Crônica de Luiz Carlos Facó
Da noite já era amigo
desde a adolescência. Habitualmente, nele encontrava os melhores momentos para
meditar, estudar, ler. Ela me inspirava, excitava. Éramos cumplices. Dando-me tanto,
só podia retribuir-lhe com o meu amor. Pressentia no seu silêncio, uma oração,
nos seus gemidos, um pedido. Qual? Quisera saber para atendê-la.
Aos
dezessete anos era liberto. Recebi de meus pais a chave da porta de casa. Em um
costume reproduzido por gerações para emancipar os filhos do sexo masculino e
dizer-lhes, de maneira indireta, vocês se tornaram homens. Estão aptos a tomar
decisões. Têm responsabilidade. Usem-na sem economizar. Confiamos no critério
que possuem para conduzir suas ações. Não nos decepcionem. Numa tradição que
subtraía daquele ato o simples formalismo para imergi-lo no simbolismo.
Com as
filhas o processo tinha perfil análogo, embora se revestisse de grande pompa.
Os pais apresentavam-nas, ao atingirem quinze anos, após a menarca, em
suntuosas festas, à sociedade, movidos pelos mesmos sentimentos daqueles que
isentaram da tutela os seus mancebos.
Carlos Bastos
Hoje tudo
mudou. O baile da debutante em muitos casos foi substituído por um passeio a
Miami. Ou pela promessa de um carro como presente, tão logo a mocinha se
habilite como motorista. As chaves da
casa são entregues aos filhos como expressão de um processo corriqueiro e
prático. Desapareceu aquela conotação simbólica. A modernidade, insolitamente,
num anto antropofágico, deglutiu aqueles valores até então reverenciados.
Feitas estas
considerações, quiçá desnecessárias, mas retratos de épocas, voltemos ao
principal.
Da noite já
era amigo desde a adolescência. Habitualmente, nele encontrava os melhores
momentos para meditar, estudar, ler. Ela me inspirava, excitava. Éramos
cumplices. Dando-me tanto, só podia retribuir-lhe com o meu amor. Pressentia no
seu silêncio, uma oração, nos seus gemidos, um pedido. Qual? Quisera saber para
atendê-la. Nem as suas sombras projetando fantasmagorias, assustava-me.
Tomava-as como uma de suas brincadeiras. Misteriosa nunca foi para mim.
Brincalhona, por certo. De tanto senti-la e procurar entendê-la tornei-me, até
hoje, um notívago obstinado. Só a noite me apaixona. Porque ela me mostra o céu
com todos os seus astros, fazendo-me refletir como sou ínfimo diante de tanta
grandeza: mero pó de estrela.
Amante dela
e com diploma de alforriado em mãos, com tibieza, passos inseguros, passei a
explorar a vida noturna de Salvador.
Mural de Carlos Bastos
no interior do Anjo Azul – Rua do Cabeça
O caminho a
percorrer era imenso e variado. Ia do bar Anjo Azul, no Cabeça, ao Barroco, na
Ladeira do Mauá, da boate Cloc, na Rua Democrata, ao inferninho Carijó, na
Cipriano Barata; do Tabaris, na Praça Castro Alves, ao Rumba Dancing, na Rua da
Misericórdia; do Varandá, na ladeira do Pau da Bandeira ao restaurante Cacique;
do XK Bar, na Vitória, à Boate Xangô, no Hotel da Bahia; da Churrascaria Ide,
na Ladeira 7 de Setembro, ao 63, na Ladeira da Montanha, ou mesmo ao Beco do
Curriachito, onde se encontravam os castelos e as mulheres que trabalhavam na
noite. Passando pelas festas nos Terreiros de Candomblé Axé Apo Afonjá, em São
Gonçalo do Retiro; Olga de Alaketo, na Rua Luis Anselmo; Casa Branca, na Vasco
da Gama; Neve Branca, em Campinas de Brotas; Carolina da Silva Sá, na Travessa
da Paz; Gantois, no Alto do Gantois, Federação.
O leque de
opções não findava aí. Havia os cinemas, a exemplo do Cine Teatro Guarany, hoje
Glauber Rocha, algumas vezes apresentando peças como as” Árvores Morrem de Pé”,
“Deus lhe Pague”, “A Figueira do Inferno”, em temporadas marcantes, com atores
e atrizes do porte de Dulcina, Odilon e Conchita de Morais, Procópio Ferreira,
Eva Tudor, Gilda de Abreu, Alma Flora, Jaime Costa, Cacilda Becker, Cleide
Iáconis, Maria Della Costa. O Excelsior, Liceu, Cine Teatro Oceania, Glória,
Itapagipe, Jandaia, Aliança, Popular, Santo Antônio, os cinco últimos com uma
programação que reunia um cinejornal, um série e dois longas metragens. As
academias de capoeira dos Mestres Pastinha e Canjiquinha, zelosos seguidores
das lutas criadas pelos seus longevos, a capoeira d’Angola, e a do Mestre
Bimba, o imortal criador da modalidade regional. Além dos clubes sociais:
Associação Atlética da Bahia, Iate Clube da Bahia, Baiano de Teniis Fantoches
da Euterpe, Cruz Vermelha, Inocentes em Progresso, Palmeiras da Barra, Sírio
Libanês, Casa da Itália e Clube Inglês.
