terça-feira, 28 de outubro de 2014

OS MILAGRES

 Meu pai José Carlos Facó

 José Carlos Facó

Modelavam-no a grandeza de sua alma, a tranquilidade da consciência, a lisura das ações praticadas, a bondade e o extremo sentimento de compreensão.

Texto de Luiz Carlos Facó
Extraído do livro Garimpando Lembranças

Seu gargalhar era estrepitoso, aberto, franco. Suas discussões transformavam-se em bonança após o vendaval. Ao ouvi-las, alguém diria: esperemos, o epílogo desfaz a nuvem. Noutro qualquer, isso seria destempero, excesso. Nele não, que o fazia muito naturalmente, por temperamento e sem molestar ninguém. Modelavam-no a grandeza de sua alma, a tranquilidade da consciência, a lisura das ações praticadas, a bondade e o extremo sentimento de compreensão. Em tênue esboço, assim definiria meu pai: José Carlos Facó.

Nossa afinidade se converteu em íntima cumplicidade quando comecei a acompanha-lo em longas viagens pelo interior do Estado. Decorrentes do seu desejo em disputar, pela UDN, União Democrática Nacional, uma das vagas de deputado à Assembleia legislativa da Bahia.
Numa daquela, lembro-me, percorrendo os municípios de Gandú e Boa Nova, ele me contou duas histórias, que expunham os seus ideais e o apreço à verdade.
A narração é dele:
Num dia, no crepúsculo do inverno, pernoitaram em casa do velho Racine, meu pai, lá em Beberibe, Ceará, dois viandantes, Raimundo Pavio e Raimundo Nonato. Havidos como homens sérios, comerciantes abastados e muito educados.
Vinham em busca de rapadura que produzíamos no engenho. O alimento dos cearenses.
Acertado o preço e a forma de pagamento, selaram acordo de compra e venda com um simples aperto de mãos.
Como se fazia tarde, meu pai lhes ofereceu suculenta ceia e passou a perquiri-los  sobre as novidades da capital. O papo ameno e novidadeiro se fez longo. Interrompida pela abrupta entrada do velho Almino, com a notícia que encontraram na barranca do Rio Choró, há alguns dias de um enorme raiz de mandioca que media exatos dez palmos.
A boa nova encheu de estupefação os convivas. Jamais tinham ouvido falar em tamanho absurdo. Nenhuma raiz alcançaria tal proporção. Pelo menos naquelas terras. Preferiram a troça ao crédito.
Agastado, Almino repetia a história, confirmando-a e reafirmando-a. Ele próprio medira a danada, que ainda se encontrava no local e podia ser examinada.
Na manhã seguinte quando os viajantes se dispunham a partir, o sertanejo convidou-os a ir ver a mandioca no roçado. Diante da recusa, ponderou amigavelmente.
- Os senhores coronéis, ontem, duvidaram da minha palavra. Peço, neste instante que me façam o favor de ir conferir com os próprios olhos minha história, para que não me sinta um embusteiro, não passe por mentiroso, o que jamais ocorreu nesta vida de meu Deus.
- Desculpe-nos amigos, não podemos, disse-lhe Raimundo Pavio. Temos pressa. Precisamos partir enquanto o sol não se faz a pino. Nossas montarias sofrem sob este calor abrasador. E nós, inda mais.
- Mas é aqui pertinho, é em frente ao caminho que percorrerão. Os cavalos não se estropiarão, muito menos vossas senhorias se cansarão. Façam-me ess\ vontade.
- Fica para outra vez...
- Ah! Eu é que não passarei por matuto mentiroso. Os senhores façam-me o favor, tenham paciência, mas não permitirei que saiam daqui sem ver a mandioca!
Quase balbuciava Almino, com voz tremula e raiva contida.
Diante daquele quadro, os viajantes entreolham-se  e resolveram pela aceitação da intimação.
Meu pai e eu, que a tudo assistíamos e ouvíamos, conhecedores da idoneidade do ancião Almino, homem de palavras e costumes ditados pela Santa Madre Igreja, resolvemos incorporar-nos à comitiva emprestando ao amigo nosso testemunho.
Na barranca do Choró, retirada a areia que recobrira a decantada raiz, motivo de mofas, chacotas, Almino, com uma vara, tomou o tamanho exato da fenomenal “batata”.
Medida a vara, verificou-se: dez palmos e meio!
