quarta-feira, 12 de novembro de 2014

A VIDA NOTURNA DE SALVADOR

 Crônica de Luiz Carlos Facó


Da noite já era amigo desde a adolescência. Habitualmente, nele encontrava os melhores momentos para meditar, estudar, ler. Ela me inspirava, excitava. Éramos cumplices. Dando-me tanto, só podia retribuir-lhe com o meu amor. Pressentia no seu silêncio, uma oração, nos seus gemidos, um pedido. Qual? Quisera saber para atendê-la.

Aos dezessete anos era liberto. Recebi de meus pais a chave da porta de casa. Em um costume reproduzido por gerações para emancipar os filhos do sexo masculino e dizer-lhes, de maneira indireta, vocês se tornaram homens. Estão aptos a tomar decisões. Têm responsabilidade. Usem-na sem economizar. Confiamos no critério que possuem para conduzir suas ações. Não nos decepcionem. Numa tradição que subtraía daquele ato o simples formalismo para imergi-lo no simbolismo.

Com as filhas o processo tinha perfil análogo, embora se revestisse de grande pompa. Os pais apresentavam-nas, ao atingirem quinze anos, após a menarca, em suntuosas festas, à sociedade, movidos pelos mesmos sentimentos daqueles que isentaram da tutela os seus mancebos.

Carlos Bastos

Hoje tudo mudou. O baile da debutante em muitos casos foi substituído por um passeio a Miami. Ou pela promessa de um carro como presente, tão logo a mocinha se habilite como motorista.  As chaves da casa são entregues aos filhos como expressão de um processo corriqueiro e prático. Desapareceu aquela conotação simbólica. A modernidade, insolitamente, num anto antropofágico, deglutiu aqueles valores até então reverenciados.
Feitas estas considerações, quiçá desnecessárias, mas retratos de épocas, voltemos ao principal.
Da noite já era amigo desde a adolescência. Habitualmente, nele encontrava os melhores momentos para meditar, estudar, ler. Ela me inspirava, excitava. Éramos cumplices. Dando-me tanto, só podia retribuir-lhe com o meu amor. Pressentia no seu silêncio, uma oração, nos seus gemidos, um pedido. Qual? Quisera saber para atendê-la. Nem as suas sombras projetando fantasmagorias, assustava-me. Tomava-as como uma de suas brincadeiras. Misteriosa nunca foi para mim. Brincalhona, por certo. De tanto senti-la e procurar entendê-la tornei-me, até hoje, um notívago obstinado. Só a noite me apaixona. Porque ela me mostra o céu com todos os seus astros, fazendo-me refletir como sou ínfimo diante de tanta grandeza: mero pó de estrela.
Amante dela e com diploma de alforriado em mãos, com tibieza, passos inseguros, passei a explorar a vida noturna de Salvador.

Mural de Carlos Bastos no interior do Anjo Azul – Rua do Cabeça

O caminho a percorrer era imenso e variado. Ia do bar Anjo Azul, no Cabeça, ao Barroco, na Ladeira do Mauá, da boate Cloc, na Rua Democrata, ao inferninho Carijó, na Cipriano Barata; do Tabaris, na Praça Castro Alves, ao Rumba Dancing, na Rua da Misericórdia; do Varandá, na ladeira do Pau da Bandeira ao restaurante Cacique; do XK Bar, na Vitória, à Boate Xangô, no Hotel da Bahia; da Churrascaria Ide, na Ladeira 7 de Setembro, ao 63, na Ladeira da Montanha, ou mesmo ao Beco do Curriachito, onde se encontravam os castelos e as mulheres que trabalhavam na noite. Passando pelas festas nos Terreiros de Candomblé Axé Apo Afonjá, em São Gonçalo do Retiro; Olga de Alaketo, na Rua Luis Anselmo; Casa Branca, na Vasco da Gama; Neve Branca, em Campinas de Brotas; Carolina da Silva Sá, na Travessa da Paz; Gantois, no Alto do Gantois, Federação.
O leque de opções não findava aí. Havia os cinemas, a exemplo do Cine Teatro Guarany, hoje Glauber Rocha, algumas vezes apresentando peças como as” Árvores Morrem de Pé”, “Deus lhe Pague”, “A Figueira do Inferno”, em temporadas marcantes, com atores e atrizes do porte de Dulcina, Odilon e Conchita de Morais, Procópio Ferreira, Eva Tudor, Gilda de Abreu, Alma Flora, Jaime Costa, Cacilda Becker, Cleide Iáconis, Maria Della Costa. O Excelsior, Liceu, Cine Teatro Oceania, Glória, Itapagipe, Jandaia, Aliança, Popular, Santo Antônio, os cinco últimos com uma programação que reunia um cinejornal, um série e dois longas metragens. As academias de capoeira dos Mestres Pastinha e Canjiquinha, zelosos seguidores das lutas criadas pelos seus longevos, a capoeira d’Angola, e a do Mestre Bimba, o imortal criador da modalidade regional. Além dos clubes sociais: Associação Atlética da Bahia, Iate Clube da Bahia, Baiano de Teniis Fantoches da Euterpe, Cruz Vermelha, Inocentes em Progresso, Palmeiras da Barra, Sírio Libanês, Casa da Itália e Clube Inglês.

