Literatura
Conto de Guy de Maupassant
Henri
René Albert Guy de Maupassant, ou simplesmente Guy de Maupassant foi um
escritor e poeta francês com predileção para situações psicológicas e de
crítica social com técnica realista.
Depois de jantarmos,
retornamos ao convés do navio. Diante de nós, a superfície lisa do Mediterrâneo
refletia uma lua tranquila. O enorme navio sulcava as águas sob um céu semeado
de estrelas, e a esteira branca que deixava para trás brincava em espumas,
parecendo retorcer-se em claridades tão buliçosas, que se poderia dizer que a
luz da lua estava fervendo.
Seis ou sete homens
permanecíamos ali, em silenciosa admiração, enquanto viajávamos para a África
distante. O capitão retomou a conversa que havíamos tido durante o jantar:
Então um dos
presentes resolveu contestar a expressão usada pelo capitão. Era um homem alto,
de cara bronzeada pelo sol, com aspecto grave; um desses homens que à primeira
vista nos dão a impressão de haver percorrido vastos países desconhecidos em
meio a incessantes perigos, e cujo olhar sereno parecia guardar, na sua
profundidade, algo das estranhas paisagens que vira; um desses homens que
adivinhamos dotado de têmpera extraordinária.
— Capitão, o Sr.
diz que teve medo, mas não o creio. O Sr. parece enganar-se sobre a palavra e
sobre a sensação que teve. Um homem enérgico como o senhor nunca sente medo
diante do perigo. Sente emoção, nervosismo, ansiedade, mas medo é outra coisa.
— Discordo!
Asseguro-vos que tive medo!
— Permita-me que
lhe explique. Até os homens mais intrépidos podem ter medo. Mas o medo é algo
espantoso, uma sensação atroz, como uma desintegração da alma, um espasmo
horrível do pensamento e do coração, cuja simples recordação dá estremecimentos
de angústia. Mas quando se é valente, isso não ocorre nem diante de uma
batalha, nem diante da morte inevitável nem diante de nenhuma das formas
conhecidas do perigo. Acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas
influências misteriosas e diante de riscos indefinidos. O verdadeiro medo é
como uma reminiscência dos fantásticos terrores primitivos. Um homem que
acredita em fantasmas, e que imagina ver um espectro na noite, deve
experimentar o medo em todo seu espantoso horror.
Eu descobri o que
de fato é o medo há uns dez anos, em pleno dia. E pude experimentá-lo também no
último inverno, numa noite de dezembro. Na verdade, passei já por muitas
situações, muitos reveses, muitas aventuras que pareciam mortais: em certa
ocasião, uns ladrões me deixaram como morto; na América, fui condenado à forca
por motivo de rebelião; na China, fui jogado ao mar, da proa de um navio. Cada
vez que me julguei perdido, tomei minhas decisões imediatamente, sem vacilar, e
até mesmo sem pensar. Mas isso não é o medo.
Observem, senhores,
que entre os orientais a vida não conta para nada. Logo se resignam. As noites
são claras, órfãs das sombrias inquietudes que atormentam os cérebros nos
países frios. No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas se ignora o medo. Vou narrar-lhes
o que me aconteceu na África.
Percorria eu as
grande planícies ao sul de Ouargla. É um dos mais estranhos países do mundo. Os
senhores conhecem a areia fina, a areia lisa das intermináveis praias do
oceano. Imaginem agora o próprio oceano convertido em areia, em meio a um
furacão. Imaginem uma tempestade silenciosa das ondas imóveis de pó amarelo.
Essas ondas desiguais são altas como montanhas, encrespadas como torrentes
desencadeadas, mas maiores ainda, e estriadas como a ágata. Sobre esse mar
furioso, mudo e sem movimento, o sol devorador do Sul lança sua chama
implacável e direta. Tem-se que subir nessas ondas de cinza dourada, subir mais
uma vez, mais outra, subir sem cessar, sem descanso e sem proteção. Os animais
se atolam até os joelhos, e resvalam ao descer pela outra vertente das
surpreendentes colinas.
Éramos dois amigos,
escoltados por oito spahis seguidos de quatro camelos com seus cameleiros.
