Milton
Viola Fernandes (Rio de
Janeiro, 16 de agosto de 1923 — 27 de março de 2012), mais conhecido como Millôr Fernandes,
foi um desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, tradutor,
e jornalista brasileiro.
Começou
a trabalhar ainda jovem na redação da revista O Cruzeiro, iniciando precocemente uma trajetória
pela imprensa brasileira que deixaria sua marca nos principais veículos
de comunicação do país. Em seus mais de
70 anos de carreira produziu de forma prolífica e diversificada, ganhando fama
por suas colunas de humor em publicações como Veja, O Pasquim e Jornal do Brasil, entre várias outras. Em seus
trabalhos costumava valer-se de expedientes como a ironia e a sátira para
criticar o poder e as forças dominantes, sendo em consequência confrontado constantemente pela censura. Dono de
um estilo considerado singular, era visto como figura desbravadora no
panorama cultural brasileiro, como no teatro, onde se destacou tanto pela
autoria quanto pela tradução de um grande número de peças.
Com
a saúde fragilizada após sofrer um acidente
vascular cerebral no começo de 2011,
morreu em março de 2012, aos 88 anos.
Millôr quando criança
Filho
do imigrante espanhol Francisco Fernandes e da brasileira Maria
Viola Fernandes, Millôr nasceu em 16 de agosto de 1923 no subúrbio cariocado Méier. Por descuido dos pais só acabou registrado
quase um ano depois, tendo como nome de batismo Milton Viola Fernandes e data
de nascimento oficial o dia 27 de maio de 1924. No ano seguinte, Francisco,
então com 36 anos, morre subitamente, ficando Maria com a tarefa de criar
sozinha os filhos Milton, Hélio, Judith e Ruth. Apesar de praticamente um
bebê à época da morte, do pai Millôr gravou a lembrança de "um homem
bonito, bem vestido, que vivia se fotografando" (era dono de uma casa de
fotografia na Rua Larga) e que "acordava a família patriarcalmente todas
as noites para saborearmos salames e queijos". O impacto financeiro
da morte é significativo para a família de classe média; sua mãe, então com 27
anos, é obrigada a alugar uma parte do casarão no Méier, e passa a trabalhar
como costureira.
Não obstante, começam a enfrentar sérias dificuldades.
Entre
1911 e 1935, Millôr cursa o ensino básico na Escola Enes de Sousa, no Méier. Da
professora Isabel Mendes guardou, como costumava dizer, a lição definitiva: o
prazer de aprender. Mais tarde a escola pública seria renomeada em homenagem à
educadora, mas para Millôr aquela seria para sempre a "Universidade do
Meyer". A mãe morre de câncer em 1934 e a perda causa um impacto
profundo no garoto de 11 anos: "sozinho no mundo tive a sensação da
injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia". Os
irmãos se separam, e Millôr vai morar com a avó num quarto no fundo do quintal
da casa do tio materno Francisco, na longínqua Estrada Nova da Pavuna. Passa por um período definido por ele mesmo
como dickesiano, "vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão
tivesse direito".
A popularização das histórias em quadrinhos no Brasil em 1934 atinge também Millôr, que se torna leitor assíduo de publicações do gênero, em especial Flash Gordon, de autoria de Alex Raymond, que ele copiava quadro por quadro, marcando milimetricamente onde começava a cabeça, o braço, etc. Nesse meio – que ele consideraria mais tarde a "maior e mais legítima influência" em sua formação de humorista e escritor – encontra uma forma de dar vazão à criatividade. Estimulado pelo tio Antônio, envia um desenho para o periódico carioca O Jornal. O trabalho é aceito e publicado, lhe rendendo um pagamento de 10 mil réis. Em 1938, Millôr consegue seu primeiro emprego fixo, como entregador do remédio para os rins "Urokava", do médico Luiz Gonzaga da Cruz Magalhães Pinto. Durou pouco na função; logo estaria ocupando-se do trabalho que o acompanharia para o resto da vida.
