Pintura
O fundador da escola baiana de pintura barroca
José
Joaquim da Rocha (?, 1737 ?
— Salvador, 12 de outubro de 1807) foi
um pintor, encanador,
dourador e restaurador brasileiro, considerado o fundador da escola baiana
de pintura barroca, o maior
de seus integrantes e um dos mais destacados pintores do barroco brasileiro. Deixou
vários discípulos e continuadores, que preservaram os princípios da sua
estética até o século XIX. Sua
produção é numerosa, e embora tenha
muitos momentos de alto nível, é desigual, em parte porque desde que se
tornou reconhecido sempre contou com muitos discípulos e aprendizes que o
auxiliavam, e aos quais entregava grandes porções do trabalho, como era o
costume na época. Não assinou nenhuma de
suas pinturas, e grande parte das
que foram identificadas são atribuições transmitidas apenas pela tradição oral,
o que dificulta o estudo da sua trajetória e estilo.
Pouco se
sabe sobre sua vida, e a maioria das obras atribuídas a ele não tem
documentação comprobatória. Diz um
manuscrito anônimo encontrado por Carlos
Ott na Biblioteca Nacional e datável entre 1866 e 1876, que José Joaquim
era procedente de Minas Gerais, mas essa origem é duvidosa. Outros autores
apontam Salvador, o Rio de Janeiro ou mesmo Portugal. O
ano em que nasceu também é incerto, mas foi dito que ao falecer em 1807 tinha
70 anos.
Entre 1764
e 1765 esteve em Salvador, possivelmente estudando com Antônio Simões Ribeiro. Na cidade,
auxiliou Leandro Ferreira de Sousa na
pintura de um painel de Jesus atado à coluna e douramento
da moldura, obra realizada para o Recolhimento da Santa Casa, conforme um
recibo de pagamento que sobreviveu. O custo foi de 9$600 réis. Nesta
época morou no andar de cima de um pequeno sobrado pertencente à Santa Casa,
pagando um aluguel de 7$500 réis a cada três meses que nem sempre pôde honrar,
o que indica uma pobre condição.
Entre 22 de
janeiro de 1766 e 28 de agosto de 1769 não há qualquer registro sobre sua
vida. Pode ter se dirigido a João Pessoa para
trabalhar no Convento e Igreja de Santo
Antônio, mas hoje é objeto de grande debate a autoria do famoso teto da igreja,
com a cena da Glorificação dos Santos Franciscanos, às vezes
atribuída a ele mas sem documentação. É possível, como sustenta uma
tradição oral, que neste período tenha ido se aperfeiçoar em Lisboa, entrando
em contato com Antonio Lobo e Jerônimo de Andrade -
embora não se saiba quem possa ter sido o seu mecenas. Mas como
pensa a pesquisadora Maria de Fátima Campos, Salvador já possuía condições de
prover um ensino adequado a um jovem talentoso. De qualquer forma, quando reaparece já é inegavelmente um
pintor maduro, disputando com mestres estabelecidos, Domingos da Costa Filgueira e José Renovato Maciel, uma
grande encomenda de pintura de perspectiva ilusionista,
técnica que exigia um grande domínio do ofício, a ser realizada na Igreja de Nossa Senhora da
Saúde e Glória. Apesar de oferecer um preço mais vantajoso, o
trabalho foi entregue a Filgueira. Ao que parece, continuava a viver
pobremente, alugando uma casinha na Rua dos Capitães.
O beijo de Judas e Pedro cortando a orelha de
Malco. Bandeira
da Procissão dos Fogaréus. Museu da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
Pode ter
ido em 1769 para Recife a fim
de decorar o forro da igreja do Convento de Santo Antônio, mas a
autoria da obra é incerta. Em 1770 pode ter decorado a Igreja da Ordem Terceira de
Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão.10 Em
1772 ou 1773 estava em Salvador e foi contratado para executar a pintura de
perspectiva ilusionística no teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição
da Praia, na época uma das igrejas mais importantes da Bahia. O trabalho
resultou na sua obra-prima, que é também uma das mais notáveis pinturas em seu
gênero no Brasil. Trata-se de uma grande Glorificação da Imaculada Conceição entre
alegorias dos quatro continentes, figuras divinas e uma arquitetura ilusionista
monumental. O contrato exigia também que pintasse a capela-mor e encarnasse a
estátua de Nossa Senhora no altar-mor. Cobrou o preço irrisório de 1.009$920
réis por tudo, mas ao entregar a encomenda recebeu mais 180$000 réis a título
de compensação pelos prejuízos. O sucesso da composição no teto da nave lhe
valeu pelo menos a consagração definitiva como o melhor pintor da Bahia. A
partir de então pôde começar a manter uma equipe permanente de ajudantes e
formar discípulos. Em 1777 recebeu a incumbência de pintar uma Visitação de Nossa Senhora a Santa
Isabel para
o retábulo-mor da capela da Santa Casa, e que é um de seus melhores trabalhos
de cavalete.