Íamos por aquele deserto ardente sem falar, assolados pelo calor, pelo cansaço
e pela sede. Subitamente um dos homens deu um grito, e todos paramos e
permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno que os
viajantes dessas regiões perdidas conhecem bem. Em algum lugar, perto de nós,
numa direção indeterminada, soava um misterioso tambor, o misterioso tambor das
dunas. Soava claramente, ora mais vibrante ora menos, cessando e logo
recomeçando seu som fantástico. Os árabes, espantados, olhavam-se uns aos
outros. Um deles disse:
— A morte vem para
cima de nós.
De repente meu
companheiro, meu amigo quase como um irmão, caiu do cavalo, de bruços,
mortalmente atingido pela insolação. Durante duas horas, enquanto eu procurava
em vão salvá-lo, aquele tambor, sempre impossível de localizar, me aturdia os
ouvidos com seu ruído monótono, intermitente, inexplicável. Então senti que o
medo, o verdadeiro medo, o horrível medo, me penetrava até à medula dos ossos,
diante daquele cadáver querido, naquela depressão vergastada pelo sol entre
quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas
léguas do povoado francês mais próximo, o dobre rápido de um inatingível tambor.
Naquele dia eu compreendi o que é ter medo. Mas houve uma outra vez em que
compreendi melhor ainda…
— Perdão, senhor,
mas o que era esse tambor? — interrompeu o capitão.
— Não sei. Ninguém
sabe. Os oficiais que depararam com esse surpreendente ruído geralmente o
atribuem ao eco aumentado, multiplicado, desmesuradamente insuflado pelas
ondulações das dunas, de um granizo de areia que o vento lança contra uma mata
de ervas secas, pois já se notou que o fenômeno sempre se produz nas
proximidades de pequenas plantas queimadas pelo sol, duras como o pergaminho.
Segundo essa teoria, aquele tambor nada mais seria do que uma espécie de
reflexo ampliado desse som. Mas eu só vim a saber disso mais tarde.
Agora vou lhes
contar minha segunda sensação de medo. Aconteceu no inverno passado, num bosque
do Noroeste da França. O céu estava tão sombrio naquele dia, que a noite caiu
duas horas mais cedo. Era meu guia um camponês, que caminhava ao meu lado por
uma trilha estreita numa floresta de abetos. O vento arrancava dessas árvores
uma espécie de alarido. Por entre as copas das árvores eu via as nuvens que
corriam, como que fugindo de um cataclismo. Às vezes, ante uma forte lufada de
vento, todo o bosque se inclinava no mesmo sentido, com um gemido de
sofrimento, e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e da minha grossa
roupa de lã.
Tínhamos que chegar
à casa de um guarda florestal, para jantar e dormir. Não estava muito distante,
e eu me encontrava ali como caçador. Meu guia às vezes levantava os olhos e
murmurava: “Que tempo triste!” Falou-me sobre as pessoas para cuja casa nos dirigíamos.
O pai havia matado um caçador furtivo, dois anos antes, e desde então andava
preocupado, como que atormentado por uma lembrança. Seus filhos, já casados,
moravam com ele.
A escuridão era
profunda, e eu não via nada ao redor de mim. As ramagens de todas as árvores,
ao agitar-se, enchiam a noite de um rumor incessante. Afinal vi uma luz, e meu
guia chamou a uma porta. Ouvimos gritos de mulheres lá dentro. Logo depois, uma
voz de homem, como que estrangulada, perguntou: “Quem está aí?” Meu guia se identificou,
a porta se abriu e entramos.
A cena que vimos é
impossível de esquecer. Um homem velho, de cabelos brancos e com olhar
arregalado e fixo, como de louco, nos aguardava de pé no meio da cozinha, tendo
na mão uma espingarda carregada. Dois rapazes com pedaços de pau guardavam a
porta. Na obscuridade, percebemos duas mulheres ajoelhadas, com os rostos
voltados para a parede. Identificamo-nos, explicamos o motivo de nossa presença
ali, e então o velho largou a arma e deu ordens para que nos preparassem acomodações.
As duas mulheres continuavam imóveis, então ele me explicou: “Há exatamente
dois anos, numa noite como esta, eu matei um homem. Quando se completou um ano,
ele veio chamar-me, e esta noite eu estou certo de que voltará novamente. Por
isso estamos todos intranquilos”.
