Cuíca de Santo Amaro – símbolo baiano do anarquismo e da irreverência
Atribuir ar de elegância àquela
personagem só se considerássemos a rosa graxa pespegada no alto da lapela e a
cartola equilibrada em sua cabeça, donde, a partir da aba, emergia uma
belíssima pena de pavão, como elementos definidores de distinção, graça,
donaire.
Crônica de LUIZ CARLOS FACÓ
Próximo
de embarcar rumo a Mar Grande, na lancha Gaivota, atracada à Rampa dos
Saveiros, confronte ao Mercado Modelo, minha atenção de Criança de sete ou oito
anos foi atraída para uma figura desmedidamente curiosa.
Tratava-se
de um homem a caminho da maturidade. Distinguindo-se pela baixa estatura,
compleição franzina, pele sem viço, cor de canela, bigode tão fino e ralo que
mais parecia um buço, escondendo os olhos sob a lente escura de bizarro óculos.
Compondo o seu guarda roupa com uma calça preta listrada, surrada, mas limpa,
bem vincada, segura à cintura por uma faixa vermelha. Camisa branca, engomada, de colarinho duro,
pontas viradas, sustentando sem atrativos, uma gravata borboleta preta.
Acessórios contemplados por um fraque esmaecido, particularidade impeditiva de
deduzir-lhe a cor original, com caimento aterrissando nos joelhos. Avivado, na
lapela, por tecido cuja cor era semelhante ao da cinta.
Lá
estava ele plantado ao solo por um par de botas, que, de tão envelhecidas, não
havia como esconder os riscos e as rugas que apresentavam. Mesmo surradas e
gastas, reluziam. Revelando a esperança de servi-lo por largo tempo.
Atribuir
ar de elegância àquela personagem só se considerássemos a rosa graxa pespegada
no alto da lapela e a cartola equilibrada em sua cabeça, donde, a partir da
aba, emergia uma belíssima pena de pavão, como elementos definidores de
distinção, graça, donaire.
Confundindo-o
com Carlitos, o imortal personagem criado por Charlie Chaplin, vistos repetidas
vezes no cinema, procurei explicações para as minhas dúvidas. Meu pai foi o
escolhido para esclarecê-las. Este, depois de uma sonora gargalhada, puxou-me
pelo braço, levando-me em direção daquele emblemático espécime, representativo
de um gênero extinto ou por extinguir-se, fez-se explícito:
-
Ele é um vate. O grande cronista popular da Bahia.
Naqueles
folhetos, disse apontando para os que eram oferecidos pelo poeta, em venda aos
circunstante interessados, descreve em versos a tragédia, o burlesco, o
cotidiano da vida da nossa terra. Invectiva contra políticos que não o agradam.
Questiona suas posturas. Pressiona as autoridades constituídas, cobrando-lhes
ações em favor do povo. Nada lhe escapa. Nem mesmo os clérigos. Muitas pessoas
com significativas reputações, até então havidas como ilibadas, sofreram
ranhuras irreparáveis depois de aparecerem como personagens das suas histórias,
nesses cordéis que ele vende ao povo. No entanto, encarna a alma do nosso povo.
Seu nome é “ELE O TAL CUÍCA DE SANTO AMARO”.
Decorreram
mais uns dez anos para que nos deparássemos outra vez.
Taludo,
experimentando os prazeres do primeiro emprego no Serviço Florestal da Bahia,
adotei como prática ir ao trabalho utilizando o Elevador Lacerda.
Um
dia, de inopino, defronto-me com Cuíca mercadejando os seus folhetos entre os
usuários do Elevador. De pronto, minha memória, reproduziu a figura que
vislumbrara anos atrás. Nela, nada mudara. Só as roupas, com certeza. A despeito
de conservarem o mesmo estilo.
O
encontro propiciou uma correção importante. Cuíca não se parecia com o
mitológico Carlitos. Eu me enganara. Ele era o próprio Cantinflas. Excepcional
comediante do cinema mexicano, adorado pelas plateias do mundo inteiro. Não só
na aparência como no gestual.
