam muito... Tinha ainda o bule do
aparelho de chá, um escumador, um guéridon com trabalho de embutido... Se ele
tivesse (insistia) conservado a casa, tê-los-ia todos hoje, para poder rever o
perfil aquilino, duro e severo do seu pai, tal qual estava ali, no retrato de
Agostinho da Mota, professor de academia; e também a figurinha de Sèvres que
era a sua mãe em moça, mas que os retratistas da terra nunca souberam pôr na
tela. Mas não pôde conservar a casa... A constituição da família carioca foi
insensivelmente se modificando; e ela era grande demais para a sua. De resto, o
inventário, as partilhas, a diminuição de rendas, tudo isso tirou-a dele. A
culpa não era sua, dele, era da marcha da sociedade em que vivia...
Essas recordações lhe vinham sempre e cada vez mais
fortes, desde os quarenta e cinco anos; estivesse triste ou alegre, elas lhe
acudiam. Seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, tenente-coronel do Corpo de
Engenheiros e lente da Escola Central, era filho do sargento-mor de engenharia
e também lente da Academia Real Militar que o Conde de Linhares, ministro de
Dom João VI, fundou em 1810, no Rio de Janeiro, com o fim de se desenvolverem
entre nós os estudos de ciências matemáticas, físicas e naturais, como lá diz o
ato oficial que a instituiu. Desta academia todos sabem como vieram a surgir a
atual Escola Politécnica e a extinta Escola Militar da Praia Vermelha. O filho
de Carregal, porém, não passara por nenhuma delas; e, apesar de farmacêutico,
nunca se sentira atraído pela especialidade dos estudos do pai. Este
dedicara-se, a seu modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por ela uma grande
mania... bibliográfica. A sua biblioteca a esse respeito era completa e
valiosa. Possuía verdadeiros "incunábulos", se assim se pode dizer,
da química moderna. No original ou em tradução, lá havia preciosidades. De
Lavoisier, encontravam-se quase todas as memórias, além do seu extraordinário e
sagacíssimo Traité Élémentaire
de Chimie, présenté dans un ordre et d'après les découvertes modernes.
O velho lente, no dizer do filho, não podia pegar
nesse respeitável livro que não fosse tomado de uma grande emoção.
— Veja só meu filho, como os homens são maus!
Lavoisier publicou esta maravilhosa obra no início da Revolução, a qual ele
sinceramente aplaudiu... Ela o mandou para o cadafalso—sabe você por quê?
— Não, papai.
— Porque Lavoisier tinha sido uma espécie de coletor
ou cousa parecida no tempo do rei. Ele o foi, meu filho, para ter dinheiro com
que custeasse as suas experiências. Veja você como são as cousas e como é
preciso ser mais do que homem para bem servir aos homens...
Além desta gema que era a sua menina dos olhos, o
Conselheiro Carregal tinha também o Proust, Novo Sistema de Filosofia Química;
o Priestley, Expériences sur
les différentes espèces d'air; as obras de Guyton de Morveau; o Traité de Berzelius, tradução
de Hoefer e Esslinger; a
Statique Chimique do grande
Berthollet; a Química Orgânica de Liebig, tradução de Gerhardt - todos livros
antigos e sólidos, sendo dentre eles o mais moderno as Lições de Filosofia
Química, de Würtz, que são de 1864; mas, o estado do livro dava a entender que
nunca tinham sido consultadas. Havia mesmo algumas obras de alquimia, edições
dos primeiros tempos da tipografia, enormes, que exigem ser lidas em altas
escrivaninhas, o leitor de pé, com um burel de monge ou nigromante; e, entre os
desta natureza, lá estava um exemplar do - Le
Livre des Figures Hiéroglyphiques que
a tradição atribui ao alquimista francês Nicolau Flamel.
Sobravam, porém, além destes, muitos outros livros de
diferente natureza, mas também preciosos e estimáveis: um exemplar da Geometria
de Euclides, em latim, impresso em Upsal, na Suécia, nos fins do século XVI; os
Principia de Newton, não a primeira edição, mas uma de Cambridge muito
apreciada; e as edições princeps da Méchanique
Analytique, de Lagrange, e da Géométrie
Descriptive, de Monge.
