quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O FOGO DO TARTARUGA

 Uma lenda cearense

Esperidião de Queiroz Lima auxiliado e acrescentado por Luiz Carlos Facó


Conta-nos Esperidião de Queiroz Lima, no livro de sua autoria “Antiga Família do Sertão”, ed. 1946, genealogia romanceada da família Queiroz/Facó, uma lenda cearense quase bicentenária, que, de tão intrigante, resolvi, nas palavras do autor, repassá-las a todos os leitores deste Blog.



(No Ceará) a época era de violências inauditas. E numa de suas bandas, lá pelos  cafundós, movimentava-se um grupo de pessoas. Algumas em montarias, outras tantas arrastando areia. Desavieram-se, dois deles.  Coisa boba. Contudo, sob qualquer pretexto, prenderam e algemaram o que iniciou a pendenga, o violento Tartaruga, que vociferara contra seu companheiro Carnaúba, e conduziram-no escoltado para Fortaleza.
Tendo marchado apenas três léguas, chegando à margem da lagoa da Ponciana, na Fazenda Flora, arrancharam-se à sombra de um grande Juazeiro, que ainda hoje existe, velho e mutilado.


Compunha-se a escolta de oito homens; dois chefes, Antonio Tomas de Lima, Tartaruga, o cabra Carnaúba e três agregados ou escravos.
Durante essa parada, tornaram-se mais ofensivas as invectivas do preso. Carnaúba então pediu aos chefes que o soltassem, para que os dois se medissem em luta singular. Mas a uma injúria mais pesada, um dos chefes, Marcolino, deu uma ordem a Antonio Tomaz, que desfechou um tiro de bacamarte no ouvido de Tartaruga, que caiu fulminado. E enterraram-no ali mesmo, em cova rasa, pois que logo deu na água.
Esse crime, como sempre acontecia, ficou impune. Mas o povo daquelas ribeiras guardou a história, espalhada através tradição oral, da morte de Tartaruga, a quem tributa, em geral, sentimentos de simpatia e compaixão.
Essa tragédia, apesar de ocorrida a tanto tempo e de ser fato corriqueiro naquele vão de tempo, mantém-se particularmente viva na memória do povo por uma razão muito especial: no local do crime, todos os anos, no começo do inverno aparece o fogo do Tartaruga.
Alguns moradores da vizinhança, que o viram mais de perto, descrevem o fogo do Tartaruga como uma tocha, que se ergue do chão até certa altura, baixa depois um tanto, sobe novamente a uma altura menor, torna a baixar e desaparece.
Muita gente nos carnaubais, nas fazendas vizinhas, na época própria, tem visto quando a noite aperta, um clarão na lagoa da Ponciana. Quem primeiro o avista grita para os companheiros:


- Olha o fogo do Tartaruga!
E todos correm a vê-lo, e percebem a direção apontada o clarão conhecido.
Quando, no princípio das chuvas, aparece o fogo do Tartaruga mais persistente e mais nítido, é considerado por toda gente como prenúncio de bom inverno.
Naqueles sertões na existência real desse fogo misterioso; variam, porém, as explicações do fenômeno. Dizem os beatos que tendo o Tartaruga morrido em estado de pecado mortal, sua alma ainda hoje pena no fogo do purgatório. Afirmam que é um fogo sagrado, que assinala o local do crime perverso, que, ficou impune. Os mais sabidos explicam que é fogo fátuo, produzida por matéria em decomposição. Falam outros, em fosforescência da lama da lagoa, molhada com as primeiras chuvas.
Os mais céticos, não obstante as respeitáveis testemunhas de vista, admitem que tudo é crendice, criação ou mentira.
Mas no consenso do povo da região o fogo do Tartaruga é uma perfeita realidade, pois que é visto, periodicamente, há mais de um século e meio.

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