Biblioteca de Literatura brasileira
do blog do Facó
Conto de Monteiro Lobato
(Foi observada a ortografia original)
Extraído do Livro URUPÊS
Conversavam
no trem dois sujeitos.
Aproximei-me
e ouvi:
-
“Anda a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimo Guys...
-
“Poe que Maupassant e não Kimplig, por exemplo?
-
“Porque a vida é amor e a arte de Maupassant é simplesmente um enquadramento
engenhoso de amor e da morte.
Mudam-se
os cenários, variam os atores, mas a substância persiste – o amor sob a única
face impressionante, a que culmina numa posse violenta de fauno incendiado de
luxuria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto ato, o epílogo
fisiológico. A morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a
jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico.
-
“?
-
“Não te rias. Não componho frases. Justifico-me. Na vida só deixamos de ser uns
palhaços inconscientes a mentirmos à natureza, quando esta, reagindo, põe a nu
o instinto hirsuto ou acena o “basta” final que recolhe o mau ator ao pó. Só há
grandeza, em suma, e “seriedade”, quando cessa de agir o próprio jogral que é o
homem feito, guiado e dirigido por morais, religiões, códigos, modas e mais postiços de sua
invenção – e entre em cena a natureza bruta.
- “ A propósito de quê tanta filosofia, como
este calor de janeiro?...
O
comboio corria entre S. José e Quirino. Região arrozeira em plena faina do
corte. Os campos em séga tinham o aspecto de cabelos louros tosados à
escovinha. Pura paisagem europeia de trigais.
A
espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, ou rápida, se
perto. Vultos femininos de cestas à cabeça, que paravam a ver passar o trem.
Vultos de homens amontoando feixes de espigas para a malhação do dia seguinte.
Carroções tirados a bois recolhendo o cereal ensacado. E como caia a tarde e a
Mantiqueira já era uma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimadura
evanescente do azul, vimos certo trecho o original do “Angelus”...
Já
te digo a propósito de que vem tanta filosofia.
E,
enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito,
apontando um velho saguaragí avultado à margem da linha e de logo sumido para
trás, disse:
-
“A propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no “meu conto de
Maupassant”.
-
Conta lá se é curto.
O
primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de
estilo. Sem transição foi logo narrando.
-
“Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo
mal encarado e ruim. Bebia, jogava, e por vária vezes andou às voltas com as
autoridades. Certo dia – eu era delegado de polícia – uns piraquaras vieram
dizer-me que em tal parte jazia um “corpo morto” de uma velha, picado à foice.
Organizei
a diligencia e acompanhei-os. – “É lá naquele ponto saraguají”, disseram ao
aproximarem-se da arvore que passou. Espetaculo repelente! Ainda tenho na pele
o arrepio do horror que me ocorreu pelo corpo ao dar uma topada balofa num
corpo mole. Era a cabeça da velha, semi-oculta sob folhas secas. Porque o
malvado a decepara do tronco, lançando-a a alguns metros de distancia.
Como
por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o. havia contra ele indícios
vagos. Viram-no sair com a foice, a lenhar na tarde do crime.
Entretanto,
por falta de provas foi restituído à liberdade, mau grado meu, pois cada vez
mais me capacitava da sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo – e
negue-se valor ao pressentimento! – o miserável matador da pobre velha.
-
“Que interesse tinha ele no crime?
-
Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda
gente. Não obstante, eu o trazia de olho, certo de que era o criminoso.
O
patife não demorou muito, transpassou o negocio e fugiu. Eu, de meu lado,
deixei a policia e do crime, só me ficou, a sensação da topada mole na cabeça
da velha.
Anos
depois o caso reviveu. A policia obteve indícios veementes contra o italiano,
que andava por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do
xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá, onde o júri
iria decidir da sua sorte.
-
“Os teus pressentimentos...
O
sujeito sorriu com malicia velhaca, e continuou.
- “Não
resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem no Braz, e veio de cabeça
baixa, sem proferir palavra, até São José; daí por diante (quem o conta é um
soldado da escolta) metia amiúde os olhos pela janela, preocupado em descobrir
qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o sarigí. Nesse ponto armou um
pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crânio
rachado, a escorrer a couve-flor dois miolos. Perto da árvore fatal.
-
“O remorso!
-
“Está aqui o “meu conto de Maupassant”. Tive a impressão dele nas palavras do
soldado da escolta: veio de cabeça baixa até São José, d’aí por diante enfiou
os olhos na janela até enxergar a arvore, e pinchou-se”. No progresso ingênuo
da narrativa li toda tragédia intima daquele cérebro, senti todo drama
psicológico que nunca será escrito...
-
“É curioso! Comentou o outro pensativamente.
Mas
o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada
lentidão:
-
“O curioso é que mais tarde, um dos piraquaras denunciadores do crime, e filho
da velha, preso por picar um companheiro a foiçadas, confessou também o
assassinato da velhinha, sua mãe...
-
“?
-
“Meu caro, aquele pobre Oscar Fingall O’ Flahertie Wills Wilde disse muita
coisa, quando disse que a vida sabe melhor evitar a arte do que a arte sabe
imitar a vida”.
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