segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A CASA VAZIA

Conto
Por Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes

Arthur Conan Doyle

O assassinato do honorável Ronald Adair, ocorrido na primavera de 1894, em estranhas e inexplicáveis circunstâncias, despertou o interesse de toda a cidade de Londres, deixando consternados os meios elegantes. O público conhece os pormenores que vieram à luz nas investigações policiais, mas muita coisa ficou oculta naquela época, pois as acusações eram tão graves e evidentes que era pouco aconselhável divulgar todos os fatos. Somente agora, quase dez anos mais tarde, é que me é permitido apresentar os elos que faltaram e que completam a extraordinária cadeia. O crime em si era interessante, mas esse interesse nada significava para mim, comparado com a sua inconcebível sequência, que me causou o maior choque e a maior surpresa de toda a minha vida aventurosa. Mesmo agora, após tão longo intervalo, vibro ao pensar nisso e me sinto de novo invadido por uma torrente de alegria, espanto e incredulidade.


Ao público que se interessou pelas informações que de vez em quando eu dava a respeito dos pensamentos e ações daquele homem extraordinário, quero dizer que não deve me censurar por não ter compartilhado tudo com ele. Teria sido esse o meu primeiro dever, se não houvesse expressa proibição, formulada pelos lábios daquele homem — proibição que foi levantada no dia 3 do mês passado.
É fácil imaginar que a minha intimidade com Sherlock Holmes me fizesse tomar grande interesse pelo crime em geral e que, após o desaparecimento do meu amigo, eu nunca deixasse de ler com cuidado os vários problemas levados a público. Mais de uma vez, para meu gozo pessoal, tentei empregar os métodos de Holmes e solucionar tais problemas, embora sem resultado.
Nenhum me atraiu tanto como a tragédia de Ronald Adair. Ao ler no inquérito os depoimentos que levaram ao veredito: "assassinato cometido por pessoa ou pessoas desconhecidas", compreendi mais do que nunca que perda fora para a sociedade a morte de Sherlock Holmes. Havia, no estranho caso, pontos que certamente o teriam atraído — e o trabalho da polícia teria sido auxiliado, ou mais provavelmente, antecipado, pela experiente observação e a inteligência desperta do maior criminalista da Europa. Nesse dia, enquanto fazia as minhas visitas, pensei demoradamente no caso, não encontrando explicação adequada. Embora corra o risco de contar uma história pela segunda vez, vou recapitular os fatos que se tornaram do domínio público no final do inquérito.
O honorável Ronald Adair era o segundo filho do conde de Maynooth, na ocasião governador de uma das colônias australianas. A mãe de Adair viera da Austrália para ser operada de catarata. Ela e seus filhos Ronald e Hilda moravam no número 427 da Park Lane. Os dois jovens frequentavam a melhor sociedade; ao que constava, não tinham inimigos, nem vícios. Ele estivera noivo da Srta. Edith Woodiey, de Carstairs, mas o noivado fora desfeito meses antes, de comum acordo, e não havia motivo para se supor que existisse ressentimento. Quanto ao resto, o rapaz frequentara um círculo estreito e convencional, pois tinha hábitos moderados e temperamento calmo. Apesar disso, a morte apresentou-se a esse jovem aristocrata de maneira estranha e inesperada, entre as dez e as onze e vinte, na noite de 30 de março de 1894.
Ronald Adair era aficionado pelas cartas e jogava com frequência, mas não de maneira que pudesse prejudicá-lo. Era sócio dos clubes Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Ficou provado que no dia da sua morte jogara whist no Bagatelle, depois do jantar. Também jogara ali à tarde. Soube-se, pelo depoimento do sr. Murray, de Sir John Harday e do coronel Moran, que o jogo fora whist e que houvera certo equilíbrio na sorte. Adair perdera mais ou menos cinco libras. Possuidor de enorme fortuna, esse prejuízo em nada poderia afetá-lo. Tinha jogado todos os dias, num ou noutro clube, mas era cauteloso e em geral saía com lucro. Ficou provado que, como parceiro do coronel Moran, chegara a ganhar quatrocentas e vinte libras numa sessão, algumas semanas antes, de Godfrey Milner e Lorde Balmoral. Esses fatos eram recentes, pelo que se soube no inquérito.
Na noite do crime, ele voltou do clube exatamente às dez horas. Sua mãe e sua irmã tinham ido visitar uns parentes. A criada declarou que o ouvira entrar na sala da frente, no segundo andar. Ela acendera o fogo nessa sala, e, devido à fumaça, abrira a janela. Não fora ouvido o menor ruído até as onze e vinte, hora a que voltaram a dona da casa e sua filha. Desejando dizer boa-noite ao filho, Lady Maynooth tentara entrar no seu quarto. Estava fechado por dentro, e não houve resposta quando bateram e chamaram. Pediram socorro, e a porta foi arrombada. O infeliz rapaz estava caído perto da mesa. Fora horrivelmente mutilado por uma bala explosiva, mas não se encontrou arma alguma no aposento. Na mesa estavam duas notas de dez libras, assim como dezessete libras e dez xelins em moedas de prata e de ouro, dispostas em pequenas pilhas. Havia também algarismos numa folha de papel, com os nomes de alguns amigos do clube, donde se deduziu que estivera, antes de morrer, tentando verificar seus lucros ou prejuízos no jogo.
Um exame minucioso do caso tornou-o ainda mais complexo. Em primeiro lugar, não havia razão para o rapaz ter fechado a porta por dentro. Havia a possibilidade de ela ter sido fechada pelo assassino, que poderia ter fugido pela janela. Mas era uma queda de sete metros, e embaixo havia um canteiro de açafrões em pleno florescimento. Nem as flores nem a terra pareciam ter sido pisadas, e não havia marcas na estreita faixa de relva que separava a casa da rua. A julgar pelas aparências, fora o próprio rapaz que fechara a porta. Mas como fora ele morto? Ninguém poderia ter galgado aquela janela sem deixar vestígios. Mesmo supondo-se que alguém tivesse feito pontaria pela janela, era necessário que se tratasse de um ótimo atirador para causar tal ferimento. Além disso, a Park Lane é muito frequentada, e havia um estacionamento de carros a cem metros da casa. Ninguém ouvira o tiro. E, no entanto, lá estava o morto, bem como a bala, achatada como todas as balas de ponta macia, provocando um ferimento que devia ter causado morte instantânea. Eram essas as circunstâncias do mistério da Park Lane, complicadas pela total ausência de motivo, já que, como dissemos, o jovem Adair não parecia ter inimigos e não houvera tentativa de roubo de dinheiro, ou de objetos de valor.
Durante o dia todo, pensei nesses fatos, procurando encontrar uma teoria que os explicasse, ou descobrir a linha de menor resistência, que, na opinião do meu pobre amigo Holmes, era o ponto de partida de qualquer investigação. Confesso que fiz poucos progressos. À tarde, caminhei pelo parque, e, às seis horas, vi-me na extremidade da Park Lane que dá para a Oxford Street.


