Por Luiz Carlos Facó
Texto publicado pelo
autor em seu livro “Contos em Cantos Saudosos”
Corria o ano de 1960. No verdor das minhas vinte e umas
primaveras, recém-formado em advocacia, fui agraciado com uma viagem para à
Europa. Regalo difícil de ser recusado, embora, à época, perdidamente
apaixonado, relutasse em me apartar da mulher amada – Sonia, minha esposa há cinquenta
e um anos, pela qual noutro o mesmo doce sentimento até os dias atuais. Por
alguns meses, é verdade, mas que parecia um lapso de tempo insuportável, uma
existência.
Venci aquela incerteza de ir ou ficar, ajudado pelos meus
futuros companheiros de viagem, diletos amigos e colegas de faculdade, que me
alertavam da oportunidade única que eu estava preste a jogar fora.
- Não faça isso – diziam eles. – Agarre-se com unhas e
dentes a essa circunstância que os deuses lhe ofertaram.
Zarpamos do porto de Salvador em direção ao velho mundo, no
mês de julho, no navio Bretagne, de
bandeira francesa. Com alojamento na terceira classe. Nosso intuito era
economizar. Já o professor que nos acompanhava, Augusto Alexandre Machado, o
popular Machadinho, titular da cadeira de Economia e Finanças da Faculdade
Federal de Direito da Bahia, preferiu as comodidades oferecidas pela primeira
classe. Destino: Marselha, França.
No cais, fomos despedidos pelos que ficavam com o acenar de
mãos, lenços brancos. Sinais de adeuses nervosos, quase frenéticos. Não os do
nunca mais. Mas os do até breve. Mesmo assim, dramáticos o suficiente para nos
fazerem calar e deixar cair dos nossos olhos entristecidos uma enxurrada de
lágrimas, nada salgadas, porém temperadas com o gosto intenso de saudade.
O apito ensurdecedor que o navio deixara escapar, sinalizador
da partida, a nós se revelava como um marco da radical mudança, que, a partir
daquele instante, ocorreria em nossas vidas. Na realidade, dizia ser, somente,
o início de uma comum travessia oceânica. Habitual para ele, não para nós.
Como estátuas, ficamos muito tempo imóveis na amurada da
embarcação. Com a visão dos nossos parentes, que teimosamente se negavam a
deixar a estação de embarque. Com as
nossas reminiscências. Absortos. Vendo Salvador, construída como um presépio
distanciar-se, tornar-se pequenina, logo invisível. Como as nossas emoções,
que, com o passar do tempo, as mais das vezes se desaquecem nos nossos
corações.
A terceira classe era uma babel de nacionalidades.
Numa convivência pacífica, misturamo-nos a árabes, judeus,
europeus, asiáticos. Imigrantes em retorno aos seus países de origem, formando
uma ambiência propícia para o fazimento de boas relações e o debate de vários
temas candentes naquela época. Principalmente sobre a situação na Palestina –
veja, leitor, quantos anos aquele problema subsiste sem solução à vista; a luta
no Congo Belga, uma refrega libertária empreendida pelos nacionais contra o
jugo colonizador; acerca das cicatrizes deixadas pela Segunda Guerra Mundial,
sobretudo no continente europeu. Discussões estimulantes, donde extraímos
opiniões e conhecimento.
Entretanto, durou nossa estada naquelas dependências sob a
linha d’água, O comandante da embarcação, sabedor da nossa condição de
advogado, convidou-nos a ocupar camarotes na primeira classe.
Transferência que se fez a toque
de caixa, dado a pressa de trocarmos o purgatório pelo paraíso.
E fomos realmente para o Éden. O
nosso café da manhã de magro tornou-se farto. Os almoços se fizeram
requintados. Os jantares, suntuosos. Deles, damas e cavalheiros aproveitavam
para exibir a opulência e a elegância dos seus trajes, o fausto de suas tiaras,
broches e argolas cravejadas de diamantes e esmeraldas, o refinamento dos seus
gestos. Num desfile, cuja riqueza era o conceito, em visível contraste com
aquele que, no mesmo horário, ocorria na classe donde provínhamos.
Depois de breve pausa, aconteciam
as sessões de cinema e alegres festas. Numa delas, comemorativa da passagem da
linha do equador, fui simbolicamente rebatizado, recebendo uma certidão em que
era cognominado Delfim, filho predileto de Netuno.
