(Uma história de Salvador, das repúblicas
estudantis)
Por Paulo Ludovico
Corriam os idos de 1977. Morávamos no Centro de Salvador, num pensionato
que se dividia em dois locais. Um deles ficava num prédio situado na Rua Areal
de Cima. Eram um apartamento de três quartos e (para nosso desespero) apenas um
banheiro. Ficávamos em um desses quartos eu, Hermison Marques (contabilista em
Conquista) e o velho Domingos, o “Domingão”. Foi uma convivência de cerca de
dois anos que, até hoje, tenho saudades. O outro alojamento, na Rua Areal de
Baixo (a uns 200 metros daquele onde passávamos a maior parte do tempo)
tratava-se de uma casa, a de número 7, onde morava a cúpula diretiva daquela
instituição, ou seja, a dona do pensionato, Dona Lourdes e suas filhas (todas
carecidas do atributo beleza, diga-se de passagem, mas que tínhamos de dizer
tratar-se de “gatas”, para gozarmos de certos privilégios à mesa). Nesse local,
o do Areal de Baixo, era onde fazíamos as refeições. Aliás, os pensionistas que
moravam no apartamento do Areal de Cima só iam ali para as refeições e pegar as
cartas que chegavam de suas respectivas cidades (as cartas eram o nosso meio de
comunicação, não havia internet – facebook, orkut, twiter e outras
parafernálias do gênero). No Areal de Cima, além do que já mencionei, moravam
Jornando Vilas Boas (que foi prefeito de Bom Jesus da Serra), José Brasil, mais
uns adolescentes de Jequié e um sujeito belga (não me lembro o nome). Ah! Esse
belga, um tipo alto (mais de 1,90m de altura) e forte.
Era impossível não sentir. O “bicho” fedia da cabeça aos pés. Chulé,
amigo, chulé! Mas, deixemos o belga pra lá, ele não é protagonista dessa nossa
história.
Já no Areal de Baixo, número 7, moravam uns pensionistas que, até hoje,
tenho lembranças de alguns. O conquistense e velho flamenguista Raimundo
Baiano, Jackson (irmão do baterista Zé Maria, um dos primeiros cabeludos de
Conquista), Piolho, craque de bola na década de 70, que jogou no Conquista e no
Bahia (fez, contra o Vitória, o gol do título do Bahia em 1976, se não me falha
a memória). Dizem que, ele só não foi jogar no Vasco ou no Cruzeiro, que
insistiam e contratá-lo, porque a família não deixou. Outro colega nosso era
Clóvis Primo, irmão de Marcos Primo, os dois, filhos de Zé Isidoro, que foi proprietário
de um Posto de Gasolina, na Rio – Bahia. Quem também se hospedava por lá era
Tidão (ex-jogador do antigo Conquista, Fluminense de Feira etc.). E eram esses,
os protagonistas, entre outros de diversas localidades, que faziam o dia a dia
do pensionato de Dona Lourdes, onde passamos bons e divertidos períodos de
nossas vidas.
Quando nos reuníamos para as refeições era uma festa. Uns, sentados,
tentavam, a todo custo, engolir aquela gororoba que serviam, dizendo ser
feijão, macarrão (de vez em quando um deles até saia andando do prato), carne
(bovina, peixe ou frango que, de tão duro, achávamos que se tratava de galo de
briga, comprado em rinhas clandestinas) e arroz. Ah! O arroz! Aquilo parecia
tudo menos com o arroz soltinho (esses de propaganda de TV), que estávamos
acostumados a comer em casa. Era uma pasta única! Quando enfiávamos a colher e
puxávamos, o arroz vinha todo do prato. Nem “a pau” (e com o maior dos
esforços) desgrudavam uns dos outros. Servir uma quantidade do grude, só
cortando com a serra do pão. Existia um pensionista, de Jequié, que tratávamos
pela alcunha de Zé Gaveta (nunca consegui descobrir o porquê do apelido) e que
era meio “gozador”. Pois bem, depois de uma acalorada discussão (fruto de uma
“gozação”) com aquele belga brigão, Zé Gaveta, repentinamente, apodera-se de
uma arma mortal (o prato de arroz) e a arremessa em direção ao fedorento belga
que, numa agilidade felina, se abaixa. Aí meu amigo é que sentimos o poder de
cola (super bonder era fixinha) daquele arroz de dona
Lourdes. O danado, com prato e tudo, colou na parede e, depois de certo tempo,
é que começa a escorregar, devargazinho, devargazinho, pela parede, sem se
desgrudar um do outro e todos do prato. Cheguei a pensar como seria o
comportamento (metabolicamente falando) daquela grudenta “iguaria”, no interior
de cada um de nós. Quando aquele grupo (12 pessoas, a mesa era grande) acabava
de almoçar (almoçar é apenas uma força de expressão, era comer mesmo), o outro
grupo, que estava em pé, em volta da mesa (como quem perua, cercando uma mesa
de baralho) sentava-se para travar a batalha. Numa dessas oportunidades, um
desavisado de nossos colegas de pensão, inaugurando suas atividades
alimentícias naquele local, vai com tanta sede ao pote que engasgou por causa
da imensa quantidade daquela “cola” (o arroz) que conseguiu levar à boca.
