quarta-feira, 6 de agosto de 2014

OS SAVEIROS MORTOS SEM VELÓRIO

Crônica de Luiz Carlos Facó
Extraída do livro Contos em Cantos Saudosos


Ávido por encontrar beleza, sempre corro os olhos em direção à baía de Todos os Santos, procurando divisar os saveiros. Com suas velas enfunadas, barrigudas, parecendo mulheres prenhes prontas para parir.
Não os encontro. Sumiram.
Quando criança, eu os via aos montões. Contá-los? Impossível. Eles atulhavam nossos mares azuis. Embicados em direção a Salvador, a Maragogipe, Cachoeira, Santo Amaro, à ilha de Itaparica, enfim, ao mais diversos pontos do estado. Num vai-e-vem com hora marcada.
Ao alvorecer chegavam a Salvador repletos de mercadorias e passageiros. Ao cair da tarde, iam ao encontro de seus abrigos, carregando gente ansiosa por rever suas plagas e um sem-número de mantimentos e encomendas. Como partícipes de uma procissão de rara beleza, cujos andores eram suas velas brancas que pareciam emergir do mar, cortando as águas  mornas e mansas do golfo com suas quilhas, tais quais espadas afiadas, que sulcam as mais duras superfícies, procuravam mar aberto ou um porto seguro, guaiados pela experiência e pulso firme do mestre saveirista, aferrado ao leme, preocupado em cambar as velas para aproveitar o soprar dos ventos. Estes se divertiam, muitas vezes, mudando o seu curso como uma mulher infiel troca de amor. Quando não, para pirraçar deixava de soprar, abandonando o veleiro à deriva, ou fazendo-o com violência tamanha que o deixava perdido, vagando ao léu da sorte.



Os ajudantes do mestre, com dorsos nus, escurecidos pelos raios inclementes do sol que os banhavam, despreocupados, davam seguimento aos seus afazeres: molhar as velas, retirar água dos cascos, estivar as mercadorias transportadas, fazer pequenos reparos.
Sempre tomei os saveiros como símbolos da liberdade. E o eram, com certeza. Vendo-os, de longe, do belvedere da Sé, do Passeio Público, do Largo dos Aflitos, da Praça Municipal, da ponta do Montserrat – locais de onde se observa toda a plácida grandeza da nossa baía – singrando com graça e elegância augusta as águas tranquilas ou agitadas dos mares, eu os cria fortes, susceptíveis de suplantar, impávidos, quaisquer procelas, indiferentes aos humores do tempo. Sentia-os imunes aos perigos. Minúsculos territórios da paz.
Seduzida, a minha imaginação neles embarcava para uma viagem onírica. Desejosa de correr o mundo, conhecer lugares intocados. Aventurar-se em busca dos paraísos criados pela minha cabeça aventureira e romântica a comandar expedições transcendentes como o fizeram Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral, Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio.
Em sonhos os transpunha dos braços de Salvador até aos precipícios do mundo, onde, bem pertinho daqueles abismos, arriavam as velas, atiravam a poita para fundear, engendrando os caminhos de volta e traçando mapas através das estrelas.
Fui durante longo tempo, não só em sonhos, passageiro dos saveiros. Quase vinte anos. No trajeto entre Salvador e Mar Grande onde veraneava. Adorava a travessia. A brisa quente soprando no meu rosto. O adernar do barco quando do cambar das velas. As águas do mar correndo em sentido contrário ao rumo do veleiro, batendo com força na sua proa, lançando seus respingos em minha direção, protestando contra o atrevimento daquela frágil embarcação que ousava desafiar os seus poderes. O estatelar do casco chocando-se fortemente na água depois de ultrapassar incólume ondas teimosas.
Emoções que carrego sem intenções de despedi-las.
Hoje, elas desapareceram de nossos mares. Não vejo nem um de um só mastro, quanto mais de dois ou três. Muito menos os de velas brancas ou vermelhas.
Os tempos “modernos” com suas estradas ligando as mais diversas cidades, condenaram-nos ao obsoletismo. Por serem lentos no transportar mercadorias e passageiros, foram desprezados. Substituídos por caminhões. Por fim os enterraram como mortos em valas comuns sem as homenagens de um velório condigno. Ou, quando muito, transformaram-nos em escunas.
Apesar da tais constatações, ainda há os que resistem em admitir a sua morte. Lev Smarcevisk, arquiteto e projetista naval enfatiza: “ Os saveiros continuam vivos”. Eu o contradigo: eles morreram sim. Jazem encalhados, apodrecidos nas desertas praias do nosso litoral.
Se ainda ousam navegar, fazem isso nos profundos mares das nossas lembranças, e nos lagos remansosos das nos eternas saudades.
É pena que um dos símbolos mais marcantes e belos da nossa terra acabe assim. Sem “choro, nem vela”, como diz conhecido verso de uma famosa música do nosso cancioneiro popular.  

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