Tanto luxo e alegria desmesurada
não saciavam as inquietações do meu espirito, que, teimosamente, levava-me de
volta aos tesouros que deixara para trás. Aos semblantes queridos. Às amizades
colocadas em compasso de espera. Às ladeiras, caminhos tortuosos e estreitos da
velha Salvador. À beleza morena de suas filhas, favorecidas pela abundância de
carnes, que lhes proporcionavam uma voluptuosidade incomum. O corolário de tal
rememoração foi quedar-me num estranho torpor, num estado de tolerada
indolência, só sacudido quando desperto por alguém, ou pelos acontecimentos do
dia a dia.
Um deles, decisivo para a mudança
daquele estado d’alma, foi ouvir sobressair-se do burburinho de vozes a
exclamação:
- Terra à vista.
Com o coração aos saltos,
emocionado, corri para junto do portaló, com o objetivo de divisar, em toda a
sua amplitude, parte do continente africano. Nossa primeira escala. Com a mesma
emoção, creio, que possuiu Cabral ao descortinar a costa da Bahia. Aportávamos
em Dacar, capital do Senegal.
Após as manobras do navio, fomos para a terra firme.
Tínhamos dois dias para conhecermos a arquitetura da cidade, por sinal
lindíssima, e os usos e costumes do seu povo. Passeamos à vontade.
Excursionamos pelo centro da cidade, moderna e cheia de contrastes. Pelas suas
ruas e vielas mais pobres. Percorremos vilas distantes onde se abrigavam
famílias numerosíssimas, constituídas do patriarca, suas muitas esposas,
incontáveis filhos e servos. Visitamos, com respeito, diversas mesquitas,
templos de oração e meditação da religião muçulmana. Vimos o desfilar de belos
negros e negras com suas peles luzidias, trajando roupas típicas multicolores.
As mulheres habitualmente fazendo uso de um guarda-sol. Observamos o
entrelaçamento dos costumes ocidentais com a cultura das diversas etnias que
compunham a população local. Ouvimos a sonoridade do idioma francês, língua
oficial do país, misturada a entonação dos dialetos tribais. Experimentamos
suas comidas, doces e frutas típicas. Compramos seu artesanato. Fotografamos o
que podíamos.
Pouco antes do término daquela
visita exploratória, sobremodo prazerosa e instrutiva, resolvi voltar ao navio.
Meus pés cansados e machucados obrigavam-me a tal. Afinal, contemporizei,
perderia muito pouco, acaso continuasse aquela peregrinação. Nossa embarcação
partiria dentro de duas horas para as terras europeias.
Desgarrados dos companheiros,
atingi o cais do porto. Logo visualizei o Bretagne.
Parecia estar á minha espera. Poucos metros me separavam dele, quando me
deparei com uma negra maravilhosa. Era uma deusa. Porte majestático. Traços
fisionômicos perfeitos. Trajava roupa típica de raro bom gosto e carregava às
costas uma criança. Adormecida, talvez pelo caminhar cadenciado, balançado da
mãe e pela sombra refrescante que sobre ela pousava, proporcionada por uma
graciosa sombrinha portada, com elegância, por aquela criatura nascida para o
deleite de olhos faiscadores da beleza feminina. Não resisti à cena. Precisava
registrar a beleza e todo o encanto que dela irradiava. Saquei a máquina
fotográfica e cliquei aquela figura de diversos ângulos. E, a cada clique,
descobria naquela mulher uma nova expressão. Ora de contentamento, de pudor;
ora de orgulho, de satisfação. Algumas vezes, relâmpagos de desconfiança e
laivos de temor. Mal sabia eu que, durante a captação das imagens daquele
esplendoroso espécimen de mulher africana, formara-se, detrás de mim, uma turba
armada de paus e pedras, disposta a tirar-me a vida. Prometia vingança,
vociferava em palavras que soavam ininteligíveis aos ouvidos deste frustrado
fotógrafo amador, por tentar, em reles fotografias, aprisionar a alma daquele
símbolo da plasticidade.
Escapei da morte certa e
prematura depois que assenti devolver o filme e pela pronta intervenção da polícia
portuária, que, a custo, conseguiu deter a fúria sanguinária dos meus
perseguidores.
Já a salvo, tornei-me ponto
convergente dos comentários dos demais passageiros, meus parceiros de viagem.
Ganhei, até, indevida notoriedade. Porém, só obtive sossego quando descobri: a
beleza e o perigo sempre andam de mãos dadas.
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