Millôr considerava o dia 15 de março de 1938
como o início de sua profissão de jornalista; foi quando passou a trabalhar na revista O Cruzeiro. Atribuiu o mérito a seu tio Armando Viola,
então chefe da seção de gravura da publicação. Foi ser contínuo, repaginador e
factótum – sendo a mistura de falta de experiência com o acúmulo de funções
justificada pela ausência de pessoal especializado na redação, então uma sala
de 100 metros quadrados ocupada por ele e mais duas pessoas, o diretor Antônio
Accioly Netto e o desenhista Edgar de Almeida.
Na função de faz-tudo milho se metia nas oficinas, laboratórios,
diagramação e onde mais pudesse, inteirando-se de todos os processos de
produção e eventualmente se tornando um engraçado "guia turístico"
para quem quisesse conhecer as instalações de O Cruzeiro –
ocasiões em que aproveitava para exercitar a imaginação, inventando
importâncias históricas para objetos aparentemente mundanos (um espanador por
exemplo era tornado em cetro do Papa ou raridade comprada pessoalmente pelo
dr. Assis Chateaubriand, entre outros). Nesse meio tempo passa a trabalhar em outra publicação
dos Diários Associados, O Guri,
traduzindo para o português histórias em quadrinhos originalmente em inglês –
idioma que aprendeu sozinho em meio a livros e dicionários, numa das primeiras
manifestações práticas do autodidatismo que exerceria por toda sua carreira.5Apesar
da facilidade em aprender por conta própria,
Millôr
estava ciente da necessidade de se aprimorar profissionalmente, matriculando-se
no Liceu
de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro,
onde estudou entre 1938 e 1942.1
Nessa
mesma época passou a complementar o baixo salário com traduções de livros para
Accioly (que assinava a autoria do trabalho e pagava ao funcionário metade do
que recebia), e com a composição de quadras para a seção "As
garotas", de Alceu
Penna. O trabalho atrai a atenção
deFrederico
Chateaubriand, que o chama para ajudar na
revista A Cigarra. Certo dia, precisando fechar o último caderno, Freddy desespera-se com
uma página ainda em branco de um colaborador que se atrasara, e manda Millôr
ocupar o espaço com aquilo que vivia fazendo – frases, versos, tiradas
inteligentes e engraçadas. O sucesso foi tanto que a coluna virou fixa,
marcando o surgimento de Vão Gogo e
da seção "Poste escrito". Ele logo exige seu primeiro aumento,
ameaçando "ir para o Exército" caso não o recebesse. Com o ordenado
triplicado, pôde passar a morar numapensão no Centro e a pagar com mais tranquilidade o curso
no Liceu.
Então
com 17 anos, calhou a Millôr descobrir seu nome "verdadeiro": ao
solicitar uma cópia da certidão
de nascimento, constatou que a grafia duvidosa do escrivão tornava o nome Milton
em Millôr – o traço incompleto do "t" formava uma espécie de acento circunflexo sobre o "o", enquanto o "n" tinha a aparência
de "r". Sem hesitar, abandonou o prosaico Milton e se tornou Millôr,
denominação tranquilamente aceita e prontamente adotada pela família e amigos.
No
começo da década de 1940, O Cruzeiro, implementando uma reforma editorial, começa a
trilhar o caminho de sucesso que resultaria numa das maiores tiragens da
história editorial brasileira. Millôr continuava fazendo seus versos, e logo
voltaria à carga sob o pseudônimo Vão
Gogo, estreando em 1945 a seção "O pif-paf" em parceria com o
cartunista Péricles.
No ano seguinte lança Eva sem costela — Um livro em defesa do homem,
assinando como Adão Júnior. No começo de 1948 viaja aos Estados Unidos como
correspondente, encontrando-se com Walt Disney, Carmen Miranda, César Lattes e Vinicius de Moraes. De volta ao Brasil, casa-se com Wanda Rubino.
Ainda
em 1949 lança o livro Tempo e Contratempo sob o pseudônimo
Emmanuel Vão Gogo. Produz seu primeiro roteiro cinematográfico, "Modelo
19", e o filme, lançado
como O amanhã será melhor, vence cinco prêmios
Governador do Estado de São Paulo,
sendo Millôr agraciado com o de "melhores diálogos". Na companhia de Fernando Sabino,
passa quarenta e cinco dias do ano de 1951 viajando de carro pelo Brasil. No
mesmo ano lança o semanário Voga, que dura apenas cinco edições.