Um grupo de curiosos na calçada, todos olhando para uma determinada janela, indicou-me a casa que eu havia ido ver. Um homem alto e magro, de óculos escuros, que desconfiei fosse um policial à paisana, expunha uma teoria de sua autoria às pessoas que se agrupavam para ouvi-lo. Cheguei o mais perto possível, mas as observações me pareceram absurdas, de modo que me afastei, aborrecido. Ao fazê-lo, esbarrei num homem velho e disforme, que estava atrás de mim, e derrubei vários livros que ele levava. Lembro-me de que, ao erguê-los, notei o título de um deles, The origin of tree worship, e ocorreu-me que o sujeito devia ser um pobre bibliófilo, que, por profissão ou mania, colecionava volumes obscuros. Procurei desculpar-me, mas era evidente que aqueles livros, que eu tivera a infelicidade de derrubar, eram preciosos aos olhos do dono. Ele se virou com um rosnar de desprezo, e a corcunda e as suíças brancas desapareceram no meio da multidão.
Minhas observações sobre o número 427 da Park Lane não me ajudaram a elucidar o problema que me interessava. A casa era separada da rua por um muro baixo, com grade, não tendo o conjunto mais do que um metro e meio de altura. Seria portanto muito fácil a qualquer pessoa entrar no jardim. Mas a janela era inacessível, uma vez que não havia condutor de água ou qualquer outra coisa que pudesse ajudar o mais ágil dos homens a galgá-la. Cada vez mais perplexo, voltei para Kensington. Não havia ainda cinco minutos que entrara no meu escritório, quando a criada veio me avisar que alguém queria me ver. Notei, com surpresa, que era o estranho colecionador de livros, de rosto enrugado sob os cabelos brancos, carregando os preciosos volumes, no mínimo doze, sob o braço direito.
— Está admirado de me ver aqui, senhor? — perguntou ele com um grasnar estranho.
Respondi que realmente estava.
— Pois bem, mas é que eu tenho consciência, e, ao vê-lo entrar nesta casa, quando vinha atrás do senhor, disse a mim mesmo que ia entrar e dizer-lhe que, se me mostrei um tanto brusco, foi sem querer e que lhe estou grato por ter apanhado os meus livros.
— Está dando muita importância ao incidente — disse eu. — Posso perguntar como soube quem eu era?
— Pois bem, senhor, se acha que estou tomando excessiva liberdade, dir-lhe-ei que sou seu vizinho; minha livrariazinha fica na esquina da Church Street, onde terei muito prazer em vê-lo, pode ficar certo. Talvez o senhor também seja colecionador, e tenho aqui Pássaros britânicos, Catulo e A Guerra Santa — cada um deles uma pechincha! Com cinco volumes o senhor poderia preencher aquele espaço, na segunda prateleira. Dá um ar de desordem, não é verdade, senhor?
Virei a cabeça e olhei para a estante atrás de mim.