Segue-se um
período muito produtivo, em que em poucos anos realizou - pelo menos segundo a
tradição - diversas obras de vulto. Entre 1778 e 1780 a Ordem Terceira do Carmo o contratou
para dourar o retábulo da capela-mor, e pode ter feito também o painel com a
imagem, trabalho perdido em um incêndio pouco tempo depois. Em torno de
1780 pintou outra Visitação para a Secretaria da Santa Casa,
na mesma época em que esteve envolvido com os tetos da Igreja do Bom Jesus dos Aflitos (c.
1780), da Igreja do Rosário dos Pretos (1780)
e da Igreja da Ordem Terceira de São Domingos (1781).
Em 1785 iniciou trabalhos para a Igreja de Nossa Senhora da Palma que só seriam
terminados vários anos mais tarde. Na primeira fase se resumiu a fazer o
projeto do medalhão central e da perspectiva do teto, mas a execução ficou a
cargo de um pintor desconhecido, talvez seu discípulo Veríssimo de Freitas.
Entrementes,
parece que pintou o teto da Matriz de São Pedro Velho. O
contrato não sobreviveu para confirmar a atribuição, mas os arquivos paroquiais
acusam sua eleição como Irmão da Ressurreição em 5 de novembro de 1786, o que
pelo menos atesta sua ligação com a irmandade mantenedora da igreja e pode
indicar que ele foi o autor. A pintura foi, anos mais tarde, retocada por José Rodrigues Nunes, e em tempos recentes, destruída junto com a
igreja, uma infelicidade, pois segundo Cunha Barbosa, que a viu em 1900, era a
mais perfeita de todas as suas obras de perspectiva. No mesmo período pode ter
sido o autor do teto e duas telas na Matriz de Nazaré em
Salvador. Essa quantidade de grandes encomendas não teria sido possível de
atender se já não tivesse a esta altura uma grande equipe de assistentes e
aprendizes para auxiliá-lo.
Em torno de
1790, deixou mais uma série de painéis secundários na Igreja da Palma, cuja
autoria pessoal parece mais garantida. A Igreja da Palma, desta forma, se
tornou o maior repositório de obras de José Joaquim. Em troca de sua constante
atenção para com as necessidades da igreja, a irmandade do Bom Jesus da Cruz o
nomeou Irmão Honorário. Em 1792 criou seis quadros grandes para a capela-mor da
Santa Casa, encarregado também de dourar as molduras, pelo que recebeu 140$000
réis. Pouco depois deixou vários painéis na Capela das Mercês.
Embora
nesta fase sua situação econômica já fosse bem melhor do que fora quando jovem,
nunca enriqueceu, a despeito das inúmeras encomendas e de já poder estabelecer
seus próprios preços. Segundo se deduz de alguns registros, tinha apenas o que
bastava para levar uma vida decente, mas sem qualquer luxo. Ao contrário,
sabe-se que era generoso. Dava quase tudo o que recebia em esmolas para os
pobres e pagava jantares para os presos da cadeia. Em 1794, já idoso, vendeu
sua casa própria sem razão declarada, mas supõe-se que tenha sido para ajudar
seu discípulo predileto, José Teófilo de Jesus, que de fato foi se aperfeiçoar na Europa, e ao
que tudo indica, à custa do mestre.
Sua última
encomenda importante veio em 1796 na forma de seis painéis mais douramentos na
sacristia da Igreja do Pilar, pelo que
recebeu 368$000 réis. Depois continuou pintando obras menores. Em 1796, por
12$000 réis, criou um Cristo com a cana verde para o
Recolhimento da Santa Casa; em 1801, dois quadros para a Ordem 3ª de São
Francisco. Depois disso vão se perdendo os rastros de sua vida. Entre 1802 e
1803 estava vivendo outra vez em uma casa barata, de aluguel, pertencente à
Ordem 3ª do Carmo. Seus últimos anos foram aflitos for doenças, e os passou em
uma casa de campo que tinha na freguesia de Santo Antônio. Ali morreu em 12 de
outubro de 1807, sem ter casado e sem deixar descendência conhecida. Foi
sepultado na Igreja da Palma.