Durante 1952, passa quatro meses fazendo turismo pelaEuropa. No ano seguinte vê a estréia de sua
primeira peça teatral, Uma mulher em três atos, encenada no Teatro
Brasileiro de Comédia,
em São Paulo.
Em 1954, Millôr adquire por 2.700 cruzeiros a famosa cobertura na Avenida Vieira Souto, em Ipanema, que seria imortalizada em seus escritos e onde passaria o resto da vida. No mesmo ano, nasce seu primogênito Ivan. Um ano depois, divide com Saul Steinberg o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, Argentina. Diversifica a produção, escrevendo as peças Do tamanho de um defunto (encenada no Teatro de Bolso, no Rio, e posteriormente adaptada pelo próprio autor para o cinema como Ladrão em noite de chuva), Bonito como um deus (encenada no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo) e também Um elefante no caos e Pigmaleoa.
Em
1957, Millôr expõe seus desenhos e pinturas no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro.
A partir de 1958, passa a manter sozinho a coluna "O pif-paf", cuja
página dupla semanal é sempre assinada com o pseudônimo Vão Gogo e suas
variações. Isso só deixaria de acontecer em 1962, quando ele assume definitivamente
o próprio nome, reservando o fictício apenas para eventuais textos de apoio n'O
Cruzeiro. Ainda em 58, conclui sua primeira tradução teatral, Good
people, intitulada então A fábula do Brooklin — Gente como nós.
Em
1959, a convite de Freddy Chateubriand, apresenta na TV Itacolomi uma
série de programas intitulada Universidade do Méier, onde desenhava
enquanto fazia comentários. A idéia é levada para a TV Tupi do Rio sob o título de Treze
lições de um ignorante. Pouco depois, o programa é censurado pelo governo
federal e tirado do ar em consequência de uma crítica feita à primeira-dama;
disse Millôr que Sarah Kubitschek mal
chegou ao Brasil depois de cinco meses de viagem à Europa e já foi
"condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho". No mesmo ano, nasce
sua filha Paula.
Em
1960, estréia no Teatro da
Praça, no Rio, a peça Um
elefante no caos, que rende a Millôr o prêmio de "melhor autor"
da Comissão Municipal de Teatro. Na mesma época dá início a uma colaboração com
o cineasta Carlos
Hugo Christensen que resultaria nos
roteiros dos filmes Amor para Três (1960), Esse Rio
que Eu Amo (1962), Crônica da
Cidade Amada (1965) e O Menino e o Vento (1967). Em 1961, abre uma exposição com seus desenhos na Petit
Galerie, no Rio. Viaja para o Egito mas, com a renúncia de Jânio Quadros à
presidência do Brasil, resolve voltar antes do previsto. Trabalha uma semana
na Tribuna da
Imprensa, sendo precocemente demitido
por ter escrito um artigo sobre a corrupção nos meios de comunicação. Em
solidariedade, também se demitem os editores Mário Faustino e Paulo Francis.
A
preocupação de Millôr em prezar pela liberdade em seus trabalhos o leva a
vários conflitos na redação de O Cruzeiro. Em um deles, pede
demissão após ter o termo "amante" sumariamente cortado de um texto,
mas o pedido de dispensa é recusado. Em outra ocasião, durante a reforma
editorial implementada por Odilo Costa Filho no começo da década de 1960,
ouve deste que lhe seria dada toda a liberdade, no que responde, "Odilo,
você vai me perdoar, mas ninguém pode me dar liberdade. Pode tirar, mas dar,
não pode". A defesa ferrenha da integridade de seu espaço criativo
acabaria culminando, no final do mesmo ano, na saída de Millôr da revista.
A
polêmica que resultou na exoneração de Millôr dos Diários Associados deu-se em
decorrência dos desenhos de A
verdadeira história do paraíso.