Quando tornei a me virar, Sherlock Holmes me encarava sorrindo, do outro lado da escrivaninha. Ergui-me de um salto, olhei-o durante alguns segundos, completamente atônito, e parece que desmaiei pela primeira e última vez na minha vida. Não há dúvida de que uma nuvem cinzenta dançou diante dos meus olhos, e, quando recuperei os sentidos, vi que meu colarinho fora desabotoado e senti na boca um gosto de conhaque. Holmes estava inclinado sobre a minha cadeira, de frasco na mão.
— Caro Watson, peço-lhe mil perdões — disse a tão conhecida voz. — Não imaginei que ficasse tão abalado.
Agarrei-o pelo braço.
— Holmes! — exclamei. — É você mesmo? Será possível que esteja vivo? É verdade que conseguiu sair daquele pavoroso abismo?
— Espere um momento! — disse ele. — Tem certeza de que está em estado de discutir os fatos? Causei-lhe um choque sério com a minha aparição desnecessariamente dramática.
— Estou bem, mas, francamente, Holmes, mal posso acreditar nos meus olhos. Deus do céu, pensar que você, você, dentre todos os homens, está aqui no meu escritório!
— Agarrei-o de novo pela manga e senti-lhe o braço fino e nervoso. — Bom, em todo caso, não é espírito. Caro amigo, estou radiante por revê-lo. Sente-se e conte-me como saiu vivo do horrível precipício.
Ele se sentou diante de mim e acendeu um cigarro, com aquele seu jeito despreocupado. Vestia o mesmo terno velho do vendedor de livros, mas as outras características daquele indivíduo estavam em cima da mesa, juntamente com a cabeleira branca e a pilha de livros. Holmes parecia mais magro e mais astuto do que antigamente, mas havia no rosto aquilino uma palidez que indicava não ter levado vida sadia ultimamente.
— Estou satisfeito por poder me esticar novamente, Watson — disse ele. — Não é brincadeira, para um homem alto, ter de diminuir sua estatura trinta centímetros durante horas a fio. Agora, caro a migo, quanto às explicações: se quiser me dar a sua cooperação, temos uma noite dura e perigosa à nossa frente. Talvez seja melhor eu lhe relatar os fatos depois desse trabalho terminado.


