O chão se fez cama para
acomodar-me adormecido. Os amigos enfermeiros para prestar os primeiros
socorros.
Luiz Carlos Facó
Extraído do livro
Garimpando Lembranças
Era
dezembro. Mês de férias escolares. De veraneio.
Todas as
providências haviam sido tomadas para a nossa partida. O destino: a Ilha de
Itaparica, onde, na localidade da Ilhota, possuíamos uma casa.
Dorico, o
dono do saveiro que, habitualmente, nos transportava, avisado com antecedência,
só aguardava ordens para fazer subir o poita e içar velas.
Lembro-me de
que, neste ano, nos idos da década de cinquenta, a travessia, do continente à
ilha, foi particularmente demorada. A calmaria, a causa.
Depois de
três longas horas de viagem, sob sol inclemente, calor abrasador, ainda nos vimos,
ao chegar, na contingência de ter acesso à praia caminhando pelo mar. A maré
estava baixa, impedindo a atracação do veleiro à ponte de desembarque.
Incidentes
irrelevantes que não afetaram nosso ânimo e prazer. Acalentávamos vivenciar
mais um período bonançoso, rever amigos, gozar as delícias paradisíacas que o
local nos oferecia, enfim, retemperar forças e espírito para as labutas
escolares, diárias, que nos aguardavam a partir do mês de março vindouro.
Um dia
depois de instalados no nosso amado recanto, eu e meu irmão saímos à procura
dos amigos. Antes mesmo de cumprimentarmos os moradores mais tradicionais da
localidade, nossos sedutores anfitriões. Senhor Pedro, dono das lanchas de
carreira Águia e Gaivota, que faziam o percurso regular entre Salvador e a
ilha, e uma rudimentar fábrica de cal – caieira. A quem chamávamos de Pedro
Piroca, e, irreverentemente, toda a vez que o encontrávamos, recitávamos,
gratuitamente, estes maldosos versinhos, coisas de crianças:
“Pedro
Piroca
Nariz de
taboca,
Vendeu sua
mãe,
Por dez réis
de pipoca”.
E dona Zuzu,
uma senhora bonachona, proprietária de várias casas no local e um pomar
maravilhoso, de onde provinham os seus recursos para suster sua numerosa prole
constituída de nove filhos.
Entretanto,
naquele momento, nosso interesse se concentrava em rever os mais íntimos
companheiros, que não víamos há um ano, filhos das famílias dos veranistas.
Elas, bem poucas. Umas trinta no máximo. Todas, mantendo entre si, amizade
calcada na lealdade, dignidade e reciprocidade. A tal ponto, que tínhamos
consciência de que nossas casas eram complementos umas das outras. E nos
sentíamos bem em qualquer delas. Respeitados que éramos com carinho insuspeito.
Tanto fazia estar na casa de Pio Bittencourt, Arquelau Pompílio de Abreu,
Edgar, Matta, Álvaro e José Rosa, Emídio Santos, Mendonça Filho, Teixeira
Gomes, como na nossa, recebíamos o mesmo tipo de afago e atenções.
Naquele dia
a primeira casa a ser visitada foi a de Teixeira Gomes. Proprietário do Cinema
Jandaia e de uma lancha do mesmo nome. Cujo filho Joca, o hoje famoso
jornalista e escritor João Calos Teixeira Gomes, mais conhecido nas rodas
literárias como “Pena de Aço”, era um dos nossos queridos amigos.
A surpresa
do encontro com a maioria deles, ali reunidos, não foi maior do que quando
constatarmos, no avarandado, a existência de um rinque de boxe, apto à prática
da nobre arte.
Pela
expressão dos jovens, a novidade havia agradado. Todos queriam subir ao
tablado. Na euforia esmurravam um saco de areia dependurado no teto. Ensaiavam
golpes e desafiavam uns aos outros para competições. Embates acirrados, que em
geral terminavam em desentendimentos. O perdedor, sempre machucado, jurava
vingança contra o vencedor. Ameaça logo esquecida.
Depois de
inúmeros confrontos pela manhã, Jaiminho versus meu irmão, Babi contra
Carlinhos Mendonça, Vilmar em contradição a Dilson, fui chamado a competir. Meu
adversário seria Joca.
Era a minha
estreia num esporte que jamais supusera praticar. Mesmo assim fui tomado de um
imenso desejo de vencer. Por que não? A vitória caberia ao mais habilidoso, ou
ao mais forte. E as minhas chances não eram pequenas. Seria o vencedor. Meu
físico era mais avantajado que o do adversário. Eu possuía uns vinte quilos a mais
que ele.
E os
preparativos se fizeram. Deram-me um par de luvas vermelhas com algumas
“onças”, medida de peso, de origem inglesa, quantas não sei. Eram muitas. Ainda
bem que nenhuma delas urrava. Mas, sentia meus braços quase vergarem ao
suportar o peso de todas elas.
Babi apelido
de Walmir Peixoto Santos, sempre moleque, se fez o apresentador do espetáculo. Aos
berros, no centro do tablado, anunciava a luta da temporada. No canto esquerdo,
Joca, o imbatível. No direito, o gordinho mais famoso da Ilhota. . Lutadores ao
combate. Regras inexistiam. Ganhava quem derrubasse o contendor primeiro.
No esporte,
a condição física é o fator mais importante. Requer movimentação constante. Por
isso meu adversário saltitava à minha frente, sem esmorecer, possuidor de um
estado atlético muito melhor que o meu. Doutra parte, ao procurar imitá-lo,
tomava consciência que o cansaço provocado por aquela dança infernal, poderia
derrubar-me antes mesmo de ser atingido por qualquer tipo de golpe.
Não sei
quanto tempo durou a competição. Provavelmente, muito pouco. O fato era que não
havia intervalos para descanso dos contendores. Interrupção, só com a
desistência de um deles. Assim, a luta poderia acabar em um, cinco, dez ou mais
minutos.
No rinque
travávamos um combate onde à tônica eram as pequenas escaramuças. Avanços e
recuos. Ora um soco no ombro, um empurrão, uns agarra agarra, até que fui
atingido por um terrível e potente direto no queixo.
O chão se
fez cama para acomodar-me adormecido. Os amigos enfermeiros para prestar-me os
primeiros socorros.
Da luta
restaram dois hematomas, no queixo e na boca, curados nas semanas subsequentes,
com “Água Maravilha”, panaceia miraculosa, vendida nas farmácias e utilizada
por todas as mães para aliviar os filhos das sequelas causadas pelas
queimaduras, impinges, frieiras, traumatismos e um sem número de outras
enfermidades. Do episódio ganhei o apelido de Zé Luiz, alusão irônica ao famoso
Joe Louis, campeão norte americano e mundial de boxe na categoria peso pesado.
Mais duas
sábias lições. Se sobrevivi àquele nocaute tão violento, duro, sofrido, por
certo resistiria aos demais que pudessem ocorrer ao longo da minha vida. E que
nas liças só devemos cobrar os loiros da vitória depois de alcançá-las.
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