Considerado posteriormente uma obra-prima da iconoclastia,
o trabalho já havia sido apresentado na TV quando da passagem de seu autor
pelas TVs de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, sendo inclusive encenado no
teatro. Finalmente vendido como matéria especial para O Cruzeiro em
maio de 1963, foi publicado em outubro, cobrindo dez páginas impressas em
quatro cores. A edição provocou de imediato uma maré de indignação católica que
não tardou a alcançar a direção da revista, fazendo com que o número seguinte
trouxesse uma tentativa de retratação, acusando Millôr de quebra de confiança
ao compromisso de criar "um humor inteligente e sadio", misturada a
desculpas aos leitores e promessas de "vigilância sobre a seção “'O
pif-paf”.
Millôr,
então em Portugal e
alheio a todo o incidente, acaba sabendo de tudo pelo músico Juca Chaves,
que em uma festa se aproxima dele "com aquele ar satânico de quem vai
anunciar o terremoto de 1755" e pergunta: "Você viu o que O
Cruzeiro escreveu contra você?". De volta ao Brasil, é
recebido por uma carta de demissão e a acusação de fazer "matéria
insultuosa às convicções religiosas do povo brasileiro". O caso gera uma
reação de setores da imprensa, que se posicionam contra a publicação e oferecem
um jantar de desagravo ao demitido, evento que é prestigiado por diretores e
presidentes de vários veículos jornalísticos, além de centenas de artistas,
escritores e jornalistas, como Paulo Francis, Rubem Braga e Fernanda Montenegro, entre outros. Durante seu discurso Millôr declara se sentir "como
o navio abandonando os ratos". Processa então a revista por seus direitos
trabalhistas, e acaba ganhando a causa. Ainda em 1963, Millôr passa a colaborar
com o jornal Correio da Manhã, onde permanece durante um ano. Dá início em seguida a um projeto
próprio: passado um mês do golpe
militar que tomou o poder no
Brasil, lança a revista Pif Paf. Com a redação sediada em seu próprio estúdio e
edição quinzenal, a publicação reuniu alguns dos maiores nomes do humor de
então, comoStanislaw Ponte Preta, Ziraldo, Jaguar e
Claudius, entre outros. Sem propostas políticas ou ideológicas, o conceito da
revista era liberdade e humor. Ainda assim foi perseguida; considerada
pelo serviço de
informações do exército como
o início da imprensa
alternativa no Brasil, Pif-Paf teve
vida curta, durando apenas oito números.
Em
1964, Millôr dá início à publicação de uma coluna semanal no Diário Popular, de Portugal, numa parceria que perduraria por dez anos. Na ocasião da
estréia da página, inclusive, seu texto teria provocado o comentário de um
ministro de Salazar de
que "este tem piada, pena que escreva tão mal o português". Volta à
televisão em 1965 como apresentador da TV Record, ao lado de Sérgio Porto e Luis Jatobá. Em parceria com Flávio Rangel escreve
o musical Liberdade
liberdade, que estréia naquele ano
no Teatro
Opinião, no Rio. A incursão na música
prossegue no ano seguinte com a composição da canção "O homem",
interpretada por Nara Leão no II
Festival de Música Popular Brasileira.
Em 1968, atua em seu espetáculo musical Do fundo do azul do mundo ao
lado de Elizeth Cardoso e do Zimbo Trio.
Ainda
em 1968, Millôr passa a colaborar com a revista Veja, marcando o começo de uma duradoura relação
profissional com a Editora Abril que
em longevidade só seria superada por seu trabalho nos Diários Associados. Nesse
mesmo ano morre seu amigo Sérgio Porto, tendo início uma movimentação entre
alguns jornalistas e cartunistas para a substituição de seu jornal Carapuça.
Apesar de não integrar aquela equipe que seria por fim a fundadora de O Pasquim,
a influência exercida pela experiência de Millôr com o Pif-Paf foi
definitiva no surgimento do novo jornal. De uma forma ou de outra, ele esteve
sempre presente nos primórdios do semanário. Já na primeira edição, em junho de
1969, profetizava que "se esta revista for mesmo independente não dura
três meses. Se durar três meses não é independente". Retrataria-se três
edições depois, e de fiel colaborador passou a uma das principais forças
do Pasquim, como na ocasião em que grande parte da
"patota", como se autodenominavam os colaboradores, foram presos pela
ditadura.
