sexta-feira, 3 de outubro de 2014

MARIA DE LOURDES BURGOS

Carta

Salvador, 15 de setembro de 2005
Foi médica ginecologista, professora emérita de medicina da UFBA, média de D. Flor por obra e graça de Jorge Amado no livro “D. Flor e seus dois maridos”.
Por Luiz Calos Facó


Este domingo escolheu roupa nova para vestir. Engalanado, desfila garboso, sem hesitações, numa passarela iluminada pelo sol. Dá-nos mostra da sua leveza, graciosidade e incomum deslumbre. Num espetáculo que transcende a imaginação do mais talentoso e sensível artista. Por isso mesmo, incapaz de concebê-lo ou retratá-lo. Sinto-me feliz por presenciar este raro espetáculo, de pássaros adejando e pipilando confronte minha janela, criando cirandas para coroá-lo único. Árvores balouçando como se o reverenciassem. Nas encostas, as flores silvestres, homenageando-o, vicejam em cores vibrantes. Ouro, prata, azul, púrpura. Tantas quantas as que enfeitam a vida. A terra, úbera da criação, em aís de aprazimento, deixa exalar seu gostoso e inconfundível olor. Um festival primaveril que se antecipa, prematuramente, à partida do inverno que agoniza. É criança chegando. Prenúncio de tempos felizes, que tonifica jovens e aquece idosos. Profetizam haver lugar, no mundo, para a parcimônia, o desarmamento dos espíritos, a compreensão, a paz. Para a consubstanciação da crença em Deus nos nossos corações. A comunhão das religiões. Abrigo seguro para guardar valores éticos e morais. Ser tempo de arrefecimento de disputas e de ódios. Ser período de acasalamento. Ser o momento do amor.

É neste dia, retrato por inteiro da magnificência do Criador, que faço questão de escrever-lhe, aproveitando o meu espírito movendo-se do ócio execrável à alegria produtiva, com disposição para cavalgar o alazão das ideias. Oportunidade única, impossível de se descartar sob pena de ser tomado pelo remorso.
Sua delicada carta, translúcida como sua alma contendo poesias de Neruda e Quintana, teve o condão de tornar-me mais feliz. Ela é uma síntese do seu caráter firme, correto, pródigo em atenções para com os amigos, sobremodo, da lealdade. A constatação de que você é uma escritora madura. Consagrada. Pronta para voos mais largos.  Seu estilo, simples e enxuto, porém envolvente, revela a grandeza do seu coração. Confesso que fiquei tentado em apropriar-me dele. No entanto, verifiquei, de imediato, ser impossível. Seus predicados escasseiam em minha pessoa. Como, então, pretender imitá-la?
Terminei o livro “Turbilhão de Lembranças”, cujo lançamento se dará até o fim do ano, e já preparo um novo, ao qual dei o título de “Contos em Cantos Saudosos”. Já tenho muito material para ele. Inclusive, um relato sobre um médico que clinicava em Gandu, município da Bahia. Não um médico do seu jaezou com as qualificações do seu marido Jair. Era um médico mais preocupado com o próprio enriquecimento do que com o bem-estar e a saúde dos seus pacientes. Essa história que, de há muito, percorrer as sinuosidades do me cérebro, escondendo-se desse presumível escritor, foi afinal aprisionada, colocada no papel e dela lhe dou notícia. Veja-a, em anexo. Lembro-lhe, contudo, que este é o seu primeiro rascunho. Diante disso, não se faça rigorosa no seu julgamento.
Não vou mais furtar seu precioso tempo com as minhas arengas, embora tivesse vontade de fazê-lo. Você bem sabe como é difícil encontrar um ombro amigo que me aconchegue, com carinho, como acontece com o seu! Gostaria de aproveitá-lo mais. Porém, desta vez, vou poupá-la.
Com beijos respeitosos e a minha mais profunda admiração, desejo-lhe
Paz e Bem!

Facó (LC)

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