Procurei
tranqüilizá-los o melhor que pude, mas intimamente estava satisfeito por ter
chegado exatamente naquela noite e presenciar aquele espetáculo de terror
supersticioso. Contei algumas histórias, e acabei por acalmá-los quase por
completo.
Perto da lareira,
um cachorro velho e quase cego — um desses cães que nos lembram alguma pessoa
conhecida — dormia com o focinho entre as patas. Fora, a tormenta açoitava a
choupana. Por uma estreita vidraça eu via passar, projetadas por grandes
relâmpagos, as sombras de árvores agitadas pelo vento. Apesar dos meus
esforços, aquela gente estava dominada por um terror profundo. Cada vez que eu
parava de falar, todos os ouvidos estavam atentos ao menor ruído. Cansado
desses temores imbecis, eu já ia recolher-me quando o velho pulou da cadeira e
pegou de novo a espingarda, balbuciando com voz trêmula: “Aí está! Aí está! Já
o estou ouvindo!”
As duas mulheres
voltaram a cair de joelhos, cobrindo os rostos, e os filhos pegaram de novo os
seus paus. Já ia eu tentar novamente tranqüilizá-los, quando o cachorro
despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, olhando para a
lareira com seu olhar quase apagado, e lançou um desses ganidos lúgubres, que
fazem estremecer os caminhantes quando cruzam de noite locais ermos. Todos os
olhos se voltaram para o animal, que permanecia agora imóvel sobre as patas,
como obcecado por uma visão. O cão se pôs a ganir frente a algo invisível,
desconhecido, espantoso sem dúvida, pois todo seu pelo estava eriçado. Lívido,
o guarda gritou: “Ele o está farejando! Está farejando! Ele estava exatamente
aí, quando o matei!”
As mulheres, como
loucas, fizeram coro aos ganidos do cachorro. Um grande calafrio me percorreu a
espinha. A visão do animal naquele lugar, naquela hora, em meio a pessoas
apavoradas, era algo horrível. Durante uma meia hora o cão ganiu sem mover-se.
Um medo espantoso me ia penetrando. Medo de quê? Lá sei eu. Era medo, pura e
simplesmente.
Permanecemos
imóveis, lívidos, à espera de um acontecimento horrendo, com o ouvido atento, o
coração agitado, transtornados ao menor ruído. O cachorro se pôs a dar voltas
ao redor da cozinha, farejando as paredes, sem cessar de gemer. O animal nos
punha loucos. Então o meu guia se lançou sobre ele, numa espécie de paroxismo
de terror furioso, agarrou-o, abriu uma porta de trás, que dava para uma
espécie de cercado, e o lançou para fora da casa.
O cachorro se calou
logo, e permanecemos algum tempo envoltos num silêncio ainda mais terrível. De
repente, todos tivemos uma espécie de sobressalto: algo deslizava contra a
parede externa, em direção ao bosque. Depois passou junto à porta, que pareceu
apalpar com mãos trêmulas. Novo silêncio durante uns dois minutos, que nos
deixou aterrorizados. Depois voltou, roçando sempre a parede, como uma criança
com suas unhas. Subitamente apareceu junto à vidraça uma cabeça branca, com
dois olhos luminosos como os das feras, e emitiu um gemido — um murmúrio como
de quem se lamenta.
Nesse momento se
ouviu um ruído formidável. O velho havia disparado sua arma, e em seguida os
filhos se precipitaram para a vidraça, cobrindo-a com o tampo de uma grande
mesa que reviraram. Com o estrépito do inesperado disparo, senti tal angústia
no coração, na alma e no corpo, que me imaginei prestes a perder os sentidos,
disposto a morrer de medo. Continuamos ali até o amanhecer, incapazes de
mover-nos, de dizer uma palavra, crispados, desvairados. Ninguém se atreveu a
abrir a porta antes de entrever alguma claridade fora, pelas frestas das
madeiras.
Ao lado do muro,
junto à porta, jazia o corpo do velho cachorro, com o focinho desfeito por uma
bala. Havia saído do cercado, e procurara abrir alguma passagem junto à porta.
Naquela noite eu
não corri nenhum perigo. Mas preferiria voltar a enfrentar todos os riscos mais
terríveis que já enfrentei, para não ter de viver aquele único minuto em que o
tiro foi disparado na cabeça que surgiu na vidraça.
Guy de Maupassant
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