quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MEU CONTO DE MAUPASSANT

Biblioteca de Literatura brasileira do blog do Facó

 Conto de Monteiro Lobato
(Foi observada a ortografia original)
Extraído do Livro URUPÊS


Conversavam no trem dois sujeitos.
Aproximei-me e ouvi:
- “Anda a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimo Guys...
- “Poe que Maupassant e não Kimplig, por exemplo?
- “Porque a vida é amor e a arte de Maupassant é simplesmente um enquadramento engenhoso de amor e da morte.
Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a substância persiste – o amor sob a única face impressionante, a que culmina numa posse violenta de fauno incendiado de luxuria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto ato, o epílogo fisiológico. A morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico.

- “?
- “Não te rias. Não componho frases. Justifico-me. Na vida só deixamos de ser uns palhaços inconscientes a mentirmos à natureza, quando esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto ou acena o “basta” final que recolhe o mau ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e “seriedade”, quando cessa de agir o próprio jogral que é o homem feito, guiado e dirigido por morais, religiões,  códigos, modas e mais postiços de sua invenção – e entre em cena a natureza bruta.
 - “ A propósito de quê tanta filosofia, como este calor de janeiro?...
O comboio corria entre S. José e Quirino. Região arrozeira em plena faina do corte. Os campos em séga tinham o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem europeia de trigais.
A espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, ou rápida, se perto. Vultos femininos de cestas à cabeça, que paravam a ver passar o trem. Vultos de homens amontoando feixes de espigas para a malhação do dia seguinte. Carroções tirados a bois recolhendo o cereal ensacado. E como caia a tarde e a Mantiqueira já era uma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimadura evanescente do azul, vimos certo trecho o original do “Angelus”...
Já te digo a propósito de que vem tanta filosofia.
E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito, apontando um velho saguaragí avultado à margem da linha e de logo sumido para trás, disse:
- “A propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no “meu conto de Maupassant”.
- Conta lá se é curto.
O primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição foi logo narrando.
- “Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo mal encarado e ruim. Bebia, jogava, e por vária vezes andou às voltas com as autoridades. Certo dia – eu era delegado de polícia – uns piraquaras vieram dizer-me que em tal parte jazia um “corpo morto” de uma velha, picado à foice.
Organizei a diligencia e acompanhei-os. – “É lá naquele ponto saraguají”, disseram ao aproximarem-se da arvore que passou. Espetaculo repelente! Ainda tenho na pele o arrepio do horror que me ocorreu pelo corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da velha, semi-oculta sob folhas secas. Porque o malvado a decepara do tronco, lançando-a a alguns metros de distancia.
Como por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o. havia contra ele indícios vagos. Viram-no sair com a foice, a lenhar na tarde do crime.
Entretanto, por falta de provas foi restituído à liberdade, mau grado meu, pois cada vez mais me capacitava da sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo – e negue-se valor ao pressentimento! – o miserável matador da pobre velha.
- “Que interesse tinha ele no crime?
- Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda gente. Não obstante, eu o trazia de olho, certo de que era o criminoso.
O patife não demorou muito, transpassou o negocio e fugiu. Eu, de meu lado, deixei a policia e do crime, só me ficou, a sensação da topada mole na cabeça da velha.
Anos depois o caso reviveu. A policia obteve indícios veementes contra o italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá, onde o júri iria decidir da sua sorte.
- “Os teus pressentimentos...
O sujeito sorriu com malicia velhaca, e continuou.
- “Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem no Braz, e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra, até São José; daí por diante (quem o conta é um soldado da escolta) metia amiúde os olhos pela janela, preocupado em descobrir qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o sarigí. Nesse ponto armou um pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crânio rachado, a escorrer a couve-flor dois miolos. Perto da árvore fatal.
- “O remorso!
- “Está aqui o “meu conto de Maupassant”. Tive a impressão dele nas palavras do soldado da escolta: veio de cabeça baixa até São José, d’aí por diante enfiou os olhos na janela até enxergar a arvore, e pinchou-se”. No progresso ingênuo da narrativa li toda tragédia intima daquele cérebro, senti todo drama psicológico que nunca será escrito...
- “É curioso! Comentou o outro pensativamente.
Mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada lentidão:
- “O curioso é que mais tarde, um dos piraquaras denunciadores do crime, e filho da velha, preso por picar um companheiro a foiçadas, confessou também o assassinato da velhinha, sua mãe...
- “?
- “Meu caro, aquele pobre Oscar Fingall O’ Flahertie Wills Wilde disse muita coisa, quando disse que a vida sabe melhor evitar a arte do que a arte sabe imitar a vida”.

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