Era uma biblioteca rica assim de obras de ciências
físicas e matemáticas que o filho do Conselheiro Carregal, há quarenta anos
para cinqüenta, piedosamente carregava de casa em casa, aos azares das mudanças
desde que perdera o pai e vendera o casarão em que ela quietamente tinha vivido
durante dezena de anos, a gosto e à vontade.
Poderão supor que ela só tivesse obras dessa especialidade;
mas tal não acontecia. Havia as de outros feitios de espírito. Encontravam-se
lá os clássicos latinos; a Voyage
autour du Monde de
Bougainville; uma Nouvelle
Héloise, de Rousseau, com gravuras abertas em aço; uma linda edição dos
Lusíadas, em caracteres elzevirianos; e um exemplar do Brasil e a Oceania, de
Gonçalves Dias, com uma dedicatória, do próprio punho do autor, ao Conselheiro
Carregal.
Fausto Carregal, assim era o nome do filho, até ali
nunca se separara da biblioteca que lhe coubera como herança. Do mais que
herdara, tudo dissipara, bem ou mal; mas os livros do conselheiro, ele os
guardara intatos e conservados religiosamente, apesar de não os entender.
Estudara alguma cousa, era até farmacêutico, mas sempre vivera alheado do que é
verdadeiramente a substância dos livros— o pensamento e a absorção da pessoa
humana neles.
Logo que pôde, arranjou um emprego público que nada
tinha a ver com o seu diploma, afogou-se no seu ofício burocrático, esqueceu-se
do pouco que estudara, chegou a chefe de seção, mas não abandonou jamais os
livros do pai que sempre o acompanharam, e as suas velhas estantes de vinhático
com incrustação de madrepérola.
A sua esperança era que um dos seus filhos os viesse a
entender um dia; e todo o seu esforço de pai sempre se encaminhou para isso. O
mais velho dos filhos, o Álvaro, conseguiu ele matriculá-lo no Pedro II; mas
logo, no segundo ano, o pequeno meteu-se em calaçarias de namoros, deu em noivo
e, mal fez dezoito anos, empregou-se nos correios, praticante pro-rata,
casando-se daí em pouco. Arrastava agora uma vida triste de casal pobre, moço,
cheio de filhos, mais triste era ele ainda porquanto, não havendo alegria
naquele lar, nem por isso havia desarmonia. Marido e mulher puxavam o carro
igualmente...
O segundo filho não quisera ir além do curso primário.
Empregara-se logo em um escritório comercial, fizera-se remador de um clube de
regatas, ganhava bem e andava pelas tolas festas domingueiras de sport, com umas calças sungadas
pelas canelas e um canotier muito limpo, tendo na fita uma
bandeirinha idiota.
A filha casara-se com um empregado da Câmara Municipal
de Niterói e lá vivia.
Restava-lhe o filho mais moço, o Jaime, tão bom. tão
meigo e tão seu amigo, que lhe pareceu, quando veio ao mundo, ser aquele que
estava destinado a ser o inteligente, o intelectual da família, o digno
herdeiro do avô e do bisavô.
Mas não foi; e ele se lembrava agora como recomendava
sempre à mulher, nos primeiros anos de vida do caçula, ao ir para a repartição:
— Irene, cuida bem do Jaime! Ele é que vai ler os
papéis do meu pai.
Porque o pequeno, em criança, era tão doentinho, tão
mirrado, apesar dos seus olhos muito claros e vivos, que o pai temia fosse com
ele a sua última esperança de um herdeiro capaz da biblioteca do conselheiro.
Jaime tinha nascido quando o mais velho entrava nos
doze anos; e o inesperado daquela concepção alegrava-lhe muito, mas inquietara
a mãe.
Pelos seus quatro anos de idade, Fausto Carregal já
tinha podido ver o desenvolvimento dos dois outros seus filhos varões e havia
desesperado de ver qualquer um deles entender, quer hoje ou amanhã, os livros
do avô e do bisavô, que jaziam limpos, tratados, embalsamados, nos jazigos das
prateleiras das estantes de vinhático, à espera de uma inteligência, na
descendência dos seus primeiros proprietários, para de novo fazê-los voltar à
completa e total vida do pensamento e da atividade mental fecunda.