O
fato se deu após o jornal publicar uma paródia do quadro Independência
ou Morte de Pedro Américo,
onde D. Pedro I foi
posto dizendo a frase "Eu quero é mocotó". A resposta dos militares
não tardou: em 1 de novembro de 1970, os responsáveis pela editoria e
fechamento do Pasquim foram presos um a um. Sérgio Cabral, Tarso de Castro,
Ziraldo, Fortuna,
Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel e Flávio Rangel acabariam
detidos por dois meses, sem saber sequer do que foram acusados. Com a redação
do semanário desfalcada de alguns de seus principais nomes, Millôr e Henfil, com a ajuda de colaboradores de última hora
como Chico Buarque, Glauber Rocha e Odete Lara,
entre outros, fizeram o possível para manter o jornal em funcionamento, que não
deixou de circular uma só vez. Millôr inclusive tentou emular o estilo de
alguns dos colegas, enquanto a ausência de outros era justificada aos leitores
como em decorrência de uma "gripe".
Em
1972, Millôr assume a presidência do Pasquim, então envolto em
várias dívidas e problemas administrativos relacionados a gestões anteriores. O
jornal permanece sob censura prévia até 1975, quando é dispensado de submeter
seu material à "apreciação" dos censores. A liberação coincidiu com a
edição de n° 300 do semanário, que apesar da dispensa da censura acaba mesmo
assim apreendido por ordem de Armando Falcão.
Millôr defende então que a edição seguinte fosse inteiramente dedicada a
satirizar o ministro da Justiça, mas sem apoio da equipe decide deixar o
jornal, tendo cumprido o propósito de reorganizar as finanças e salvá-lo da
falência. No mesmo ano, faz exposição de 25 quadros “em branco, mas com
significado”, na Galeria Grafitti, no Rio. Em 1976, escreve para Fernanda
Montenegro a peça É...,
que, encenada no Teatro
Maison de France, no Rio, acabaria por se
tornar seu maior sucesso teatral.
Em
1977, Millôr volta a expor seus trabalhos no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro. Sempre avesso a cerimônias e premiações, em 1978 aceita a homenagem do
quinto Salão
Internacional de Humor de Piracicaba,
mas com uma condição: a de que a inscrição da placa, com apenas seu nome, fosse
mudada para "Aos humoristas do Brasil na pessoa de Millôr
Fernandes". Deixa a Veja em 1982 ao se recusar a
atender o pedido da revista de retirar o apoio público que mantinha a Leonel Brizola,
então candidato ao governo do Rio pelo PDT em oposição a Moreira Franco,
do PDS (que se tornou o DEM mas
que na época era a nova sigla da Arena, o partido situacionista criado pelo regime
militar).
Millôr em 1998
Em
1980, Millôr conhece a jornalista Cora Rónai,
com quem manteria um relacionamento pelo resto de sua vida. Três anos
depois, é homenageado no samba-enredo da Escola de
Samba Acadêmicos do Sossego,
de Niterói. Não comparece ao desfile. Passa a colaborar para a revista Istoé e, em 1984, para o Jornal do Brasil. Em 1986, abandona a máquina de escrever e começa a usar um computador para redigir seus textos, fazendo também
experimentações artísticas com a nova ferramenta. Em 1988, comemora 50 anos de
jornalismo com uma festa para os amigos, e dois anos depois nasce o neto
Gabriel, filho de Ivan.
Em
1992, Millôr vê novamente sua liberdade criativa cerceada, dessa vez no Jornal
do Brasil e sob a figura do editor Dácio Malta. Sua coluna no
periódico alternava artigos, desenhos ou pequenos tópicos. Numa determinada
ocasião, sem comunicar o autor, o editor corta um desses tópicos. No dia
seguinte Millôr submete o mesmo trecho censurado, mas apenas ele, em letras
grandes, acompanhado de um desenho. Dessa vez Malta foi incapaz de cortar, sob
pena de comprometer toda a seção. A partir de então, ele passa a selecionar
para publicar na seção de cartas do jornal apenas textos com críticas negativas
a Millôr, que acaba por se demitir. Na mesma época, deixa também a Istoé.
