Meu pai José Carlos Facó
José Carlos Facó
Modelavam-no a grandeza de sua alma, a tranquilidade da consciência, a
lisura das ações praticadas, a bondade e o extremo sentimento de compreensão.
Texto de Luiz Carlos Facó
Extraído do livro Garimpando Lembranças
Seu
gargalhar era estrepitoso, aberto, franco. Suas discussões transformavam-se em
bonança após o vendaval. Ao ouvi-las, alguém diria: esperemos, o epílogo desfaz
a nuvem. Noutro qualquer, isso seria destempero, excesso. Nele não, que o fazia
muito naturalmente, por temperamento e sem molestar ninguém. Modelavam-no a
grandeza de sua alma, a tranquilidade da consciência, a lisura das ações
praticadas, a bondade e o extremo sentimento de compreensão. Em tênue esboço, assim
definiria meu pai: José Carlos Facó.
Nossa
afinidade se converteu em íntima cumplicidade quando comecei a acompanha-lo em
longas viagens pelo interior do Estado. Decorrentes do seu desejo em disputar,
pela UDN, União Democrática Nacional, uma das vagas de deputado à Assembleia
legislativa da Bahia.
Numa
daquela, lembro-me, percorrendo os municípios de Gandú e Boa Nova, ele me
contou duas histórias, que expunham os seus ideais e o apreço à verdade.
A
narração é dele:
Num
dia, no crepúsculo do inverno, pernoitaram em casa do velho Racine, meu pai, lá
em Beberibe, Ceará, dois viandantes, Raimundo Pavio e Raimundo Nonato. Havidos
como homens sérios, comerciantes abastados e muito educados.
Vinham
em busca de rapadura que produzíamos no engenho. O alimento dos cearenses.
Acertado
o preço e a forma de pagamento, selaram acordo de compra e venda com um simples
aperto de mãos.
Como
se fazia tarde, meu pai lhes ofereceu suculenta ceia e passou a
perquiri-los sobre as novidades da
capital. O papo ameno e novidadeiro se fez longo. Interrompida pela abrupta
entrada do velho Almino, com a notícia que encontraram na barranca do Rio
Choró, há alguns dias de um enorme raiz de mandioca que media exatos dez
palmos.
A
boa nova encheu de estupefação os convivas. Jamais tinham ouvido falar em
tamanho absurdo. Nenhuma raiz alcançaria tal proporção. Pelo menos naquelas
terras. Preferiram a troça ao crédito.
Agastado,
Almino repetia a história, confirmando-a e reafirmando-a. Ele próprio medira a
danada, que ainda se encontrava no local e podia ser examinada.
Na
manhã seguinte quando os viajantes se dispunham a partir, o sertanejo
convidou-os a ir ver a mandioca no roçado. Diante da recusa, ponderou
amigavelmente.
-
Os senhores coronéis, ontem, duvidaram da minha palavra. Peço, neste instante
que me façam o favor de ir conferir com os próprios olhos minha história, para
que não me sinta um embusteiro, não passe por mentiroso, o que jamais ocorreu
nesta vida de meu Deus.
-
Desculpe-nos amigos, não podemos, disse-lhe Raimundo Pavio. Temos pressa. Precisamos
partir enquanto o sol não se faz a pino. Nossas montarias sofrem sob este calor
abrasador. E nós, inda mais.
-
Mas é aqui pertinho, é em frente ao caminho que percorrerão. Os cavalos não se
estropiarão, muito menos vossas senhorias se cansarão. Façam-me ess\ vontade.
-
Fica para outra vez...
-
Ah! Eu é que não passarei por matuto mentiroso. Os senhores façam-me o favor,
tenham paciência, mas não permitirei que saiam daqui sem ver a mandioca!
Quase
balbuciava Almino, com voz tremula e raiva contida.
Diante
daquele quadro, os viajantes entreolham-se
e resolveram pela aceitação da intimação.
Meu
pai e eu, que a tudo assistíamos e ouvíamos, conhecedores da idoneidade do
ancião Almino, homem de palavras e costumes ditados pela Santa Madre Igreja,
resolvemos incorporar-nos à comitiva emprestando ao amigo nosso testemunho.
Na
barranca do Choró, retirada a areia que recobrira a decantada raiz, motivo de
mofas, chacotas, Almino, com uma vara, tomou o tamanho exato da fenomenal
“batata”.