Certo dia, lembrando-se de seu pai em face das
esperanças que depositava no seu filho temporão, Fausto Carregal considerou
que, apesar do amor de seu progenitor à Química, nunca ele o vira com éprourettes, com copos
graduados, com retortas. Eram só livros que ele procurava. Como os velhos
sábios brasileiros, seu pai tinha horror ao laboratório, à experiência feita
com as suas mãos, ele mesmo...
O seu filho, porém, o Jaime, não seria assim. Ele o
queria com o maçarico, com o bico de Bunsen, com a baqueta de vidro, com o copo
de laboratório...
— Irene tu vais ver como o Jaime vai além do avô! Fará
descobertas.
Sua mulher, entretanto, filha de um clínico que tivera
fama quando moço, não tinha nenhum entusiasmo por essas cousas. A vida, para
ela, se resumia em viver o mais simplesmente possível. Nada de grandes
esforços, ou mesmo de pequenos, para se ir além do comum de todos; nada de
escaladas, de ascensões; tudo terra-a-terra, muito cá embaixo... Viver, e só!
Para que sabedorias? Para que nomeadas? Quase nunca davam dinheiro e quase
sempre desgostos. Por isso, jamais se esforçou para que os seus filhos fossem
além do ler, escrever e contar; e isso mesmo a fim de arranjarem um emprego que
não fosse braçal, pesado ou senil.
O Jaime cresceu sempre muito meigo, muito dócil, muito
bom; mas com venetas estranhas. Implicava com uma vela acesa em cima de um
móvel porque lhe pareciam os círios que vira em torno de um defunto, na
vizinhança; quando trovejava ficava a um canto calado, temeroso; o relâmpago
fazia-o estremecer de medo, e logo após, ria-se de um modo estranho... Não era
contudo doente; com o crescimento, até adquirira certa robustez. Havia noites,
porém, em que tinha uma espécie de ataque, seguido de um choro convulso, uma
cousa inexplicável que passava e voltava sem causa, nem motivo. Quando chegou
aos sete anos, logo o pai quis pôr-lhe na mão a cartilha, porquanto vinha
notando com singular satisfação a curiosidade do filho pelos livros, pelos
desenhos e figuras, que os jornais e revistas traziam. Ele os contemplava horas
e horas, absorvido, fixando nas gravuras os seus olhos castanhos, bons,
leais...
Pôs-lhe a cartilha na mão:
— "A-e-i-o-u" - diga: "a".
O pequeno dizia: "a"; o pai seguia:
"e"; Jaime repetia: "e"; mas quando chegava a
"o", parecia que lhe invadia um cansaço mental, enfarava-se
subitamente, não queria mais atender, não obedecia mais ao pai e, se este
insistia e ralhava, o filho desatava a chorar:
— Não quero mais, papaizinho! Não quero mais!
Consultou médicos amigos. Aconselharam-no esperar que
a criança tivesse mais idade. Aguardou mais um ano, durante o qual, para
estimular o filho, não cessava de recomendar:
—Jaime, você precisa aprender a ler. Quem não sabe
ler, não arranja nada na vida.
Foi em vão. As cousas se vieram a passar como da
primeira vez. Aos doze anos, contratou um professor paciente, um velho
empregado público aposentado, no intuito de ver se instilava inteligência do
filho o mínimo de saber ler e escrever. O professor começou com toda a
paciência e tenacidade; mas, a criança que era incapaz de ódio até ali, perdeu
a doçura, a meiguice para com o professor.
Era falar-lhe no nome, a menos que o pai estivesse
presente, ele desandava em descomposturas, em doestes, em sarcasmos ao físico e
às maneiras do bom velho. Cansado, o antigo burocrata, ao fim de dois anos,
despediu-se tendo conseguido que Jaime soletrasse e contasse alguma cousa.
Carregal meditou ainda um remédio, mas não encontrou.
