terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CADÊ MEUS BAGOS

 Um conto das barrancas do Rio São Francisco

Luiz Carlos Facó


Corria o final da década de 40, na vila de Santo Antônio da Glória do Curral dos Bois, município de Glória, na Bahia, limitado por Paulo Afonso, Rodelas e com os Estados de Alagoas e Pernambuco. Padre Santo, vigário do município, já ocupava o lugar da personalidade mais representativa da sociedade local. Mandava e desmandava em tudo e em todos. Algumas vezes, com ar autoritário e desmedida violência. Entrementes, o povo o adorava e o seguia cegamente. De tal sorte que, se alguém estivesse com uma constipação intestinal ou uma bruta caganeira o padre Santo determinasse soltar um peido, esse alguém, mesmo correndo o risco de passar vergonha, cagar-se, o desprendia, sem ranzinzar. Só sua irmã, Eponina, tinha coragem de peitá-lo. E o fazia com insolência. Sob as risotas do povo que, falando entre os dentes, exclamava: - Eta mulher arretada! Com essa, nem o diabo pode. Não nega a raça. O sangue quente de Lampião que lhe corre nas veias é combustível mais que aquele que fornece chama às nossas lamparinas. Um dia, acredite quem quiser, essa mulher enraba o irmão, tão acostumado a enrabar as mulheres damas.
Ademais era raçuda. Não corria da rinha. Quando entrava numa briga, era para matar ou morrer. Se, por dá cá aquela palha, o irmão passava a mão sobre a cabeça de um desafeto ou o perdoava, ela, irritada, gritava para ele: - Você é um cagão. Um padre de merda. Um borra-botas. Xingamentos, que o padre Santo ouvia cabisbaixo sem nunca contestá-los.
Eponina chamava a atenção de todos, quer pelo desequilíbrio de temperamento, quer pelo seu tipo físico. Sobre o marido, um zé-mané, rude agricultor, de magrém doentia, pelado de medo ao vê-la ou ouvi-la, exercia poder de mando. Também suas filhas, as donzelas mais cobiçadas da cidade, sofriam os rigores de sua ditadura abominável. As, as características maiores de Eponina consistiam numa bunda do tamanho da lua cheia e os seios fartos quais úberes de vacas leiteiras premiadas. À sua figura ninguém ficava indiferente. Seus inimigos, e eram muitos, corriam da sua presença. Os indiferentes, também. Medravam só em vê-la por perto. Já Damarides, a outra irmã do vigário, era uma solteirona convicta. Dócil, porém dotada de extrema coragem. Certa vez,  para dar fuga a Lampião e aos seus cabras, acoitados n sítio de seus pais, encarapitou-se numa árvore e enfrentou os “macacos” de uma volante que os perseguiam, com tiros de rifles, dando tempo  para o bando escapar. Afora a igreja, que tomara como refúgio, só venerava o irmão padre e a irmã, que a mantinha submissa aos seus caprichos. A saúde dela, no entanto não a favorecia. Tinha problemas digestivos, acometendo-a de constantes crises de flatulência. Vivia bufando. Durante as missas, às quais sem faltar a uma sequer, soltava um pum atrás do outro. Fedorentos. Insuportáveis. Tornava-se alvo dos olhares indignados dos fiéis. Ela, contudo, mantinha-se impassível. Dizia o povaréu da cidade que, dada a sua competência no mister, qualquer dia, com um traque, ela conseguiria entoar o hino nacional do princípio ao fim.
As filhas de Eponina, Violeta e Rosa, eram mandacarus florando na seca. Evidência de que ultrapassaram a puberdade, tornando-se mulheres. Com belas e largas ancas, prenúncio de que se tornariam ótimas parideiras. Graças aos seus encantos, eram desejadas por todos os homens da cidade. Velhos, moços, casados, arranjados e solteiros. Sobremaneira Violeta, a mais esperta das duas e cuja vaidade a induzia avermelhar os lábios e as maçãs do rosto com tinta de papel crepom vermelho, substituto ideal para o carmim que rareava na localidade. E a manter os cabelos sempre enfeitados com papelotes. Devota de Santo Antônio, ela não perdia uma novena em louvor ao santo. A ele rezava contrita na esperança de arranjar um marido ou, quem sabe, até um cabra macho para vadiar:
“Casai-me meu Santo Antônio,
Enquanto sou rapariga,
Pois o milho colhido tarde
Não dá palha nem espiga.

