Texto de Luiz Carlos Facó
Os
dias, no começo do decênio dos anos 40, corriam lânguidos, quase modorrentos na
velha província da Salvador. Viam-se, ainda, pelos suas ruas estreitas e
tortuosas, carregando típicos balaios e tabuleiros, vendedores a mercadejar
seus produtos, os mais diversos, como alféloas, acaçás de milho e leite
enrolados em folhas de bananeiras, quebra-queixos, pães, sorvetes
acondicionados em catimploras, ovos, verduras e frutas. Todos, sem exceções, oferecidos
por criativos mercadores cantando refrãos sugestivos, quando não hilários e
picantes – “imbú”, sete a dúzia, comprem ovos de fora. Sem possibilidade de
esquecermos as baianas de saias rodadas, exibindo panos da costa coloridos,
turbantes ajeitados, à perfeição, colares de contas dos seus santos e rituais,
carregando tabuleiros repletos de iguarias da terra: o acarajé, o abará, a
amoda, e o bolinho de estudante, a merenda de todos colegiais, que irritavam a
pobre Rosinha, intrigante baiana postada à porta do Colégio Marista, pela
petulância da nomeação do pedido: - eu quero uma “punheta”.
Resmungando,
corrigia ela. - Na verdade, você deseja um bolinho de estudante. E,
acrescentava, morrendo de rir, - se fosse atender a todos esses pedidos da
gurizada, minha mão já estava imprestável. Haja “punheta”! Mas, é dela que
vivo. Bendita seja a minha mão que não esmorece.
Quanta originalidade, imensa
inocência.
Paralelamente,
sírios e libaneses, confundidos na cidade como da mesma origem, ou como
resultantes de um caldeamento étnico, repicando matracas e soprando os realejos
que portavam, mascateavam roupas, utensílios domésticos, e uma enorme variedade
de quinquilharias. Desde relógios, que paravam depois de funcionar trinta a 40
minutos depois de usados, facas sem fio cortante, tesouras sem pontas, peças
para máquinas de costura Singer, que não funcionavam. Trocá-las, nem pensar. Quando
descobertos, iam agir em outras áreas, em outras praças.
Tocando
triângulo, também passavam os vendedores de tabocas os amoladores de facas,
facões e de tesouras – italianos, na maioria.
Vendedores
de crustáceos e peixes da Ilha de Itaparica, envoltos em enorme quantidade de areia,
adulteravam o peso sempre para menos, através de balanças rudimentares e
corrompidas que traziam consigo. Nas
mãos deles, mesmo a medida mais utilizada na época, o litro, também ficava
aquém das especificações oficiais. Eram uns artistas. Foi um época em que tudo
girava em desfavor dos menos aquinhoados.
Na
verdade, eles constituíam o topo de uma pirâmide inversa, por ser a maioria mais
significativa daquela sociedade.
Vale
enfatizar, eram poucas as geladeiras residenciais. Também escassos os rádios.
Quem os possuía eram considerados ricos.
Como uma sociedade podia viver assim?
Tudo
fedia a velho. O cheiro bom da modernidade, talvez só se pudesse sentir na Rua
Chile. Abrigo de livrarias, cafés, restaurantes, em lojas que vendiam artigos
mais elaborados, quiçá finos. Por isso, para lá acorriam às senhoras quer para
se exibirem ou no sentido de comprarem. Também, havia a frequência massiva dos negociantes,
doutores, políticos, fazendeiros, abastados coronéis, jornalistas, intelectuais,
para bate-papos informais ou para fofocar, na verdade para falar da vida
alheia. Triste Salvador. Era de dar dó.
Só
uma medida dava conta da pequenez social da nossa terra, naquela quadra: a
mediocridade. Não por acaso, outro vocábulo pode ser bem posto para
qualificá-la: desânimo. Deixa estar para ver como fica.
Em
1945, Otávio Mangabeira é eleito governador pelo voto popular, após a
famigerada ditadura imposta por Getúlio Vargas. Como todas as ditaduras, odiosa
e inconsequente.
Foi
a partir daí que um sopro de operosidade passou a oxigenar as artérias
deterioradas da nossa vetusta terra e as dos seus filhos. Os passos miúdos que
imprimíramos nas nossas vidas, por quase duas décadas, foram acelerados, quase
transformados em saltos. Seguindo o exemplo dos do governador que estugara os
seus, no sentido de recuperar o tempo perdido, e colocar a Bahia na trilha do
desenvolvimento, principalmente, Salvador que completaria em 1949 seu IV Centenário.
Daquela
azáfama, vimos surgir o início das obras de abertura da Avenida Centenário, as
do bairro da Liberdade, do Tororó, do Rio Vermelho, Amaralina – Itapoan, o
viaduto da Sé, o Hotel da Bahia, o estádio da Fonte Nova, o Fórum Rui Barbosa
que abrigaria o Poder Judiciário, em cuja cripta estão depositados os restos
mortais do mais ilustre homem público baiano.
O mais importante, porém, foi o clima de liberdade que o povo passou a
desfrutar.
Acaso
não tenha sido a década mais importante da história baiana, ela, sem dúvida,
deu o pontapé inicial para a mudança de ânimo dos baianos, seus usos e
costumes.
Mesmo
assim, apesar daquelas odiosas circunstâncias, ela nos dá saudades. Ao menos
dos seus tipos faceiros, das mulatas rebolando suas bundas no subir e descer
ladeiras, dos idosos aposentados, despreocupados, jogando partidas de dominó em
frente ao Relógio de São Pedro e na Praça da Piedade, dos casarões antigos ao
longo da Vitória, da Avenida Sete e da Ladeira de São Bento, demolidos em nome
do progresso, dos bondes que nos carregavam de um ponto a outro da cidade, e
das nossas festas típicas as quais sempre terminavam em famosos arrasta-pés,
com direito, ao final, a doses generosas de licores de jenipapo e maracujá.
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