— Estou curiosíssimo. Prefiro ouvi-lo agora.
— Vai me acompanhar hoje à noite?
— Quando quiser e aonde quiser.
abismo
não tive dificuldade em sair dele pela simples razão de nunca ter
— Como antigamente, então. Temos tempo para um jantarzinho, antes de partir. Pois bem, quanto ao estado lá.
— Nunca ter estado lá?
— É verdade, Watson, a pura verdade. O bilhete que lhe escrevi foi sincero. Não duvidei que tivesse chegado ao fim da minha carreira, quando vi o vulto sinistro do falecido professor Moriarty, de pé, na estreita vereda que o levava para junto de mim. Li nos seus olhos cinzentos uma resolução inexorável. Troquei com ele algumas palavras e obtive a sua amável permissão para lhe escrever, Watson, o bilhete que você mais tarde recebeu. Deixei-o juntamente com minha cigarreira e minha bengala e segui pela vereda, com Moriarty no meu encalço. Quando cheguei ao fim, ambos paramos. Ele não sacou arma alguma, mas correu para mim e rodeou-me com os seus longos braços. Sabia que para ele não havia esperança e queria se vingar. Lutamos à beira do precipício. Mas conheço um pouco de baritsu, um tipo de luta japonesa que mais de uma vez tem me valido. Consegui me libertar. Com um grito horrível, ele esperneou durante alguns segundos, como se procurasse agarrar o ar com ambas as mãos, mas, por mais que se esforçasse, não recuperou o equilíbrio e caiu no precipício. Vi-o durante muito tempo. Depois bateu numa rocha e desapareceu na água.
Ouvi com espanto essa explicação, que Holmes me deu enquanto fumava.
— Mas, e as marcas! — exclamei. — Vi, com os meus próprios olhos, pegadas de duas pessoas indo e nenhuma de regresso.
— Vou lhe contar. No momento em que o professor desapareceu, ocorreu-me que eu tinha tido uma sorte extraordinária. Sabia que Moriarty não era o único que jurara me matar. Havia pelo menos mais três cujo desejo de vingança se acentuaria com a morte do chefe. Eram todos homens perigosíssimos. Um deles acabaria por me apanhar. Por outro lado, se o mundo inteiro estivesse convencido de que eu morrera, aqueles homens ficariam à vontade, e, cedo ou tarde, eu teria oportunidade de destruí-los. Seria, então, hora de anunciar que eu ainda pertencia ao mundo dos vivos. A mente raciocina com tal rapidez, que tudo isso me ocorreu antes mesmo de o professor Moriarty ter chegado ao fundo das quedas de Reichenbach.
"Levantei-me e examinei o rochedo atrás de mim. Na sua pitoresca descrição do incidente, que li meses mais tarde, você assegura que a rocha era escarpada. Não é bem verdade. Havia alguns pontos de apoio para os pés e a ligeira indicação de uma saliência. O rochedo era tão alto que parecia impossível galgá-lo todo, mas seria também impossível voltar pela vereda sem deixar sinais. Eu poderia, é claro, virar os sapatos, como já tenho feito noutras ocasiões, mas a impressão de três grupos de pegadas na mesma direção certamente despertaria suspeitas. Em suma, era preferível arriscar-me a subir. Não foi agradável, Watson. A catarata rugia a meus pés. Não sou pessoa imaginosa, mas garanto-lhe que tinha a impressão de ouvir a voz de Moriarty gritando do fundo do abismo. Um erro teria sido fatal. Mais de uma vez, quando um tufo de relva me ficou nas mãos, ou o pé me escorregou nas fendas úmidas da rocha, pensei que chegara ao fim. Mas continuei o esforço da subida e finalmente alcancei uma plataforma de alguns metros de profundidade, coberta por relva úmida, onde pude descansar sem ser visto, com todo o conforto. Estava estendido ali quando você, caro Watson, e todos os seus acompanhantes investigaram minha morte da maneira mais amiga e eficiente que se poderia imaginar..

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