Consultou médicos, amigos, conhecidos. Era um caso excepcional; era um caso
mórbido esse de seu filho. Remédio, se um houvesse, não existia aqui; só na
Europa... Não podia, o pequeno, aprender bem, nem mesmo ler, escrever,
contar!... Oh! Meu Deus!
A conclusão lhe chegou sem choque, sem nenhuma brusca
violência; chegou sorrateiramente, mansamente, pé ante pé, devagar, como uma
conclusão fatal que era.
Tinha o velho Carregal, por hábito, ficar na sala em
que estavam os livros e as estantes do pai, a ler, pela manhã, os jornais do
dia. Ã proporção que os anos se passavam e os desgostos aumentavam-lhe n'alma,
mais religiosamente ele cumpria essa devoção à memória do pai. Chorava às vezes
de arrependimento, vendo aquele pensamento todo, ali sepultado, mas ainda vivo,
sem que entretanto pudesse fecundar outros pensamentos... Por que não estudara?
Dava-se assim, com aquela devoção diária, a ele mesmo,
a ilusão de que, se não compreendia aqueles livros profundos e antigos, os
respeitava e amava como a seu pai, esquecido de que para amá-los sinceramente
era preciso compreendê-los primeiro. São deuses os livros, que precisam ser
analisados, para depois serem adorados; e eles não aceitam a adoração senão
dessa forma...
Naquela manhã, como de costume, fora para a sala dos
livros, ler os jornais; mas não os pôde ler logo.
Pôs-se a contemplar os volumes nas suas molduras de
vinhático. Viu o pai, o casarão, os moleques, as mucamas, as crias, o fardão do
seu avô, os retratos... Lembrou-se mais fortemente de seu pai e viu-o lendo,
entre aquelas obras, sentado a uma grande mesa, tomando de quando em quando
rapé, que ele tirava às pitadas de uma boceta de tartaruga, espirrar depois,
assoar-se num grande lenço de Alcobaça, sempre lendo, com o cenho carregado, os
seus grandes e estimados livros.
As lágrimas vieram aos olhos daquele velho e avô. Teve
de sustê-las logo. O filho mais novo entrava na dependência da casa em que ele
se havia recolhido. Não tinha Jaime, porém, por esse tempo, um olhar de mais
curiosidade para aqueles veneráveis volumes avoengos. Cheio dos seus dezesseis
anos, muito robusto, não havia nele nem angústias, nem dúvidas. Não era
corroído pelas idéias e era bem nutrido pela limitação e estreiteza de sua
inteligência. Foi logo falando, sem mais detença, ao pai:
— Papai, você me dá cinco mil-réis, para eu ir hoje ao football.
O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência
estúpida e forte, olhou seu mau feitio de cabeça; olhou bem aquele último fruto
direto de sua carne e de seu sangue; e não se lembrou do pai. Respondeu:
— Dou, meu filho. Dentro em pouco, você terá.
E em seguida como se acudisse alguma cousa deslembrada
que aquelas palavras lhe fizeram surgir à tona do pensamento, acrescentou com
pausa:
— Diga a sua mãe que me mande buscar na venda uma lata
de querosene, antes que feche. Não se esqueça, está ouvindo!
Era domingo. Almoçaram. O filho foi para o football; a mulher foi visitar
a filha e os netos, em Niterói; e o velho Fausto Carregal ficou só em casa,
pois a cozinheira teve também folga.
Com os seus ainda robustos setenta anos, o velho
Fausto Fernandes Carregal, filho do tenente-coronel de engenharia, Conselheiro
Fernandes Carregal, lente da Escola Central, tendo concertado mais uma vez o
seu antigo covaignac inteiramente branco e pontiagudo, sem
tropeço, sem desfalecimento, aos dois aos quatro, aos seis, ele só,
sacerdotalmente, ritualmente, foi carregando os livros que tinham sido do pai e
do avô para o quintal da casa. Amontoou-os em vários grupos, aqui e ali, untou
de petróleo cada um, muito cuidadosamente, e ateou-lhes fogo sucessivamente.
No começo a espessa fumaça negra do querosene não
deixava ver bem as chamas brilharem; mas logo que ele se evolou, o clarão
delas, muito amarelo, brilhou vitoriosamente com a cor que o povo diz ser a do
desespero…
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