Cine Teatro Guarany – Praça Castro Alves

Como já frequentava as festas do Iate, Baiano e Associação, resolvi fazer minha estreia naquele iluminado circuito indo ao Tabaris Night Club. Do qual me tornei, com o passar do tempo, assíduo frequentador. A escolha não poderia ter sido mais perfeita. A casa, feérica, abrigava uma enorme quantidade de clientes. Adequadamente bem vestidos. Os mais abastados, em mesas profusamente adornadas por belíssimas mulheres. Trajadas com vestidos colantes e decotes provocantes, transpirando sensualidade. Algumas argentinas, paraguaias, mas a maior parte nordestinas fazendo-se passar por cariocas ou paulistas. Disponíveis para acompanha-los numa rodada de bebida, numa dança e no final da madrugada, quem sabe, num libidinoso, desregrado encontro sexual. Consórcio previsível de dois corpos. Um forte, desejoso de submeter exigir. O outro, pronto a aceitar, conceder.
Da orquestra vinham os acordes de uma rumba, chá-chá-chá, de um dolente samba canção, bolero ou um inesquecível e lascivo tango. Possibilitando que os pares volteassem libertinamente enleados pelo salão e dessem mostras de suas habilidades na arte de dançar.

As damas do Tabaris Night Club

Acaso pudesse definir os envolvidos naquela noitada, diria tratar-se de um grupo heterogêneo, constituído de médicos, advogados, comerciantes, funcionários públicos, grandes empresários, arrivistas, homossexuais, mulheres de “vida fácil”, cuja única preocupação era o divertimento. Desígnio que os unia numa camaradagem quase fraternal. Dando vez a que todos transitassem entre as diversas mesas. Quer para troca de um cumprimento ou para atender a um convite para sorver uma dose de “cuba libre”, ou um champanha. Esta companheira obrigatória dos cacauicultores, fumageiros, banqueiros do jogo do bicho e endinheirados.
Poderia citar nominalmente muitos dos contumazes clientes do Tabaris. Não o fare. Permito-me uma exceção, por se tratar de uma personalidade inconfundível da nossa terra. Chamava-se Francisco (Chiquito) Baggi. Filho de tradicional família baiana, foi em tenra idade acometido de paralisia infantil, cuja sequela principal lhe tolhera os movimentos das pernas. Nem por isso renunciara aos prazeres da vida. Portando um par de muletas, daí o apelido de Chiquito Bengala, com dificuldade movimentava-se em busca de diversão. Homossexual assumido, enfrentava com coragem s discriminação e os maus humores de uma sociedade cujos cânones eram tradicionalistas. E o fazia de maneira escandalosa. Maquiava-se. Cobria o rosto com base, ruge. Os lábios com batom, definindo as sobrancelhas com lápis. O mesmo que usava para disfarçar a calva pronunciada. Malgrado os tropeços que encarava, e eram muitos, aparentava ser uma figura cativante, simpática, alegre, dando vida aos ambientes em que convivia, com seus ditos chistosos, o gesticular afetado.