Passa os anos seguintes alternando colaborações em várias publicações da
imprensa brasileira: em 1996, começa a publicar nos jornais O Dia, O
Estado de São Paulo e Correio Braziliense (nesse
último, permaneceria somente até o fim do ano). Deixa O Estado e O
Dia em 2000, e vai para a Folha de S. Paulo, de onde sai
no ano seguinte para voltar ao Jornal do Brasil.
Ainda
em 2000 lança O Saite Millôr Online, no qual passa a publicar novos textos e desenhos e a resgatar antigos
trabalhos. A iniciativa, considerada pioneira na internet brasileira, acaba sendo um grande sucesso,
o que leva seu criador a comentar: "Se eu soubesse o que atrai tanta
gente, nunca mais faria de novo". Retorna à Veja em
2004, mas desentende-se novamente com a revista quando esta decide
disponibilizar todas as suas edições na internet, incluindo aí os quatorze anos
de trabalho que ele produziu entre 1968 e 1982. Millôr ainda tenta negociar um
acordo, mas em setembro de 2009 a revista comunica-lhe que não só seu contrato
não seria renovado, como o material online seria mantido como
estava. Ele move então um processo contra a Editora Abril e o banco Bradesco (patrocinador da digitalização do acervo
da Veja) pedindo uma indenização de 500 mil reais e justificando que "se eles podem
publicar tudo isso em um site, amanhã eles podem fazer um livro. Eles não podem
usar esse material, muito menos o Bradesco. Eu virei realmente um
garoto-propaganda. Até me senti honrado, mas mal pago". O resultado
da ação legal só sairia em setembro de 2013, quando a Editora Abril foi
condenada a pagar cerca de 800 mil reais pela publicação do material sem autorização
de seu autor.
Quando eu morrer
Vão lamentar minha ausência
Bagatela
Pra compensar o presente
Em que ninguém dá por ela.
Vão lamentar minha ausência
Bagatela
Pra compensar o presente
Em que ninguém dá por ela.
Millôr in Poemas (1984)
No
início de fevereiro de 2011, Millôr foi internado na clínica São Vicente, no
Rio. A pedido da família, a assessoria de imprensa do local não revelou nem a
data nem a razão da internação. O quadro de saúde de Millôr tampouco foi
divulgado. Questionada pelos fãs, a equipe responsável pelo Twitter do escritor respondeu em meados do mesmo
mês que ele estava "melhorando lentamente", mantendo a postura de não
entrar em detalhes a respeito do que levou à internação. Dois dias depois,
em 18 de fevereiro, é finalmente revelado que Millôr sofrera um acidente
vascular cerebral isquêmico. Inconsciente,
fora mantido até então no CTI,
mas com a melhora no quadro de saúde foi retirado dos aparelhos de respiração e
transferido para um quarto intermediário. Ele passa os cinco meses
seguintes internado, recebendo alta no dia 28 de junho. Dois dias depois
de ir para casa, volta a se sentir mal, sendo internado na Clínica de Saúde São
José, onde permanece outros cinco meses.
Durante
todo esse período de saúde fragilizada a família fez o possível para preservar
a intimidade de Millôr, postura que ele sempre adotou em relação à sua
vida pessoal. A discrição foi mantida até os momentos finais. Às nove da
noite do 27 de março de 2012, Millôr morre em seu apartamento em Ipanema, em
decorrência de falência múltipla dos órgãos e parada cardíaca; o fato só é
divulgado à imprensa por seu filho Ivan no dia seguinte. Sob grande
comoção de figuras públicas, o corpo é velado na manhã do dia 29 no Cemitério
Memorial do Carmo, e à tarde cremado em
cerimônia restrita a cerca de 40 pessoas no Cemitério do Caju, no Rio de
Janeiro.
A
liberdade que Millôr tanto prezava em seus trabalhos estendia-se também às
convicções pessoais. Autoproclamado "livre-atirador", buscava
não se comprometer com qualquer movimento organizado político ou religioso,
considerando a ideologia uma
"bitola estreita para orientar o pensamento". Defendia o livre pensar justificando
que "não existe pensador católico. Não existe pensador marxista. Existe
pensador. Preso a nada. Pensa, a todo risco". O desprendimento a
dogmas, conceitos, mitos e sistemas de pensamento não resultava na falta de
foco para suas críticas, pelo contrário: o alvo sempre foi o ser humano,
o qual considerava "inviável".
