Desde o
início do meu curso primário, intuitivamente, passei a registrar em cadernos
colecionados por minha mãe – presumo que, com muita constância – anotações,
nomes de pessoas, frases, relações das maravilhas do mundo, trovas, data de
nascimento e morte de vultos da história mundial, inventores, pensadores,
poetas, romancistas, pintores, acontecimentos cotidianos. Seguia, sem me dar
conta, uma máxima da lavra de Plínio, o velho, lida muitos anos depois, contida
no seu livro História Natural em homenagem ao pintor Apelles, retratista de
Carlos Magno, que dizia: nulla dies sine
linea, cuja tradução é “nenhum dia sem uma linha.”
Em tais
apontamentos relidos, decorrido um grande lapso de tempo da época em que foram
escritos, encontrei algumas excentricidades. Palavras que não faziam nexo.
Soltas, sem sujeito nem predicado. Nomes de pessoas que não mais pertenciam à
minha memória, conquanto outros ainda estivessem, intimamente, ligados a ela.
Dentre os mais significativos acode-me ter encontrado, naqueles
alfarrábios, os
nomes de Monteiro Lobato, Hans Cristian Andersem, o dos irmãos Grim, Alexandre
Dumas, Castro Alves, Rui Barbosa, Carneiro Ribeiro, José de Alencar, Cassimiro
de Abreu, Emílio de Menezes, do pintor Mendonça Filho, dos políticos Getúlio
Vargas, Oswaldo Aranha, Jaime Junqueira Aires, Antônio Balbino, Jorge Calmon,
Josafá Marinho, Orlando Spínola, Rubem Nogueira, Luís Rogério, os sete últimos
assinalados como constituintes baianos de 1947.
Acabada a
leitura, um passeio pela minha meninice e princípio da puberdade, fiz uma
reflexão sobre o que me levava a tal exercício. Seria uma curiosidade?
Perguntei-me. Sede de conhecimento? Fortes impressões e imagens que marcaram o
preambulo da minha vida? Honestamente,
não sabia responder, naquele momento, por mais esforço que fizesse e
conjecturasse uma explicação. Só muito tempo depois, com o desenvolver da minha
vida, dei-me conta do por quê. Tratava-se descobri num relance como se abre as
cortinas de um palco para dar início a uma récita, que tudo se devia a minha
admiração pelo engenho e a criação humana. Um amor acrisolado pelos homens e
mulheres intuitivas, geniais; pelos que acreditam em valores éticos e morais;
pelos que defendem causas plausíveis a abrangentes: as dos países onde
nasceram, as da humanidade. Tanto que, a minha obra literária – sem que isso
fosse proposital – se é que posso assim designá-la, está eivada de alusões a
esses espécies rareados, nesta época cujos valores mais comezinhos do bom
comportamento social são achincalhados, desprezados e vilipendiados pela
maioria da gente, empurrada pelos seus líderes, insensíveis aos exemplos de
honestidade e bons propósitos que seus ilustre antepassados esmeraram-se em
lhes transmitir.
Dentre os
que me descuidei de homenagear ao longo dessa minha trajetória está a figura de
Jorge Calmon. Talvez porque tenha sido essa personalidade estimadíssima e
respeitada por toda Bahia uma das minhas mais recentes conquistas de amizade, a
que mais em tempo próximo me acolheu dentre o seu imenso rol de amigos.
Por Romana,
sua irmã, desde criança fui considerado sobrinho. Com os filhos dela, desfrutei
os prazeres lúdicos da infância no bairro onde morávamos: o Gabriel Soares. Por
doutor Pedro, também irmão de Jorge, relevante expoente da literatura
brasileira, historiador e autor irretocável, eleito aos trinta e quatro anos
para a cadeira dezesseis da Academia Brasileira de Letras, fui considerado
amigo, desde quando passei a ser seu colaborador durante o exercício dele nos
idos dos anos sessenta na Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como Magnífico Reitor.