E o velho e bondoso sertanejo, vingado em sua honra, mas ainda se justificando pela diferença encontrada, meio palmo, afirmou, peremptório, aos vencidos contraditores:
- Olhem, a mandioca cresceu depois que foi medida, porque se eu tivesse encontrado dez palmos e meio, teria afirmado que ela media dez palmos e meio!
- Meu filho, disse-me meu pai fitando os meus olhos, daquele episódio tirei uma lição que guardei e lhe transmito. Por mais que a verdade pareça inverossímil, sustente-a. Ao final ela se faz vitoriosa. “A verdade é grande e prevalecerá, mesmo que ninguém se importe com ela, concluiu citando Conventry Patmore.”
Donde estávamos ao nosso objetivo, o cálculo, se feito em léguas, nos mostraria ainda faltar centenas delas pata alcançá-lo. O bolômetro do carro testemunhava metro a metro a distância percorrida e a de que dispúnhamos a percorrer, alimentando nosso desejo de cumpri-la em algumas horas. Tempo suficiente para darmos sequência à conversa interrompida. E ela aconteceu naturalmente ao penetramos numa área visivelmente castigada pela seca. O verdor das plantações nos abandonara. Ficara para trás. Só descortinávamos vegetação seca, terra ressequida, gado magro à procura de alimento, homens e mulheres penando ao carregarem sobre as cabeças pesadíssimos potes de barro cheios de água turva. Era a imagem da desolação estampada na paisagem que avistávamos e nos semblantes da gente famélica com as quais cruzávamos.
Depois de uma longa pausa e profunda meditação, diante daquele quadro dantesco, meu pai voltou a falar:
- Desde D. Pedro Segundo, que prometeu vender até a última joia da coroa para que tais cenas não se repetissem, nada mudou. Nem ele vendeu seu apreciável tesouro, nem o reinado e a república conseguiram minorar o sofrimento do sertanejo. A cada seca, é a mesma coisa, o mesmo lengalenga. O povo morre de inanição ou migra, abandonando tudo. Só então medidas emergenciais são adotadas pelos dirigentes afim de socorre-lo. Logo abandonadas quando se estabilizam as condições climáticas. Nada é feito em definitivo. Apaixona-me o desejo de entrar na política para ser mais um a verberar e a lutar contra tanto descaso. Só milagres salvam o povo. A proposito de milagres, ouça o que aconteceu no Ceará*. Seu avô me contou, e por certo o pai dele a ele.
Nas terríveis secas de 1792 e da de 1825, na de 1845 e nas de 1877 e 1888, ocorreram fatos extraordinários, que os crédulos sertanejos debitam à bondade da Providência. É justo que devessem, pois até hoje não se encontraram explicações plausíveis que pudessem justificá-los.
Nas duas primeiras, o sertão foi tomado por uma abundância de mel de abelhas, maná dos céus, sofregamente disputado pelas vítimas de seca. Na de 1845, o aparecimento de preás, em quantidade nunca vista, saciou a fome do povo. A musa popular glosou o acontecido, restando incólume a lembrança desses quartetos:
Uma preá lá do serrote
Escreveu ao punaré:
Eu nunca vi tanto fojo,
Tanto quixó e mundé.

Estou farto de preá,
Vou mandar p’ra Bat’rité
Pra comer da vaca gorda
E do bom porco baié.
Nas duas seguintes, verdadeiras aluviões de pombas salvaram igualmente do tormento da fome as míseras populações flageladas do território cearense.
Hoje, disse concluindo, os milagres têm de ser feito pelos governantes. Irrigação, açudes, poços artesianos, aguadas, depósitos de águas da chuvas, conscientização acerca do gasto das águas, preservação das matas ciliares, cuidados especiais com os rios permanentes e temporários. Nada mais nos será dado de graça. Milagrosamente.
Foi através daquela conversa, daquele papo quase descomprometido que vi em meu pai um idealista. Um ser atípico. Privilegiado. Um grande homem. Meu herói.


Os milagres (ou fenômenos da natureza) aqui citados são verdadeiros. Anotados pelos historiadores e relatado pelo Barão de Studart no seu trabalho: Climatologia, epidemias e endemias do Ceará.

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