Nunca, até hoje, vi, novamente, alguém com o olho tão “esbugalhado”, como o
engasgado pensionista a que me refiro. Levaram o danado pro hospital, único
local onde seria possível “extrair” toda aquela grudenta obstrução.
E assim caminha o nosso pensionato, palco de muitas estória e histórias
que enriquecem as lembranças de quem viveu lá. Essa que vou contar hoje é das
verdadeiras, aliás, das que conto, todas são verdadeiras.
Quem morou em pensionato, sabe que, de tempos em tempos, chegam,
embalados em caixas de papelão, produtos comestíveis daqui, do nosso velho
interior. Tinha um sujeito de Anagé que toda vez que via aquela redinha de
umbu, chorava. “Saudade de mãe, de carne de bode e de tomar banho, nu, do Rio
Gavião”, justificava. Há sempre (ou havia sempre) uma mãe dizendo (ou pensando)
que o filho mal se alimentava e que era necessário mandar alguma coisa “pro
menino comer”. E vinha de tudo! Carne do sol, tapioca, biscoito, doce disso,
doce daquilo, rapadura… Ah! Está aí o produto que deu causa à nossa história de
hoje. Uma rapadura e daquelas bem duras, de quebrar o dente, fazendo valer o
dito popular: “rapadura é doce, mas não é mole”. Essa, de nosso caso, não era
mole, mesmo, talvez, tenha sido a mais dura já fabricada. Esse açucarado
produto sempre fazia parte das caixas de papelão que Hermison, mensalmente,
recebia de Conquista.
Era um sábado. Havíamos terminado de almoçar (feijoada, uma gordura só)
e fomos degustar aquela duríssima rapadura que acabara de chegar de Conquista.
Hermison, como sempre convidou a todos do prédio do Areal de Cima para
lambuzarem-se naquele tijolo (nunca achei tão apropriado um tratamento para
algo: tijolo, “e de concreto”, eu completaria). Sentamos todos no quarto,
apreciando o sacrifício de Hermison, repartindo a “rapaduríssima”. Domingão,
confortavelmente, acomodou-se numa cômoda, de costas para uma janela que dava
(a janela, claro) para o quintal (evidente que o apartamento estava no térreo).
É de bom tom informar que Domingão, lá pela parte superior da boca, usava uma
dentadura (daquelas, tipo quatro dentes da frente). Cuidadoso (além de
extremamente vaidoso), Domingão tira o artefato bucal e o deposita em cima da
cômoda, mais pra perto da janela. “Pra não quebrar, como aconteceu com aquela
outra” disse ele, mostrando um vampiresco sorriso, já que ficaram em destaque
um “janelão” e os enormes caninos. Hermison que, naqueles tempos era dotado de
uma mente maquiavélica para brincadeiras, dá a volta pela cozinha, chega ao que
denominei de quintal e sorrateiramente, sem que o nosso cuidadoso “comedor de
rapaduras” perceba, pega a babada e viscosa dentadura e dá sumiço na danada.
Quando Domingão, naquele momento, nosso desdentado amigo, dá por falta de seu
aparelho estético bucal e percebendo tratar-se de uma brincadeira (“de mau
gosto”, diz ele, até hoje), sai da alegria do que é saborear aquela doçura e,
verde de ira, tal qual, o incrível Hulk, começa a proferir as mais terríveis
ameaças que, se cumpridas seriam classificadas de crimes hediondos.
Referindo-se a mim, ele disse que me arrancaria vários pedaços e, demonstrando
requintes de crueldade, enviaria alguns deles pra minha família. Cheguei a
temer por algumas partes de meu corpo, o que me fez, de pronto, esconder todos
os objetos cortantes ou pontiagudos existentes no “pedaço”. Foi difícil
controlar o “homicida” (em potencial) e “banguelo” cidadão. Hermison (que não
parava de rir), como que alheio a tudo e
sempre negando ter sido ele o autor daquela subtração dentária, só
devolveu o artefato bucal do velho Domingos sete dias depois. Domingão, óbvio,
vaidoso, ficou uma semana sem as costumeiras visitas noturnas à noiva (hoje sua
esposa). Naqueles sete dias, ele só ria de boca fechada ou com a mão na boca,
para esconder o estrago. Aliás, sorrir com a mão na boca é um hábito, adquirido
naquela semana, que ele traz até os dias atuais, quase 35 anos depois daquele
inesquecível dia, dos tantos que vivemos em nossa juventude.
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