Millôr
se dizia ainda uma pessoa de grande ceticismo, considerando essa disposição de indagar tudo
permanentemente um fator primordial na criatividade. Em
seus escritos evitava ataques pessoais, lição que tirou da época no Liceu de
Artes e Ofícios: "um dia um professor deteve a massa dos alunos que
desciam as enormes escadarias e, no meio de todo mundo, advertiu-me para que eu
nunca mais zombasse de um colega. 'As pessoas podem perdoar que você bata a sua
carteira mas jamais perdoarão isso.' Aprendi". A exceção à regra eram
osgovernantes,
jamais poupados da exposição ao ridículo. Sustentava a posição dizendo que
"o homem do poder público tem sempre uma tribuna e meios muito maiores
para reagir e anular o mal que ocasionalmente você lhe faça".
As
críticas cáusticas às instituições estabelecidas e às ideologias perenes
provocavam por vezes reações inflamadas de seus alvos, como no caso da demissão
de O Cruzeiro ou na ocasião em que provocou o movimento feminista numa charge do
começo dos anos 70.
Ironizando os poderosos e as instituições arcaicas, era acusado de subversivo; criticando os movimentos contemporâneos, como
o feminismo, era tachado de reacionário. Minimizava
acusações do tipo dizendo que "as pessoas que reivindicam algo
dificilmente têm senso de humor para aceitar uma
crítica", justificando os ataques mais insistentes com a opinião de
que "o que as pessoas não aceitam são pequenas coisas, o fato de eu nunca
ter querido poder, de não ter aparecido na TV Globo, afinal alguém tem que ter
recato neste país".2 Nesse
sentido inclusive costumava dizer ter refreado o pouco que tinha "dessa
coisa humana que é aparecer", rejeitando a popularidade, que considerava
vulgar, apesar de declarar gostar da notoriedade e das conveniências sociais
trazidas pelo fato de ser conhecido. Segundo o filho Ivan, Millôr jamais
se deixou levar pelo chamado culto à celebridade. "Ele disse que sempre
gostou de ser notório e não famoso".
Com
passagem marcante pelos veículos impressos mais importantes do Brasil, Millôr é
considerado uma das principais figuras da imprensa brasileira no século XX.
Multifacetado,
obteve sucesso de crítica e de público em todas os gêneros em que se aventurou,
como em seus trabalhos de ilustração, tradução e dramaturgia. Não se
intimidava em usar esses meios para desafiar os valores dominantes e poderes
estabelecidos, com críticas consideradas ao mesmo tempo severas e permeadas por
um humor inteligente. Além do sucesso nas áreas literária e artística,
orgulhava-se ainda de sua atuação desportiva, julgando uma de suas principais
idealizações a co-criação do frescobol.
Millôr
considerava-se um "atleta frustrado".
Durante muito tempo conservou o hábito de correr todos os dias na praia às seis
da manhã, prática que em seus últimos anos substituiu por uma caminhada de
40 minutos. Foi ainda praticante de natação e de luta (sendo inclusive
aluno de Hélio Gracie no começo da década de 1950), e entre os feitos desportivos de que
se orgulhava estava o título de vice-campeão mundial de pesca ao atum, conquistado em 1953 na Nova Escócia.
Outro fato marcante foi a invenção do frescobol, implementado por ele e outros
colegas na praia de Ipanema em 1958.
Dono
de uma vasta produção literária, o estilo de Millôr advinha de uma atenção
particular aos fatos cotidianos – interpretados sob a ótica de um humor
refinado – onde muitas vezes formas e referências eram retrabalhados para dar
vazão ao discurso humorístico. No entanto, esse não era sempre seu foco;
em certa ocasião, perguntado se gostaria de ser chamado de humorista ou
escritor, optou pelo último: "Ninguém é humorista o tempo todo. E eu, na
maior parte das vezes, não sei se estou escrevendo coisa engraçada ou não
engraçada".