No
vai e vem dos transeuntes fui tomado pela súbita vontade de adquirir um dos
folhetos que oferecia. Adquiri “O Homem que casou com um veado”, que guardo até
hoje. Eram sextilhas de rimas pobres, ingênuas, mas providas de humor, sacarmo,
ironia, deboche, zombaria e galhofa, como todas as que fez. Daquela obra trago
a lume os versos finais:
Aqui
dentro da Bahia
Branco...
preto ou mulato...
Como
é comum
Também
gostam deste prato
Além
de saboroso
Também
é muito barato.
Como
o mestre, Cuca
Foi
que o homem casado
Desprezou
mulher e filhos
Deixou
tudo abandonado
Com
a finalidade de morar com um veado.
Vá
a Itapuã
Quem
tiver interessado
Lá
procure saber
Qual
o homem casado
Que
abandonou a esposa
Pra
morar com um veado
De
bezerros e veados
Vive
cheia a capital
O
chefe de polícia
Que
é um homem de moral
Devia
recolher
Esses
bichos no curral.
A
partir daí nos encontros se tornaram rotineiros e firmamos camaradagem. Mas
refreei a compra de novos cordéis.
Sua
produção copiosa causaria danos às minhas finanças, caso insistisse, em
adquiri-la.
Um
marido que pulava a cerca, um padre que mantinha uma relação amorosa, um
prefeito municipal incorreto para com os seus deveres, um clássico entre o
Bahia e o Vitória, uma festa com desfecho imprevisto, um julgamento polêmico, o
aumento do salário mínimo, sua aversão aos adversários políticos do
“getulismo”, se tornavam assuntos para novos folhetos. Criações mantenedoras da
sua sobrevivência e da família.
Quando
mudei de emprego houve, um hiato na nossa relação Até o dia em que ele me
localizou. Daí em diante, diariamente, ao fim da tarde recebia a sua visita. E
não raro sofria uma “facada”.
Ao
contrário de muitos, jamais duvidei da sua correção. Pouco antes de uma das
eleições na qual meu pai concorria para Deputado Estadual, ele me procurou
pedindo uma foto dele como candidato. Dei-a sem relutância. Confiava nele. Alguns
dias depois ei-lo de volta sobraçando uma boa quantidade de do folheto
intitulado “O pau comeu em Alagoas”, cuja contra capa era ilustrada pela foto
que lhe ofertara e os seguintes dizeres: “Para Deputado Estadual – vote em José
Carlos Facó”.
Preenchi
um cheque referente ao total dos exemplares, e ao entregá-lo, para minha
admiração e surpresa, ouvi da sua voz rumorejante e embargada:
-
Vou aceitar este pagamento pelas dificuldades que atravesso, mas creia que esta
á a única colaboração que posso prestar à vitória do seu pai, a quem admiro e
respeito
Quando
relatei a amigos que desejaria escrever sobre Cuíca, me desaconselharam. Suas
alegações eram várias.
Uma
delas dizia que era uma figura polêmica, que muitos já discorreram sobre ele de
forma brilhante. Jorge Amado o fez personagem em dois dos seus mais famosos
romances. Orígenes Lessa o abrangeu na obra Literatura Popular em Verso. Os
saudosos jornalistas Odorico Tavares, Adroaldo Ribeiro Costa e Carlos Coqueijo
Costa, cuja contribuição à nossa cultura é relevante, em corretíssimas
crônicas. As renomadas autoras Hildegardes Vianna e Edilene Matos: também o
fizeram de maneira irreprochável.
Outra:
que o espaço decorrido da minha infância até aqui era um mero sonho que devia
jazer sepultado na cova rasa do meu coração. Era uma delícia, extinguiu-se, era
uma luz, apagou-se.
Da
minha teimosia e discordância àquelas teses, nasceu esta crônica. Pode não ter
o brilho daquelas tantas que a precederam. Ser mais uma entre muitas. Mas
lendo-a com atenção, dela se infere, daí a grande importância para o autor, que
sempre devemos recordar dos amigos, principalmente daquele que é um símbolo da
Bahia anárquica e irreverente, e que rememorar o passado é investir no futuro.
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