segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O NOCAUTE

O chão se fez cama para acomodar-me adormecido. Os amigos enfermeiros para prestar os primeiros socorros.

Luiz Carlos Facó
Extraído do livro Garimpando Lembranças


Era dezembro. Mês de férias escolares. De veraneio.
Todas as providências haviam sido tomadas para a nossa partida. O destino: a Ilha de Itaparica, onde, na localidade da Ilhota, possuíamos uma casa.
Dorico, o dono do saveiro que, habitualmente, nos transportava, avisado com antecedência, só aguardava ordens para fazer subir o poita e içar velas.
Lembro-me de que, neste ano, nos idos da década de cinquenta, a travessia, do continente à ilha, foi particularmente demorada. A calmaria, a causa.

Depois de três longas horas de viagem, sob sol inclemente, calor abrasador, ainda nos vimos, ao chegar, na contingência de ter acesso à praia caminhando pelo mar. A maré estava baixa, impedindo a atracação do veleiro à ponte de desembarque.
Incidentes irrelevantes que não afetaram nosso ânimo e prazer. Acalentávamos vivenciar mais um período bonançoso, rever amigos, gozar as delícias paradisíacas que o local nos oferecia, enfim, retemperar forças e espírito para as labutas escolares, diárias, que nos aguardavam a partir do mês de março vindouro.
Um dia depois de instalados no nosso amado recanto, eu e meu irmão saímos à procura dos amigos. Antes mesmo de cumprimentarmos os moradores mais tradicionais da localidade, nossos sedutores anfitriões. Senhor Pedro, dono das lanchas de carreira Águia e Gaivota, que faziam o percurso regular entre Salvador e a ilha, e uma rudimentar fábrica de cal – caieira. A quem chamávamos de Pedro Piroca, e, irreverentemente, toda a vez que o encontrávamos, recitávamos, gratuitamente, estes maldosos versinhos, coisas de crianças:
“Pedro Piroca
Nariz de taboca,
Vendeu sua mãe,
Por dez réis de pipoca”.
E dona Zuzu, uma senhora bonachona, proprietária de várias casas no local e um pomar maravilhoso, de onde provinham os seus recursos para suster sua numerosa prole constituída de nove filhos.
Entretanto, naquele momento, nosso interesse se concentrava em rever os mais íntimos companheiros, que não víamos há um ano, filhos das famílias dos veranistas. Elas, bem poucas. Umas trinta no máximo. Todas, mantendo entre si, amizade calcada na lealdade, dignidade e reciprocidade. A tal ponto, que tínhamos consciência de que nossas casas eram complementos umas das outras. E nos sentíamos bem em qualquer delas. Respeitados que éramos com carinho insuspeito. Tanto fazia estar na casa de Pio Bittencourt, Arquelau Pompílio de Abreu, Edgar, Matta, Álvaro e José Rosa, Emídio Santos, Mendonça Filho, Teixeira Gomes, como na nossa, recebíamos o mesmo tipo de afago e atenções.
Naquele dia a primeira casa a ser visitada foi a de Teixeira Gomes. Proprietário do Cinema Jandaia e de uma lancha do mesmo nome. Cujo filho Joca, o hoje famoso jornalista e escritor João Calos Teixeira Gomes, mais conhecido nas rodas literárias como “Pena de Aço”, era um dos nossos queridos amigos.
A surpresa do encontro com a maioria deles, ali reunidos, não foi maior do que quando constatarmos, no avarandado, a existência de um rinque de boxe, apto à prática da nobre arte.
Pela expressão dos jovens, a novidade havia agradado. Todos queriam subir ao tablado. Na euforia esmurravam um saco de areia dependurado no teto. Ensaiavam golpes e desafiavam uns aos outros para competições. Embates acirrados, que em geral terminavam em desentendimentos. O perdedor, sempre machucado, jurava vingança contra o vencedor. Ameaça logo esquecida.
Depois de inúmeros confrontos pela manhã, Jaiminho versus meu irmão, Babi contra Carlinhos Mendonça, Vilmar em contradição a Dilson, fui chamado a competir. Meu adversário seria Joca.
Era a minha estreia num esporte que jamais supusera praticar. Mesmo assim fui tomado de um imenso desejo de vencer. Por que não? A vitória caberia ao mais habilidoso, ou ao mais forte. E as minhas chances não eram pequenas. Seria o vencedor. Meu físico era mais avantajado que o do adversário. Eu possuía uns vinte quilos a mais que ele.
E os preparativos se fizeram. Deram-me um par de luvas vermelhas com algumas “onças”, medida de peso, de origem inglesa, quantas não sei. Eram muitas. Ainda bem que nenhuma delas urrava. Mas, sentia meus braços quase vergarem ao suportar o peso de todas elas.
Babi apelido de Walmir Peixoto Santos, sempre moleque, se fez o apresentador do espetáculo. Aos berros, no centro do tablado, anunciava a luta da temporada. No canto esquerdo, Joca, o imbatível. No direito, o gordinho mais famoso da Ilhota. . Lutadores ao combate. Regras inexistiam. Ganhava quem derrubasse o contendor primeiro.
No esporte, a condição física é o fator mais importante. Requer movimentação constante. Por isso meu adversário saltitava à minha frente, sem esmorecer, possuidor de um estado atlético muito melhor que o meu. Doutra parte, ao procurar imitá-lo, tomava consciência que o cansaço provocado por aquela dança infernal, poderia derrubar-me antes mesmo de ser atingido por qualquer tipo de golpe.
Não sei quanto tempo durou a competição. Provavelmente, muito pouco. O fato era que não havia intervalos para descanso dos contendores. Interrupção, só com a desistência de um deles. Assim, a luta poderia acabar em um, cinco, dez ou mais minutos.
No rinque travávamos um combate onde à tônica eram as pequenas escaramuças. Avanços e recuos. Ora um soco no ombro, um empurrão, uns agarra agarra, até que fui atingido por um terrível e potente direto no queixo.
O chão se fez cama para acomodar-me adormecido. Os amigos enfermeiros para prestar-me os primeiros socorros.
Da luta restaram dois hematomas, no queixo e na boca, curados nas semanas subsequentes, com “Água Maravilha”, panaceia miraculosa, vendida nas farmácias e utilizada por todas as mães para aliviar os filhos das sequelas causadas pelas queimaduras, impinges, frieiras, traumatismos e um sem número de outras enfermidades. Do episódio ganhei o apelido de Zé Luiz, alusão irônica ao famoso Joe Louis, campeão norte americano e mundial de boxe na categoria peso pesado.
Mais duas sábias lições. Se sobrevivi àquele nocaute tão violento, duro, sofrido, por certo resistiria aos demais que pudessem ocorrer ao longo da minha vida. E que nas liças só devemos cobrar os loiros da vitória depois de alcançá-las.

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