A pintura
baiana até o surgimento de José Joaquim era modesta. Apesar de Capital da
colônia e movimentado entreposto comercial, Salvador ainda era uma pequena
cidade, e só em 1808 chegou à marca de 50 mil habitantes. Também era o
principal polo de cultura brasileiro, mas em muitos aspectos era uma cultura
provinciana, dominada pela religião, que funcionava com base no trabalho
escravo e que para fazer arte dependia em grande medida do improviso e de
artífices mal treinados e pior pagos, incluindo neles escravos e pardos forros,
com rara exceção, como Calmão,
Simões, Filgueira, Maciel, que eram mestres de ateliês e foram os precursores e
contemporâneos de José Joaquim. A importância desses artistas como bons
pioneiros não pode ser menosprezada, mas o legado maior de José Joaquim está em
ter dado um grande impulso renovador e qualificador à escola baiana, sendo por
isso considerado o seu fundador e seu mais destacado integrante, uma escola que
manteve viva a tradição barroca de seu mestre até meados do século XIX. Em
levantamento feito em 1961, Carlos Ott listou 52 obras de sua autoria,
incluindo tanto as atribuídas como as documentadas. Em publicação de 2005,
Percival Tirapeli afirmou que o número de obras identificadas havia subido para
150. Porém, esses números podem ser enganosos, havendo considerável polêmica
sobre as atribuições.15 8 5 Quase
todas elas permanecem in situ, mas algumas de suas obras de
cavalete estão preservadas no Museu de Arte da Bahia, no Museu de Arte Sacra da Bahia e no Museu da
Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
A Flagelação de Cristo. Bandeira da Procissão dos Fogaréus. Museu da
Santa Casa de Misericórdia da Bahia
Teto da Igreja da Ordem 3ª de São Domingos
Como a
Igreja era a maior mecenas naquele período, quase não havendo espaço para
pintura profana na colônia, toda a produção de José Joaquim está na arte sacra.
Durante o período Barroco em
que viveu a Igreja dava muitas das orientações a respeito da criação da obra,
determinando o tema, as maneiras de representá-lo, e até mesmo decidia sobre as
decorações secundárias. Aos artistas cabia acatar essa orientação, embora
dentro dessa moldura houvesse espaço para muita criatividade, sempre que não
confrontasse os preceitos. Pois a arte sacra daquele tempo, muito mais do que
servir como simples decoração das igrejas era em essência funcional e didática:
tinha o propósito específico e maior de edificar o povo nos bons costumes e
estimular a sua devoção através de obras dramáticas, de grande apelo visual e
intenso poder evocativo. E como foi uma prática corriqueira em seu tempo, suas
fontes estilísticas derivam tanto do aprendizado junto aos mestres - sendo
preponderante, como é natural, a influência da escola portuguesa de pintura -
como do estudo de uma rica iconografia de gravuras e estampas que circulava na
colônia. Esse material, que vinha em quantidades da Europa, era um corpo muito
heterogêneo de imagens de vários estilos e épocas, muitas eram cópias de
composições famosas, e isso explica em parte o ecletismo e o sentido
imitativo-criativo do Barroco nacional e da própria obra de José Joaquim, pois
sabe-se que ele, não fugindo ao costume, também utilizou esse tipo de imagem
como modelo em muitas de suas criações, adaptando muitas vezes de maneira
original as fórmulas consagradas. Ao mesmo tempo, isso colabora para que o
nível de qualidade da sua produção seja pouco consistente. Também concorre,
para isso, o fato de ele colocar muitos aprendizes em diferentes estágios de
capacitação para ajudá-lo. Esses fatores também problematizam a exata
caracterização do seu estilo pessoal e tornam difícil identificarmos até onde
agiu a mão de cada um. Mas todas essas características eram a norma do seu
tempo, e são o que dá tipicidade ao Barroco brasileiro. A obra de José
Joaquim ainda espera mais estudos; não obstante, a crítica especializada já
pôde em parte penetrar nesse emaranhado ainda por explorar completamente e sua
individualidade artística já foi razoavelmente delimitada, com um estilo denso
e de grande plasticidade, bem acima da média do seu contexto em refinamento e
habilidade técnica, possuindo um caráter erudito e disciplinado, conforme às
regras do seu tempo, mas sem deixar de ser inventivo. Ele inspirou duas
gerações de continuadores.
