Crônica de Luiz Carlos
Facó
Extraída do livro
Contos em Cantos Saudosos
Ávido por
encontrar beleza, sempre corro os olhos em direção à baía de Todos os Santos,
procurando divisar os saveiros. Com suas velas enfunadas, barrigudas, parecendo
mulheres prenhes prontas para parir.
Não os
encontro. Sumiram.
Quando
criança, eu os via aos montões. Contá-los? Impossível. Eles atulhavam nossos
mares azuis. Embicados em direção a Salvador, a Maragogipe, Cachoeira, Santo
Amaro, à ilha de Itaparica, enfim, ao mais diversos pontos do estado. Num
vai-e-vem com hora marcada.
Ao alvorecer
chegavam a Salvador repletos de mercadorias e passageiros. Ao cair da tarde,
iam ao encontro de seus abrigos, carregando gente ansiosa por rever suas plagas
e um sem-número de mantimentos e encomendas. Como partícipes de uma procissão
de rara beleza, cujos andores eram suas velas brancas que pareciam emergir do
mar, cortando as águas mornas e mansas
do golfo com suas quilhas, tais quais espadas afiadas, que sulcam as mais duras
superfícies, procuravam mar aberto ou um porto seguro, guaiados pela
experiência e pulso firme do mestre saveirista, aferrado ao leme, preocupado em
cambar as velas para aproveitar o soprar dos ventos. Estes se divertiam, muitas
vezes, mudando o seu curso como uma mulher infiel troca de amor. Quando não,
para pirraçar deixava de soprar, abandonando o veleiro à deriva, ou fazendo-o
com violência tamanha que o deixava perdido, vagando ao léu da sorte.
Os ajudantes
do mestre, com dorsos nus, escurecidos pelos raios inclementes do sol que os
banhavam, despreocupados, davam seguimento aos seus afazeres: molhar as velas,
retirar água dos cascos, estivar as mercadorias transportadas, fazer pequenos
reparos.
Sempre tomei
os saveiros como símbolos da liberdade. E o eram, com certeza. Vendo-os, de
longe, do belvedere da Sé, do Passeio Público, do Largo dos Aflitos, da Praça
Municipal, da ponta do Montserrat – locais de onde se observa toda a plácida
grandeza da nossa baía – singrando com graça e elegância augusta as águas
tranquilas ou agitadas dos mares, eu os cria fortes, susceptíveis de suplantar,
impávidos, quaisquer procelas, indiferentes aos humores do tempo. Sentia-os
imunes aos perigos. Minúsculos territórios da paz.
Seduzida, a
minha imaginação neles embarcava para uma viagem onírica. Desejosa de correr o
mundo, conhecer lugares intocados. Aventurar-se em busca dos paraísos criados
pela minha cabeça aventureira e romântica a comandar expedições transcendentes
como o fizeram Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral, Cristóvão Colombo, Américo
Vespúcio.
Em sonhos os
transpunha dos braços de Salvador até aos precipícios do mundo, onde, bem
pertinho daqueles abismos, arriavam as velas, atiravam a poita para fundear,
engendrando os caminhos de volta e traçando mapas através das estrelas.
Fui durante
longo tempo, não só em sonhos, passageiro dos saveiros. Quase vinte anos. No
trajeto entre Salvador e Mar Grande onde veraneava. Adorava a travessia. A
brisa quente soprando no meu rosto. O adernar do barco quando do cambar das
velas. As águas do mar correndo em sentido contrário ao rumo do veleiro,
batendo com força na sua proa, lançando seus respingos em minha direção,
protestando contra o atrevimento daquela frágil embarcação que ousava desafiar os
seus poderes. O estatelar do casco chocando-se fortemente na água depois de
ultrapassar incólume ondas teimosas.
Emoções que
carrego sem intenções de despedi-las.
Hoje, elas
desapareceram de nossos mares. Não vejo nem um de um só mastro, quanto mais de
dois ou três. Muito menos os de velas brancas ou vermelhas.
Os tempos
“modernos” com suas estradas ligando as mais diversas cidades, condenaram-nos
ao obsoletismo. Por serem lentos no transportar mercadorias e passageiros,
foram desprezados. Substituídos por caminhões. Por fim os enterraram como
mortos em valas comuns sem as homenagens de um velório condigno. Ou, quando
muito, transformaram-nos em escunas.
Apesar da
tais constatações, ainda há os que resistem em admitir a sua morte. Lev
Smarcevisk, arquiteto e projetista naval enfatiza: “ Os saveiros continuam
vivos”. Eu o contradigo: eles morreram sim. Jazem encalhados, apodrecidos nas
desertas praias do nosso litoral.
Se ainda
ousam navegar, fazem isso nos profundos mares das nossas lembranças, e nos
lagos remansosos das nos eternas saudades.
É pena que
um dos símbolos mais marcantes e belos da nossa terra acabe assim. Sem “choro,
nem vela”, como diz conhecido verso de uma famosa música do nosso cancioneiro
popular.
Belíssima crônica, caro Facó.
ResponderExcluir