sexta-feira, 26 de setembro de 2014

JORGE CALMON

Por Luiz Carlos Facó


Desde o início do meu curso primário, intuitivamente, passei a registrar em cadernos colecionados por minha mãe – presumo que, com muita constância – anotações, nomes de pessoas, frases, relações das maravilhas do mundo, trovas, data de nascimento e morte de vultos da história mundial, inventores, pensadores, poetas, romancistas, pintores, acontecimentos cotidianos. Seguia, sem me dar conta, uma máxima da lavra de Plínio, o velho, lida muitos anos depois, contida no seu livro História Natural em homenagem ao pintor Apelles, retratista de Carlos Magno, que dizia: nulla dies sine linea, cuja tradução é “nenhum dia sem uma linha.”
Em tais apontamentos relidos, decorrido um grande lapso de tempo da época em que foram escritos, encontrei algumas excentricidades. Palavras que não faziam nexo. Soltas, sem sujeito nem predicado. Nomes de pessoas que não mais pertenciam à minha memória, conquanto outros ainda estivessem, intimamente, ligados a ela. Dentre os mais significativos acode-me ter encontrado, naqueles 

alfarrábios, os nomes de Monteiro Lobato, Hans Cristian Andersem, o dos irmãos Grim, Alexandre Dumas, Castro Alves, Rui Barbosa, Carneiro Ribeiro, José de Alencar, Cassimiro de Abreu, Emílio de Menezes, do pintor Mendonça Filho, dos políticos Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, Jaime Junqueira Aires, Antônio Balbino, Jorge Calmon, Josafá Marinho, Orlando Spínola, Rubem Nogueira, Luís Rogério, os sete últimos assinalados como constituintes baianos de 1947.
Acabada a leitura, um passeio pela minha meninice e princípio da puberdade, fiz uma reflexão sobre o que me levava a tal exercício. Seria uma curiosidade? Perguntei-me. Sede de conhecimento? Fortes impressões e imagens que marcaram o preambulo da minha vida?  Honestamente, não sabia responder, naquele momento, por mais esforço que fizesse e conjecturasse uma explicação. Só muito tempo depois, com o desenvolver da minha vida, dei-me conta do por quê. Tratava-se descobri num relance como se abre as cortinas de um palco para dar início a uma récita, que tudo se devia a minha admiração pelo engenho e a criação humana. Um amor acrisolado pelos homens e mulheres intuitivas, geniais; pelos que acreditam em valores éticos e morais; pelos que defendem causas plausíveis a abrangentes: as dos países onde nasceram, as da humanidade. Tanto que, a minha obra literária – sem que isso fosse proposital – se é que posso assim designá-la, está eivada de alusões a esses espécies rareados, nesta época cujos valores mais comezinhos do bom comportamento social são achincalhados, desprezados e vilipendiados pela maioria da gente, empurrada pelos seus líderes, insensíveis aos exemplos de honestidade e bons propósitos que seus ilustre antepassados esmeraram-se em lhes transmitir.
Dentre os que me descuidei de homenagear ao longo dessa minha trajetória está a figura de Jorge Calmon. Talvez porque tenha sido essa personalidade estimadíssima e respeitada por toda Bahia uma das minhas mais recentes conquistas de amizade, a que mais em tempo próximo me acolheu dentre o seu imenso rol de amigos.
Por Romana, sua irmã, desde criança fui considerado sobrinho. Com os filhos dela, desfrutei os prazeres lúdicos da infância no bairro onde morávamos: o Gabriel Soares. Por doutor Pedro, também irmão de Jorge, relevante expoente da literatura brasileira, historiador e autor irretocável, eleito aos trinta e quatro anos para a cadeira dezesseis da Academia Brasileira de Letras, fui considerado amigo, desde quando passei a ser seu colaborador durante o exercício dele nos idos dos anos sessenta na Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como Magnífico Reitor.
Com Jorge, embora aquelas ligações familiares levassem muitos a crer em contrário, só mantinha um conhecimento formal, protocolar. Admirava-o como parlamentar, jornalista, homem probo, dono de uma discrição elegante, que, ao lado da mulher Leonor, destacava-se como um dos casais mais refinados e benquistos da nossa terra.
Em ocasiões especiais, o máximo que me permitia, ao encontra-lo, era chama-lo de Mestre, palavra desusada, mas de forte significado, uma adjetivação que só concedia a raras pessoas conhecidas. Todas elas no mesmo patamar da estatura e grandeza daquela emérita figura.
Somente nos primórdios da década de noventa transformamos aquele conhecimento civilizado em verdadeira amizade. Abriu-nos essa oportunidade o General Edson Machado, então comandante da Sexta Região Militar, que nos nomeou membros da Comissão Regional das Fortificações (Bahia), juntamente com Consuelo Pondé, Cid Teixeira, Junot Silveira, Mário Mendonça de Oliveira Francisco Senna, Norberto Odebrecht e outros expoentes da elite social e cultural baiana. Ele, Jorge, como representante da imprensa, eu, da comunidade.
Foi no bojo dessa comissão, no calor das discussões em torno do modo e de como buscar recursos para reconstruir e preservar aos pósteros, aquele manancial de riqueza – fortes, monumentos, casarões – é que tive oportunidade de sentir toda a grande do Mestre, todo o seu poder de argumentação, de aquilatar seu apego à Bahia, sentimento depurado da mesquinhez, do partidarismo faccioso e das ideias falaciosas que emperram o caminhar dos povos.  
Nessas ocasiões, dentre tantos estandartes do conhecimento humano ali reunidos, Jorge avultava-se apagando o brilhos dos demais. Nunca por vaidade, tão-só pelo desejo em colaborar.
Foi nessas circunstâncias que me apeguei a ele, como o fizera anteriormente com seus irmãos. E a recíproca foi verdadeira. Tanto que, quando da criação da Associação Brasileira das Fortificações Militares e Sítios Históricos, cujos serviços, desde então, inflam de orgulho a nossa terra – coube a ABRAF, como se tornou conhecida, a revitalização dos Fortes de São Diogo, do Monte Serrat e do de São Marcelo, no dizer de Jorge Amado, o umbigo da Bahia, - numa generosidade própria do seu caráter, Jorge houve por bem me indicar como vice-presidente daquela novel entidade. Uma lembrança que me envaideceu não pela posição que dali para frente ostentaria, mas por ela ter partido de um homem capaz, invulnerável a cambalachos, imune a interesses mesquinhos e à sordidez dos aproveitadores. Enfim, de um homem capaz, diligente, insubmisso a interesses menores, senhor absoluto da civilidade, um dos maiores jornalistas baianos de todos os tempos, gerado no ventre abençoado desta Boa Terra.
Quando falo ou escrevo sobre os amigos  não tenho reservas, censuras. Deixo a pena correr livremente sobre o papel em branco. A muitos parecerá que os meus textos sobre eles passam pelo filtro da reflexão. Nada mais fantasioso porque eles provêm, unicamente, das impressões e dos orgasmos do mee coração.
Não poderia concluir esta singela, mas confessional homenagem, sem citar Kant. Escreveu ele:: “... O homem não é outra coisa senão o que a educação faz dele...”. Pois é, amigo leitor, e sendo Jorge fruto das estirpes dos Bittencourt, dos Calmon, dos Muniz de Aragão e dos Gama, dela herdou essa característica sublinhada pelo filósofo, sobretudo, dos familiares mais íntimos, Pedro Calmon Freire de Bittencourt e Maria Romana Freire de Aragão, seus inesquecíveis pais.   

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