Suas obras
de perspectiva ilusionista nos grandes tetos, uma técnica que se tornou muito
apreciada no Brasil colonial, são filhas diretas de uma tradição inaugurada na
Itália e consagrada por Andrea Pozzo no
século XVII, que criava nos tetos uma ilusão de espaço tridimensional,
abrindo-se para o céu em visões gloriosas. Essa técnica exigia um grande
conhecimento da perspectiva e
do escorço, que só
artistas muito talentosos e bem treinados eram capazes de dominar. Embora
talvez tenha sido em Portugal onde aprendeu a técnica, a influência de Pozzo já
era sentida no Brasil desde o início do século XVIII. É possível que ele tenha
conhecido a maior criação do italiano, o teto da Igreja de Santo Inácio de Loyola em Roma, uma obra
que produziu vasta escola, através de gravuras. Carlos Ott até se arriscou a
sugerir que a sua suposta viagem a Portugal possa ter se estendido à Itália,
onde poderia ter visto em primeira mão a celebrada pintura. No entanto,
segundo Paiva & Pires, sua interpretação do estilo de Pozzo segue uma
tradição especificamente portuguesa. Pozzo escorçava acentuadamente as figuras
da cena central para que a ilusão de tridimensionalidade se prolongasse da
arquitetura fictícia até o céu sem quebra de continuidade, mas os portugueses,
no que os seguiram José Joaquim, Mestre Ataíde e
outros pintores coloniais, preferiram criar um medalhão central bem definido, e
sem escorço pronunciado nas figuras, originando um espaço mais plano. Era o que
se chamava de "quadro recolocado", pois sua composição espacial
interna equivalia à dos painéis destinados a serem vistos nas paredes.
No campo
temático, dependia muito das escolhas das irmandades que o patrocinavam, mas
foram mais frequentes em sua obra cenas da vida da Virgem Maria, como seu casamento, a Anunciação, a visita a Santa Isabel, o nascimento de Jesus. Menos comuns são cenas da vida de Jesus, mas
deixou algumas obras tratando da sua Paixão e Morte, da Ressurreição e do Pentecostes.
Entre seus
discípulos estão Sousa Coutinho, Franco Velasco, Lopes Marques, Antônio Dias, Nunes da Mota, Mateus Lopes, Veríssimo de Freitas, Rufino Capinam, mas sobretudo José Teófilo de Jesus, o mais importante dentre eles e o favorito do
mestre. Sua obra já foi estudada por Manuel Raymundo Querino (que
introduziu o conceito de "Escola Baiana"), Carlos Ott, Clarival do
Prado Valadares, Marieta Alves, Maria de Fátima Campos e outros eruditos, mas
precisa de mais pesquisas para que se esclareçam as polêmicas e incertezas que
o cercam, principalmente no que diz respeito às atribuições de
autoria. Sua importância, porém, já foi amplamente reconhecida, e pode ser
sintetizada nas palavras de Carlos Ott:
"Apesar
de ter-se inspirado na pintura portuguesa e particularmente na italiana, criou
uma pintura nova: a pintura baiana. E isso a um tempo em que no Brasil, sendo
ainda colônia de Portugal, poucos artistas revelam mentalidade tipicamente
brasileira. Nas pinturas de José Joaquim da Rocha não se trata da arte popular,
como se dá com inúmeros quadros existentes em igrejas baianas. Ele passou por
uma escola e, o que foi mais, fundou uma escola de pintores".
O precioso
legado que deixou também precisa de melhor conservação. O teto da Igreja da
Praia, sua obra máxima e uma das mais importantes do Barroco brasileiro, esteve
por vários anos em processo de degradação, e segundo laudos técnicos por pouco
não veio abaixo, mas o Iphan iniciou
um restauro emergencial em 2012. As obras da Matriz de São Pedro Velho,
consideradas entre suas melhores, foram destruídas em uma reforma no século
XX, e o teto da Igreja do Rosário dos Pretos, também entre os melhores que
saíram de seu pincel, foi há muito tempo coberto por repintura e esquecido. Foi
no entanto redescoberto em 1979 em uma restauração. Os anos se passaram e foi
novamente considerado perdido pelo acúmulo de mofo, sujeira, umidade e oxidação
do verniz, mas outra vez foi "redescoberto" e restaurado em 2010.
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