Cine Teatro Guarany –
Praça Castro Alves
Como já
frequentava as festas do Iate, Baiano e Associação, resolvi fazer minha estreia
naquele iluminado circuito indo ao Tabaris Night Club. Do qual me tornei, com o
passar do tempo, assíduo frequentador. A escolha não poderia ter sido mais
perfeita. A casa, feérica, abrigava uma enorme quantidade de clientes.
Adequadamente bem vestidos. Os mais abastados, em mesas profusamente adornadas
por belíssimas mulheres. Trajadas com vestidos colantes e decotes provocantes,
transpirando sensualidade. Algumas argentinas, paraguaias, mas a maior parte
nordestinas fazendo-se passar por cariocas ou paulistas. Disponíveis para
acompanha-los numa rodada de bebida, numa dança e no final da madrugada, quem
sabe, num libidinoso, desregrado encontro sexual. Consórcio previsível de dois
corpos. Um forte, desejoso de submeter exigir. O outro, pronto a aceitar,
conceder.
Da orquestra
vinham os acordes de uma rumba, chá-chá-chá, de um dolente samba canção, bolero
ou um inesquecível e lascivo tango. Possibilitando que os pares volteassem
libertinamente enleados pelo salão e dessem mostras de suas habilidades na arte
de dançar.
As damas do Tabaris
Night Club
Acaso
pudesse definir os envolvidos naquela noitada, diria tratar-se de um grupo
heterogêneo, constituído de médicos, advogados, comerciantes, funcionários
públicos, grandes empresários, arrivistas, homossexuais, mulheres de “vida
fácil”, cuja única preocupação era o divertimento. Desígnio que os unia numa
camaradagem quase fraternal. Dando vez a que todos transitassem entre as
diversas mesas. Quer para troca de um cumprimento ou para atender a um convite
para sorver uma dose de “cuba libre”, ou um champanha. Esta companheira
obrigatória dos cacauicultores, fumageiros, banqueiros do jogo do bicho e
endinheirados.
Poderia
citar nominalmente muitos dos contumazes clientes do Tabaris. Não o fare.
Permito-me uma exceção, por se tratar de uma personalidade inconfundível da
nossa terra. Chamava-se Francisco (Chiquito) Baggi. Filho de tradicional
família baiana, foi em tenra idade acometido de paralisia infantil, cuja
sequela principal lhe tolhera os movimentos das pernas. Nem por isso renunciara
aos prazeres da vida. Portando um par de muletas, daí o apelido de Chiquito Bengala,
com dificuldade movimentava-se em busca de diversão. Homossexual assumido,
enfrentava com coragem s discriminação e os maus humores de uma sociedade cujos
cânones eram tradicionalistas. E o fazia de maneira escandalosa. Maquiava-se.
Cobria o rosto com base, ruge. Os lábios com batom, definindo as sobrancelhas
com lápis. O mesmo que usava para disfarçar a calva pronunciada. Malgrado os
tropeços que encarava, e eram muitos, aparentava ser uma figura cativante,
simpática, alegre, dando vida aos ambientes em que convivia, com seus ditos
chistosos, o gesticular afetado.
Cine Jandaia – Baixa dos
Sapateiros
Falar dos
demais seria contar histórias burlescas, ridículas, que seriam mais apropriadas
nas trovas ferinas dos repentistas.
A
culminância de toda aquela festa sublinhava-se pela apresentação de magníficos
espetáculos. Protagonizados por artistas e grupos famosos, dentre os quais o
mais requisitado era o balé do coreógrafo Evandro Castro Lima, mais tarde
transformado em costureiro e desfilante de fantasias de luxo nos grandes bailes
de carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A apoteose
de tanta folia, prazeroso divertimento, para aqueles com pouco dinheiro como
eu, só se concretizava quando uma daquelas damas da noite o escolhia como sob a
promessa de dividir a sua alcova. Sem a intermediação do vil metal. Era a
glória. Divulgada em cantos e recantos por meses a fio, pelo favorecido.
Falar da
noite de Salvador sem dedicar algumas letras ao Anjo Azul é cometer pecado sem
remissão.
Se entre nós
ainda estivessem Odorico Tavares, João Baptista Caribé, Mirabeau Sampaio e
Norma, sua mulher, Agenor Meireles, os irmaõs Décio e Durval Seabra, Carlos
Eduardo da Rocha, Genaro de Carvalho, o muralista Caribé, Waldemar e Elza
Holsgrafe, Francisco Amado, iam me dar razão. Fariam coro da minha asserção.
