Colaboração
de Marcio Leal
(Por Cacá Diegues)
João Ubaldo Ribeiro foi um presente que Glauber Rocha me deu
Eu não sou burro, mas às vezes posso
ser bem lento. Quando o jornal me propôs passar a escrever toda semana, em
outro dia e em outra página, não me ocorreu que estaria ocupando o espaço que
foi do grande João Ubaldo Ribeiro. A ficha só me foi cair quando já tinha
entregue meu artigo da semana e um repórter me telefonou para perguntar como me
sentia substituindo o mestre. Quase entrei em pânico.
Já disse que João Ubaldo Ribeiro foi
um presente que Glauber Rocha me deu, quando fui à Bahia pela primeira vez.
Glauber me havia feito uma lista de nomes que devia procurar, gente sem a qual
eu não ia entender nada. Ele sublinhou o nome de João Ubaldo e me disse: “Esse
você tem que encontrar antes de ver qualquer outra pessoa.”
Encontrei-o na Redação do “Jornal da
Bahia”, onde trabalhava. Nossa primeira conversa não foi muito longe, a hora
não era própria, ele tinha que fechar o jornal. Mas foi suficiente para me
impressionar. Ele não era um sedutor ostensivamente afável como os outros
baianos que eu conhecia, não se impunha pela retórica, pelo envolvimento, pela
exaltação das ideias. Ao contrário, me perturbara ter de falar mais do que ele
e obter, como resposta, frases curtas num tom de baixo profundo que pareciam
esconder uma ironia da qual eu não era capaz de me dar conta.
Mais tarde, conheci melhor a sedução
de sua fala sempre costurada por risada única, poderosa, irresistível,
território de ensaio de sua literatura explosiva, humanista e barroca, mesmo
quando o assunto era sério. Era como se ele estivesse experimentando suas
ideias e a maneira de articulá-las em texto, enquanto nos escondia, sob o
disfarce de permanente humor, um terno e lacônico pessimismo.
Adoro a epígrafe de “Viva o povo
brasileiro”, esse monumento da literatura em língua portuguesa: “O segredo da
Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.” Uma versão
solar do pensamento de Gilles Deleuze, a propósito de Proust: não existe a
verdade, só interpretações.
Ubaldo ama seus personagens e as
circunstancias de onde eles brotam. Mesmo quando os critica, se identifica com
eles pelo afeto, sabe que tudo em volta um dia os sufocará em nome de valores
nem sempre superiores. Se eles desaparecem, ficarão pelo menos suas histórias
para mostrar que o mundo de fato poderia ter sido muito melhor. Como está em
“Viva o povo brasileiro”: “(...) sabia que as pessoas que têm excessiva certeza
de que há um só caminho e uma só verdade, verdade que lhes é inteiramente
conhecida, são perigosas e propensas a todo tipo de crime. Saber da verdade e
querer impô-la aos outros, num mundo onde tudo muda e tudo se encobre por toda
sorte de aparências, é uma grave espécie de loucura.”
No “Livro de histórias” (reeditado
como “Já podeis da pátria filhos”), me encantam personagens pícaros como Luiz
Cuiúba e Robério Augusto, Vavá Paparrão e Vanderdique Vanderlei, além daquele
que era simplesmente Deus, impaciente e irascível, a caminhar por feira popular
do Recôncavo. Personagens que voltam em suas crônicas dominicais, como o
terrível Zecamunista.
Quando Jorge Amado e Sonia Braga me
propuseram a adaptação de “Tieta do Agreste” para o cinema, não pensei em
nenhum outro roteirista. Telefonei para Jorge, seu mestre e compadre, a fim de
obter sua bênção que foi imediata, apesar da ressalva: “A escolha não podia ser
melhor, mas duvido que João Ubaldo aceite.”
Prevenido da dificuldade, telefonei
para Ubaldo cheio de dedos, dizendo que precisava vê-lo para pedir-lhe favor
pessoal, caridade que só ele poderia me prestar, em momento de extrema
necessidade. Um caso de vida ou morte. Fui na mesma noite à sua casa, ele me
recebeu preocupado e tenso, me pediu para ir direto ao assunto. Quando enfim
revelei do que se tratava, Ubaldo deu um suspiro de alívio: “Ufa! Do jeito que
você me falou no telefone, pensei que fosse me pedir um rim para transplante!”
Juntos fizemos ainda “Deus é
brasileiro”, adaptação de seu conto “O santo que não acreditava em Deus”. O
filme se tornou um sucesso e acabara de ser lançado quando Ubaldo me telefonou
empolgado: “As velhinhas do Leblon estão me reconhecendo e até me cumprimentam
na rua!”
Paradoxal e iluminado sucessor de
Machado de Assis e de Jorge Amado, Ubaldo não se contentou em conhecer profundamente
o Brasil profundo, mas o reinventava sempre a seu modo. Mais do que uma
literatura para o país, João inventou um país para a literatura.
Cacá
Diegues é cineasta
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