Da
visita que fez aos Estados Unidos em 1948, Millôr trouxe na bagagem a
influência de Georg Grosz,
assim como de Saul Steinberg, ambos lendários cartunistas americanos. Teve exposições dedicadas
a sua arte visual no Museu de Arte Moderna em 1957 e 1977, sendo ainda um dos
primeiros artistas gráficos brasileiros a usar o computador para suas criações.
Apesar de não ter completado o curso que fez no Liceu de Artes e Ofícios do
Rio, os quatro anos que passou na instituição foram suficientes para refinar um
estilo considerado singular, cuja criatividade e virtuosismo, de acordo com o
estudioso Pedro
Corrêa do Lago, "marcou profundamente
todos os ilustradores e caricaturistas do país desde a década de 50".
que
mostram com ironia os problemas diários do carioca, sendo Um elefante
no caos considerada por críticos como Bárbara
Heliodora uma das mais brilhantes.
Mais tarde, durante a ditadura e sob o escrutínio da censura, fez suas famosas
colagens, textos compostos por vários esquetes que apresentavam críticas ao
panorama do Brasil de então. Voltando à forma dramatúrgica convencional,
cria a peça É...,
considerada sua comédia mais amadurecida e bem construída, que alcança grande
êxito de público e crítica.
A
tradução representou uma vertente significativa da produção teatral de Millôr,
e seu trabalho foi considerado o melhor e o mais importante do teatro
brasileiro. Verteu para o português um total de 74 obras, entre elas Hamlet, de Shakespeare, O
jardim das cerejeiras,
de Tchekov, Assim é
se lhe parece, de Pirandello, e Antígona,
de Sófocles. Suas
adaptações de expressões de outros idiomas foram descritas como verbalmente
virtuosas e criativas, e por vezes sua interferência na escrita original
chegava quase que a recriar. A esse respeito costumava dizer que, "ao
traduzir, é preciso ter todo rigor e nenhum respeito pelo original".
Monumento e banco panorâmico em homenagem a
Millôr
Em
junho de 2012, foi apresentado à prefeitura do Rio de Janeiro um projeto para
nomear o recanto entre as praias do Diabo e
do Arpoador –
local preferido do escritor, que costumava fazer ali suas caminhadas diárias –
como Largo do Millôr. A proposta, de autoria do arquiteto Jaime Lerner,
previa ainda a instalação de um banco panorâmico, idéia sugerida pelo próprio
Millôr anos antes, que disse que se um dia fosse homenageado, poderia ser com
um banquinho de onde fosse possível ver o pôr do sol.
A cerimônia de batismo do largo foi realizada em 6 de julho do mesmo ano,
e contou com a presença de familiares e amigos do escritor, como o cartunista
Jaguar e as atrizes Fernanda Montenegro e Rosamaria Murtinho. Já o banco, agora incorporando um monumento com a silhueta de Millôr desenhada por Chico Caruso e
batizado de "O Pensador de Ipanema", foi inaugurado em 27 de maio de
2013.
Um
ano depois da morte de Millôr, seu filho Ivan dividiu o acervo deixado pelo pai
em três partes, com os mais de 120 livros passando para a responsabilidade da
agente literária Lucia Riff, a produção teatral ficando a cargo da Associação
Brasileira de Música e Artes (Abramus),
e as ilustrações e arquivos pessoais reunidos na cobertura em Ipanema
transferidos para o Instituto
Moreira Salles (IMS). O que restou no
estúdio – uma biblioteca com cententas de títulos – Ivan distribuiu entre os
antigos amigos do pai. O acervo pictórico, com cerca de 7,000 desenhos,
aquarelas e crayons, entre outros, foi transferido para a reserva técnica da
coleção de iconografia do IMS em março de 2013. A cessão do material, em regime
de comodato por
10 anos, não envolveu qualquer transação financeira, sendo a única exigência a
de que o acervo completo não deixasse o Rio de Janeiro. Após organizar os
arquivos, o instituto passou a planejar exposições e a publicação das
obras. A primeira mostra ocorreu já no mês seguinte, quando 30 trabalhos
gráficos inéditos de Millôr foram expostos na Fundação Mário Soares, em Lisboa.
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