quinta-feira, 23 de outubro de 2014

“AMIGO VELHO”

 Orlando Spínola

Crônica de Luiz Carlos Facó


Fez-se o tempo, mas ele não apagou da minha memória uma figura exponencial da nossa terra, de quem guardo belas recordações e imensas saudades.
Conheci-o, eu ainda menino, quando ele e meu pai se elegeram Deputados Estaduais. Ambos jovens, temperados pelas lutas políticas contra o regime getulista. Daquela comunhão de ideais vivificou, entre ambos, uma fraterna amizade. Tal vínculo se estendeu às nossas famílias. Éramos como argolas, elos de uma mesma corrente. Seu nome? Orlando Ferreira Spínola.
Magro de estatura mediana, tez morena, olhos verdes, queixo saliente, dono, prematuramente, de uma vasta cabeleira branca, particularizava-se pelo modo elegante de vestir e pela maneira carinhosa como tratava amigos e eleitores. Aos do sexo masculino alcunhando-os, sem exceções, de “amigo velho”, e ao feminino de princesa, ou no diminutivo, se dirigisse o tratamento a alguma jovem.
Acompanhei a sua brilhante trajetória política por longos 36 anos. Naquele período tornou-se  Presidente de todas as comissões da casa legislativa, seu presidente em diversas ocasiões, líder do governo, líder da oposição, governador do Estado, interinamente, graças, sobremodo, a grande capacidade que possuía em tecer, aglutinar, congregar, conduzir.

Na medicina, sua primeira atividade profissional, aprendeu o necessário para não matar nenhum paciente, quem sabe, até curá-lo. Na política, entretanto exercitava como hábil cirurgião as mais delicadas operações. Costurava acordos quase impossíveis, e receitava os remédios adequados à obtenção dos objetivos que buscava. Todos, visando o bem comum. Era o que classifico um político romântico, muito distante dos atuais, com as ralas exceções, pois conduzia suas atividades sem visar vantagens pessoais, mas prover sua terra de progresso e a sua gente, de melhores condições de educação, saúde, alimentação e moradia. Não dispunha de uma cultura sofisticada. Suas leituras se resumiam aos romances policiais, onde despontavam os nomes dos autores Maurice Leblanc, Agatha Cristie e outros menos conhecidos. Entretanto, possuía uma inteligência aguçadíssima, fulgurante, revelada pelo infatigável cuidado de fazer discursos bem elaborados, substantivos, festejados e aplaudidos pela acessibilidade, por sinalizarem a sua sagacidade como parlamentar e uma aguda capacidade de comunicação.
Ao assomar qualquer tribuna transformava-se num leão. Todos os seus sentidos vibravam a um só tempo. Vê-lo usar da palavra era um prazer. Os adversários temiam-no, seus correligionários respeitavam-no. Poucos se dispunham aparteá-lo, pois recusam tornar-se alvos de suas chacotas e verrinas, feitas de modo geral na hora, através de epigramas.
Mesmo assim, jamais fez um só inimigo, embora suas cutiladas pudessem produzir mal estar e propiciar um entrevero de grandes proporções.
Alguns episódios que poderiam resultar em desentendimentos, masque foram digeridos diplomaticamente pelos atingidos, lhes relato, amigos leitores, sem maiores pinturas, sequer frescuras.
Ao chegar pela primeira vez à Assembleia Legislativa, como deputado Constituinte em 1946, Orlando Spínola viu, entre seus pares, temido e apontado como grande orador, fato que na Bahia não se constitui em exceção, mas é atributo que, mesmo assim, desperta em todos curiosidade e profunda reverência. Vivia Orlando, por isso mesmo, prelibando, ansiando o instante de ver aquele papa do jornalismo local assomar a tribuna. E não demorou muito para que a tão aguardada estreia se fizesse.
Lamentável início. Ela se constituiu num enorme fiasco. O famoso jornalista como tribuno decepcionara. Tal decepção caiu sobre Orlando como um raio fulminante, que não podendo conter sua veia satírica, reagiu àquele desgosto com a divulgação do seguinte quarteto:
“Permite que eu ouse
um bom conselho lhe dar:
fique sentado na pose
e jamais ouse falar.”
Doutra feita, um jovem deputado estadual numa sessão de Comissão da Assembleia Legislativa, chamou Orlando Spínola, enquanto discursava, num aparte, de “velho superado”. A réplica do ferino orador foi incontinente e arrasadora:
“Chamou-me de superado
numa agressão incivil
antes um velho acabado
do que um moço imbecil.”
A propósito do lançamento do livro O Reduto, de autoria do excepcional jornalista, escritor, político, seu colega e amigo, Wilson Lins, abordando um período da vida baiana, em que jagunços e coronéis dominavam o interior do estado, a vocação satírica de Orlando se fez presente:
“Duas coisas esmiúço
nesta terra de terror,
a bravura do jagunço
e a coragem do leitor”
Sem a grandeza que merecia, acho que pude definir um pouco do meu saudoso amigo Orlando, a quem incluo entre as expressivas personalidades políticas da nação nos últimos 60 anos. Como João Mangabeira, Gustavo Capanema, Afonso Arinos de Mello Franco, Raul Pila e tantos outros que passaram por nossas vidas nos seduzindo com suas qualidades, dentre as quais imperavam a ética, a moral e a absoluta compreensão de que ser político é antes de tudo ser um servidor público honesto.
Resta-me, após tantas digressões, o gosto bom, o sabor de ter falado acerca de um amigo tão próximo, cuja figura serve-me para contestar àqueles que se arvoram o direito de dizer que não houve bons e brilhantes políticos no período republicano após o Estado Novo. Assertiva fluida, sem nenhum respaldo histórico, que me leva a assegurar que o bom político não demanda uma formação culturalmente refinada e abrangente para exercitar com firmeza o mandato outorgado pelo povo. Bastam-lhe seriedade, bons propósitos, inteligência, conhecimento dos problemas sociais, honestidade, ideal e dedicação. Atributos que a Orlando sobravam.

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