Como não
posso invocar-lhes o testemunho, convoco os que podem dá-lo: Sante Scaldaferri,
Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Lô conde e Julinha, Calazans Neto, Rubico
Campos, Nair de Carvalho, o famoso fotógrafo Valter Lessa, excepcional artista
e bom papo, e de uma centena de admiradores do bar e restaurante da rua do
Cabeça.
Dirão, em
coro, que o Anjo Azul era o local de encontro mais requisitado de Salvador.
Diferindo dos demais pela decoração com móveis antigos, iluminação mortiça
azulada, imagens barrocas de vários santos expostos juntamente com quadros de
Carlos Bastos, numa simbiose perfeita. Tudo arrematado pela fidalguia de José
Pedreira, seu proprietário, cumulando de atenções amigos e clientes. Pelo cardápio
escolhido com esmero, e exóticos drinques, dentre os quais sobressaía o famoso
Xixi de Anjo. Servido em toscas cálices de cerâmica, os famosos caxixis,
produzidos pela habilidade dos artesãos de Maragogipinho.
Das
dezessete horas em diante, até a madrugada, aquele ponto se tornava o centro
político, cultural e artístico da Bahia. E, por que não dizer, da boêmia.
Pena não ter
durado até os dias atuais. Porventura conseguisse, seria mais um patrimônio a
ser tombado, pois revelador da nosso cultura, dos nossos usos e costumes.
Assim era a
vida noturna de Salvador. Reluzente, segura, feliz, pacífica, própria para
travar conhecimentos, estabelecer boas amizades, sobretudo para amar e fazer
amor, às claras, às escondidas ou no escurinho dos cinemas.
Bravos, amigo Facó.
ResponderExcluirGostaria de conhecer maid textos sobre o passadao desta Cidade da Bahia, que os tecnocratas chamam de Soteropolis e o poete Fernando da Rocha Peres chama de Salvadolores.
Aqui escreve Lourenço Mueller, irmão de Suzanna, ex mulher de Zé Newton. Quando puder me escreva:muellercosta@gmail.com [14.ago.2017]
Queria muito ter vivido esse tempo mas infelizmente não vivi, nasci em 1974, portanto só fui começar a sair na década de 90, e esse tempo já era um passado distante. Uma pena!
ResponderExcluirCaro Facó,
ResponderExcluirObrigado, muito obrigado pelo Post Anjo Azul.
Aqui discorrerei na medida que as lembranças forem me chegando e comentando algumas colocações suas.
O imagino com minha idade, 72, e viajei com suas lembranças em relação à entrega da chave de casa aos adolescentes. A minha recebi aos 15 anos, além da chave, que intrinsecamente significava poder desaparecer na sexta-feira, retornando na segunda pela manhã, o que sempre fiz com alegria. Ah sim, além da chave, meu pai, chocando toda família, também me presenteou com um isqueiro Monopol, liberando-me para que fumasse em sua frente.
Frequentei muito o Anjo Azul, morava no Largo Dois de Julho. Já viu, né. Tabaris nem se fala. Quando os puteiros da Gameleira fechavam, pegávamos nossas moças e para lá partíamos. Sim, aos 16 anos eu tinha minha "moça", uma morena deliciosa chamada Judite. Por ser ciumentíssima, não aceitava que eu recebesse "regalias" de suas colegas de trabalho. Muitas foram as brigas que presenciei originadas pelo ciúmes dela. Senti falta de você citar não apenas a Gameleira como o número 28 de uma rua transversal à Ladeira da Praça, cujo nome me esqueço. São muitos anos, desde 1965 residindo no RJ.
Também senti falta de você citar duas figuras folclóricas de nosso tempo: Floripedes (que chamávamos Floripis) e Lamentável. Dois folclóricos viados assumidos que circulavam em Salvado. Floripedes trabalhava de garçom (faz tudo) na Gameleira. Lamentável, circulava na noite sempre encaixando em suas conversas a palavra lamentável, daí seu apelido. Seu post também me fez ter muitas saudades do 63 e do
Varandá. Voltando ao Anjo Azul, lembro-me que pouco antes de mudar-me para o RJ, lá vi Maria Betania e Caetano. Carlos Bastos, Genaro, eu via muito circulando no Largo 2 de Julho. Maravilhosos artistas. Também frequentei as festas, grandes festas dos terreiros citados, principalmente o de Menininha do Gantois e Neive Branca.
De Mestre Pastinha fui aluno e muito curti nossa capoeira Angola na companhia de meu amigo/irmão Gildo Alfinete, herdeiro de todos legados do Mestre. Cines Guarani, Jandaia, Pax e dois que não lembro dos nomes no Maciel de baixo e no de cima, frequentei muito.
Enfim, mais uma vez agradeço-lhe pela lembranças maravilhosas. Revivi minha adolescência.
Forte abraço.
N.B. Via de regra, no máximo de dois em dois anos, volto a Salvador. Gostaria muito de conversarmos, recordarmos nossas juventudes.