Medida
a vara, verificou-se: dez palmos e meio!
E
o velho e bondoso sertanejo, vingado em sua honra, mas ainda se justificando
pela diferença encontrada, meio palmo, afirmou, peremptório, aos vencidos
contraditores:
-
Olhem, a mandioca cresceu depois que foi medida, porque se eu tivesse encontrado
dez palmos e meio, teria afirmado que ela media dez palmos e meio!
-
Meu filho, disse-me meu pai fitando os meus olhos, daquele episódio tirei uma
lição que guardei e lhe transmito. Por mais que a verdade pareça inverossímil,
sustente-a. Ao final ela se faz vitoriosa. “A verdade é grande e prevalecerá,
mesmo que ninguém se importe com ela, concluiu citando Conventry Patmore.”
Donde
estávamos ao nosso objetivo, o cálculo, se feito em léguas, nos mostraria ainda
faltar centenas delas pata alcançá-lo. O bolômetro do carro testemunhava metro
a metro a distância percorrida e a de que dispúnhamos a percorrer, alimentando
nosso desejo de cumpri-la em algumas horas. Tempo suficiente para darmos
sequência à conversa interrompida. E ela aconteceu naturalmente ao penetramos
numa área visivelmente castigada pela seca. O verdor das plantações nos
abandonara. Ficara para trás. Só descortinávamos vegetação seca, terra
ressequida, gado magro à procura de alimento, homens e mulheres penando ao
carregarem sobre as cabeças pesadíssimos potes de barro cheios de água turva.
Era a imagem da desolação estampada na paisagem que avistávamos e nos
semblantes da gente famélica com as quais cruzávamos.
Depois
de uma longa pausa e profunda meditação, diante daquele quadro dantesco, meu
pai voltou a falar:
-
Desde D. Pedro Segundo, que prometeu vender até a última joia da coroa para que
tais cenas não se repetissem, nada mudou. Nem ele vendeu seu apreciável
tesouro, nem o reinado e a república conseguiram minorar o sofrimento do
sertanejo. A cada seca, é a mesma coisa, o mesmo lengalenga. O povo morre de
inanição ou migra, abandonando tudo. Só então medidas emergenciais são adotadas
pelos dirigentes afim de socorre-lo. Logo abandonadas quando se estabilizam as
condições climáticas. Nada é feito em definitivo. Apaixona-me o desejo de
entrar na política para ser mais um a verberar e a lutar contra tanto descaso.
Só milagres salvam o povo. A proposito de milagres, ouça o que aconteceu no
Ceará*. Seu avô me contou, e por certo o pai dele a ele.
Nas
terríveis secas de 1792 e da de 1825, na de 1845 e nas de 1877 e 1888,
ocorreram fatos extraordinários, que os crédulos sertanejos debitam à bondade
da Providência. É justo que devessem, pois até hoje não se encontraram
explicações plausíveis que pudessem justificá-los.
Nas
duas primeiras, o sertão foi tomado por uma abundância de mel de abelhas, maná
dos céus, sofregamente disputado pelas vítimas de seca. Na de 1845, o
aparecimento de preás, em quantidade nunca vista, saciou a fome do povo. A musa
popular glosou o acontecido, restando incólume a lembrança desses quartetos:
Uma preá lá do serrote
Escreveu ao punaré:
“Eu
nunca vi tanto fojo,
Tanto quixó e mundé.”
Estou farto de preá,
Vou mandar p’ra Bat’rité
Pra comer da vaca gorda
E do bom porco baié.”
Nas
duas seguintes, verdadeiras aluviões de pombas salvaram igualmente do tormento
da fome as míseras populações flageladas do território cearense.
Hoje,
disse concluindo, os milagres têm de ser feito pelos governantes. Irrigação,
açudes, poços artesianos, aguadas, depósitos de águas da chuvas,
conscientização acerca do gasto das águas, preservação das matas ciliares,
cuidados especiais com os rios permanentes e temporários. Nada mais nos será
dado de graça. Milagrosamente.
Foi
através daquela conversa, daquele papo quase descomprometido que vi em meu pai
um idealista. Um ser atípico. Privilegiado. Um grande homem. Meu herói.
Os milagres (ou fenômenos da
natureza) aqui citados são verdadeiros. Anotados pelos historiadores e relatado
pelo Barão de Studart no seu trabalho: Climatologia, epidemias e endemias do
Ceará.
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