Meu Santo Antônio querido,
Eu vos peço por quem sois:
Dai-me o primeiro marido
Que outro arranjo depois.”
Amém

Um belo dia, não sei se por obra do destino ou pela força de suas preces ao casamenteiro, Violeta viu-se cara a cara com Zé do Birro. E, entre eles, nasceu, de imediato, uma forte e insopitável paixão. Zé, bom vaqueiro, vindo de Rodelas, era um caboclo alto, espadaúdo, bonito. Um tipo que encantava qualquer mulher. Corajoso no trabalho dominava as montarias de maneira exímia, fato que lhe propiciava, na região, conseguir bons empregos. Naquela oportunidade, era capataz da fazenda do coronel Santinho e, como tarefa, cabia-lhe ir à busca de rezes, bodes e cabras desgarradas do rebanho, embrenhadas pela caatinga, desbravada por ele com absoluta perícia e extrema destreza. Dadas as suas qualidades no trato das coisas do campo, consideravam-no confiável trabalhador e sortudo. Jamais houvera perdido um só animal que lhe fora confiado. O apelido de Zé do Birro ganhara das meretrizes sergipanas e pernambucanas que infestavam a Rua do Meio, a “zona” local. Graças ao enorme e grosso taco que possuía entre as pernas.  Adorado por todas elas.
Derribado pelas faceirices de Violeta, Zé, que só vinha à cidade às sextas-feiras, trazendo bois e bodes para o matadouro, passou a frequentá-la mais assiduamente sem dar ouvidos aos que o preveniam  que mexer com quaisquer das filhas de Eponina era o mesmo que meter mão em cumbuca.  Arrumaria problema. E dos brabos. Mas, como a conquista desconhece o perigo, aquelas advertências não faziam mossa à afoiteza do jovem amante.
Já Violeta, afogueada pelo amor nascente, se desdobrava para, ao cair da tarde, sair de casa e ir ao encontro do homem que lhe arrebatara os sentimento, principalmente o coração. Para Eponina, mentia deslavadamente, justificando suas repisadas escapadas. Ora dizia ir à igreja, ora à casa de uma amiga, ora à casa do tio padre. O que deixava a matrona ressabiada por saber por saber do interesse dele pela sobrinha. Pois, por dezenas de vezes, manifestara a amigos o desejo de tê-la sob os seus  cuidados. Teúda e manteúda.  Partilhando de sua cama. Comentário que deixava Eponina ouriçada. Mesmo intuindo que o padre Santo jamais a desafiaria, pois faltava-lhe coragem.
Os encontros entre o casal se amiudavam à medido que o desejo os envolvia. Sempre à margem do Velho Chico. Em alguma barroca que propiciasse absoluta discrição. Ali, trocavam beijos, intimidades. Num crescendo sem limites. Porquanto Violeta era fogosa tal qual égua no cio e Zé do Birro um garanhão de grande reputação. Descabaçara e emprenhara inúmeras donzelas da região. Há algum tempo, empreendera fuga desesperada de Salgueiro, Pernambuco, para não morrer por ter copulado com a mulher do prefeito. Mesmo assim, não se emendara. Tanto que só se encontrava com Violeta de “pau” feito. Para o gosto e o prazer dela. Resultando em mais uma desvirginada. O que é pior, numa embuchada.
Passados dois meses daqueles furtivos encontros, o resultado das travessuras do jovem par veio à tona. Os enjoos de Violeta denunciavam-nos. Ela engravidara. Fora tomada por mal irremediável. Estava “num beco sem saída”. Portanto, o melhor era contar tudo à mãe. Decisão que comunicou a Zé do Birro. Este, um aventureiro empedernido, acostumado a ir atrás das mulheres como ia ao encalço das rezes perdidas, num momento de reflexão pensou com os seus botões:  prefiro andar” légua de beiço” a enfrentar as consequências do meu ato. Vou cair no mundo. Pensado e feito. De madrugada, Zé arrumou seus cacaréus e meteu os pés nas trilhas, rezando o Credo para se livrar de todos os males e perigos que pudessem lhe advir.
Daquela retirada pusilânime, Violeta não tomara conhecimento, nem de leve imaginara. Por isso, na primeira oportunidade, contou a Eponina todo o drama que a assaltava. E o previsível aconteceu. Um deus-nos-acuda. A casa estremeceu como se sofresse um abalo sísmico. Eponina gritava, se abanava e desmaiava. Prometia vingança, caso não casasse a filha ofendida com o ofensor. Ou, jurava expulsá-la do convívio familiar, acaso não cumprisse o seu desejo.