Com Jorge,
embora aquelas ligações familiares levassem muitos a crer em contrário, só
mantinha um conhecimento formal, protocolar. Admirava-o como parlamentar,
jornalista, homem probo, dono de uma discrição elegante, que, ao lado da mulher
Leonor, destacava-se como um dos casais mais refinados e benquistos da nossa
terra.
Em ocasiões
especiais, o máximo que me permitia, ao encontra-lo, era chama-lo de Mestre,
palavra desusada, mas de forte significado, uma adjetivação que só concedia a
raras pessoas conhecidas. Todas elas no mesmo patamar da estatura e grandeza
daquela emérita figura.
Somente nos
primórdios da década de noventa transformamos aquele conhecimento civilizado em
verdadeira amizade. Abriu-nos essa oportunidade o General Edson Machado, então
comandante da Sexta Região Militar, que nos nomeou membros da Comissão Regional
das Fortificações (Bahia), juntamente com Consuelo Pondé, Cid Teixeira, Junot
Silveira, Mário Mendonça de Oliveira Francisco Senna, Norberto Odebrecht e
outros expoentes da elite social e cultural baiana. Ele, Jorge, como
representante da imprensa, eu, da comunidade.
Foi no bojo
dessa comissão, no calor das discussões em torno do modo e de como buscar
recursos para reconstruir e preservar aos pósteros, aquele manancial de riqueza
– fortes, monumentos, casarões – é que tive oportunidade de sentir toda a
grande do Mestre, todo o seu poder de argumentação, de aquilatar seu apego à
Bahia, sentimento depurado da mesquinhez, do partidarismo faccioso e das ideias
falaciosas que emperram o caminhar dos povos.
Nessas
ocasiões, dentre tantos estandartes do conhecimento humano ali reunidos, Jorge
avultava-se apagando o brilhos dos demais. Nunca por vaidade, tão-só pelo
desejo em colaborar.
Foi nessas
circunstâncias que me apeguei a ele, como o fizera anteriormente com seus
irmãos. E a recíproca foi verdadeira. Tanto que, quando da criação da
Associação Brasileira das Fortificações Militares e Sítios Históricos, cujos
serviços, desde então, inflam de orgulho a nossa terra – coube a ABRAF, como se
tornou conhecida, a revitalização dos Fortes de São Diogo, do Monte Serrat e do
de São Marcelo, no dizer de Jorge Amado, o umbigo da Bahia, - numa generosidade
própria do seu caráter, Jorge houve por bem me indicar como vice-presidente
daquela novel entidade. Uma lembrança que me envaideceu não pela posição que
dali para frente ostentaria, mas por ela ter partido de um homem capaz,
invulnerável a cambalachos, imune a interesses mesquinhos e à sordidez dos
aproveitadores. Enfim, de um homem capaz, diligente, insubmisso a interesses
menores, senhor absoluto da civilidade, um dos maiores jornalistas baianos de
todos os tempos, gerado no ventre abençoado desta Boa Terra.
Quando falo
ou escrevo sobre os amigos não tenho
reservas, censuras. Deixo a pena correr livremente sobre o papel em branco. A
muitos parecerá que os meus textos sobre eles passam pelo filtro da reflexão.
Nada mais fantasioso porque eles provêm, unicamente, das impressões e dos
orgasmos do mee coração.
Não poderia
concluir esta singela, mas confessional homenagem, sem citar Kant. Escreveu
ele:: “... O homem não é outra coisa senão o que a educação faz dele...”. Pois
é, amigo leitor, e sendo Jorge fruto das estirpes dos Bittencourt, dos Calmon,
dos Muniz de Aragão e dos Gama, dela herdou essa característica sublinhada pelo
filósofo, sobretudo, dos familiares mais íntimos, Pedro Calmon Freire de
Bittencourt e Maria Romana Freire de Aragão, seus inesquecíveis pais.
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