Cine Jandaia – Baixa dos Sapateiros

Falar dos demais seria contar histórias burlescas, ridículas, que seriam mais apropriadas nas trovas ferinas dos repentistas.
A culminância de toda aquela festa sublinhava-se pela apresentação de magníficos espetáculos. Protagonizados por artistas e grupos famosos, dentre os quais o mais requisitado era o balé do coreógrafo Evandro Castro Lima, mais tarde transformado em costureiro e desfilante de fantasias de luxo nos grandes bailes de carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A apoteose de tanta folia, prazeroso divertimento, para aqueles com pouco dinheiro como eu, só se concretizava quando uma daquelas damas da noite o escolhia como sob a promessa de dividir a sua alcova. Sem a intermediação do vil metal. Era a glória. Divulgada em cantos e recantos por meses a fio, pelo favorecido.
Falar da noite de Salvador sem dedicar algumas letras ao Anjo Azul é cometer pecado sem remissão.
Se entre nós ainda estivessem Odorico Tavares, João Baptista Caribé, Mirabeau Sampaio e Norma, sua mulher, Agenor Meireles, os irmaõs Décio e Durval Seabra, Carlos Eduardo da Rocha, Genaro de Carvalho, o muralista Caribé, Waldemar e Elza Holsgrafe, Francisco Amado, iam me dar razão. Fariam coro da minha asserção.
Como não posso invocar-lhes o testemunho, convoco os que podem dá-lo: Sante Scaldaferri, Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Lô conde e Julinha, Calazans Neto, Rubico Campos, Nair de Carvalho, o famoso fotógrafo Valter Lessa, excepcional artista e bom papo, e de uma centena de admiradores do bar e restaurante da rua do Cabeça.
Dirão, em coro, que o Anjo Azul era o local de encontro mais requisitado de Salvador. Diferindo dos demais pela decoração com móveis antigos, iluminação mortiça azulada, imagens barrocas de vários santos expostos juntamente com quadros de Carlos Bastos, numa simbiose perfeita. Tudo arrematado pela fidalguia de José Pedreira, seu proprietário, cumulando de atenções amigos e clientes. Pelo cardápio escolhido com esmero, e exóticos drinques, dentre os quais sobressaía o famoso Xixi de Anjo. Servido em toscas cálices de cerâmica, os famosos caxixis, produzidos pela habilidade dos artesãos de Maragogipinho.
Das dezessete horas em diante, até a madrugada, aquele ponto se tornava o centro político, cultural e artístico da Bahia. E, por que não dizer, da boêmia.
Pena não ter durado até os dias atuais. Porventura conseguisse, seria mais um patrimônio a ser tombado, pois revelador da nosso cultura, dos nossos usos e costumes.
Assim era a vida noturna de Salvador. Reluzente, segura, feliz, pacífica, própria para travar conhecimentos, estabelecer boas amizades, sobretudo para amar e fazer amor, às claras, às escondidas ou no escurinho dos cinemas. 

3 comentários:

  1. Bravos, amigo Facó.
    Gostaria de conhecer maid textos sobre o passadao desta Cidade da Bahia, que os tecnocratas chamam de Soteropolis e o poete Fernando da Rocha Peres chama de Salvadolores.
    Aqui escreve Lourenço Mueller, irmão de Suzanna, ex mulher de Zé Newton. Quando puder me escreva:muellercosta@gmail.com [14.ago.2017]

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  2. Queria muito ter vivido esse tempo mas infelizmente não vivi, nasci em 1974, portanto só fui começar a sair na década de 90, e esse tempo já era um passado distante. Uma pena!

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  3. Caro Facó,
    Obrigado, muito obrigado pelo Post Anjo Azul.
    Aqui discorrerei na medida que as lembranças forem me chegando e comentando algumas colocações suas.
    O imagino com minha idade, 72, e viajei com suas lembranças em relação à entrega da chave de casa aos adolescentes. A minha recebi aos 15 anos, além da chave, que intrinsecamente significava poder desaparecer na sexta-feira, retornando na segunda pela manhã, o que sempre fiz com alegria. Ah sim, além da chave, meu pai, chocando toda família, também me presenteou com um isqueiro Monopol, liberando-me para que fumasse em sua frente.
    Frequentei muito o Anjo Azul, morava no Largo Dois de Julho. Já viu, né. Tabaris nem se fala. Quando os puteiros da Gameleira fechavam, pegávamos nossas moças e para lá partíamos. Sim, aos 16 anos eu tinha minha "moça", uma morena deliciosa chamada Judite. Por ser ciumentíssima, não aceitava que eu recebesse "regalias" de suas colegas de trabalho. Muitas foram as brigas que presenciei originadas pelo ciúmes dela. Senti falta de você citar não apenas a Gameleira como o número 28 de uma rua transversal à Ladeira da Praça, cujo nome me esqueço. São muitos anos, desde 1965 residindo no RJ.
    Também senti falta de você citar duas figuras folclóricas de nosso tempo: Floripedes (que chamávamos Floripis) e Lamentável. Dois folclóricos viados assumidos que circulavam em Salvado. Floripedes trabalhava de garçom (faz tudo) na Gameleira. Lamentável, circulava na noite sempre encaixando em suas conversas a palavra lamentável, daí seu apelido. Seu post também me fez ter muitas saudades do 63 e do
    Varandá. Voltando ao Anjo Azul, lembro-me que pouco antes de mudar-me para o RJ, lá vi Maria Betania e Caetano. Carlos Bastos, Genaro, eu via muito circulando no Largo 2 de Julho. Maravilhosos artistas. Também frequentei as festas, grandes festas dos terreiros citados, principalmente o de Menininha do Gantois e Neive Branca.
    De Mestre Pastinha fui aluno e muito curti nossa capoeira Angola na companhia de meu amigo/irmão Gildo Alfinete, herdeiro de todos legados do Mestre. Cines Guarani, Jandaia, Pax e dois que não lembro dos nomes no Maciel de baixo e no de cima, frequentei muito.
    Enfim, mais uma vez agradeço-lhe pela lembranças maravilhosas. Revivi minha adolescência.
    Forte abraço.
    N.B. Via de regra, no máximo de dois em dois anos, volto a Salvador. Gostaria muito de conversarmos, recordarmos nossas juventudes.

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