Como sempre acontece em todos os lugares, mormente nos pequenos, a notícia da gravidez indesejada de Violeta ganhou pernas e se espelhou pela região. Era de domínio geral. Aqui e acolá só se falava disso. E a opinião popular acerca do lamentável se dividiu. Parte aplaudindo Zé do Birro, considerando-o herói. Macho com sangue nas ventas, capaz de enfrentar a mulher satanás. Outra, comedida, lamentando o acontecido, uma menina tão dócil, tão religiosa, de bons princípios, quem diria? Dessa turma saíram algumas pessoas no encalço de Zé. Desejavam preveni-lo da vingança que não tardaria alcançá-lo. Uma atitude fora de tempo, pois o malandro escafedera-se.   
Padre Santo, ao ouvir as rumorosas notícias do acontecido, partiu em visita à família da sobrinha infelicitada. Com ar displicente, esboçava, até, um sorriso sarcástico, matutando que em breve poderia levar Violeta até os seus lençóis. Malgrado tais conjecturas, ao cumprimentar a irmã, prometeu-lhe providências, dizendo-lhe: 
- A honra da família será salva. Palavras que soaram bem aos ouvidos de Eponina. Mas, para ele promessa não era dívida, esquivou-se, nos dias subsequentes, a retomar o assunto, para desespero da irmã, que se sentia ainda mais ofendida:
- Até meu irmão faz pouco caso da minha infelicidade. Diante de tanto desapreço, Eponina, brava como era, dirigiu-se à casa paroquial e cobrou do irmão suas diligências com tal veemência, que o padre santo, sentindo-se acuado, resolveu ir em busca de Zé do Birro e casá-lo. Nem que fosse preciso usar a força. No entanto, sua tentativa malogrou. Na voz do coronel Santinho soube que o pilantra havia fugido. Um alivio para padre Santo, que ambicionava a sobrinha livre de quaisquer compromissos. Disponível para ele. Um estorvo para Eponina, que no momento só desejava vingança.
O zumzumzum sobre a fuga de Zé do Birro fez Violeta enlouquecer, animando, ainda mais, a mãe ir em busca do ladrão da honra da alheia.
Dia seguinte, a tropa da vingança estava pronta. Apta a partir numa excursão sem data marcada de retorno. Dela fazia parte Eponina, com um papo-amarelo à tiracolo, uma faca com lâmina serrilha, um facão e punhal enfiados no cós da saia de brim, Damarides, armada como a irmã e, como sempre, soltando fétidos traques, padre Santo, com sua surrada batina e dois cabas da peste, seus apaniguados.
O grupo ao alvorecer, partiu em direção a Rodelas. Sem fanfarras ou algazarras. Quase silencioso, movido a gosto de fel. Com o fito de alcançar o desalmado, mesmo abrindo caminhos em locais inservíveis para se viver, cheios de cipó-caboclo, palmas, vegetação seca, adusta e de espinhos que arrancavam a pele dos viajores sem dó nem piedade. Tinha como guia raros passantes que davam conta de toda rota tomada pelo biltre.
Foram dois dias de caminhada, até que a sorte sorriu ao grupo. Por acaso. Um posseiro, indagado sobre o paradeiro de Zé do Birro, informou aos rastreadores que ele se encontrava homiziado na ilha do Medo, no meio do rio São Francisco, a poucas léguas dali.
Diante da informação, o grupo se fez feliz e esperançoso. Estugou o passo e, depois de atravessar o rio numa canoa alugada, deu de cara com Zé, cuja reação, ao vê-los, foi pedir clemência:
- Não me matem. Eu faço o que vocês quiserem.
E, dirigindo-se ao padre Santo, suplicou:
- Em nome de Deus, poupe-me.
Eponina, porém, não quis saber de conversa. Não ouviu os pedidos e não deixava seu irmão escutá-los. Só queria vingar-se. Para tanto, ordenou que os capangas amarrassem o indivíduo e lhes tirassem as calças. No que se aproveitou para rasgar à faca o escroto de Zé do Birro e arrancar-lhe seus dois bagos, os quais, ainda ensanguentados, expôs a todos num misto de alegria e ensandecimento. Como verdadeiros troféus, depois guardados, com cuidado, num bornal de couro cheio de cachaça.
A volta do batalhão de Eponina se fez rápida. No entanto, uma surpresa o esperava. Violeta arrumara seus panos-de-bunda e partira sem destino. Para desolo de Eponina, que não pôde mostrar à filha os louros da sua vitória. Louros, que fez questão de conservar pelo resto da sua existência em um vidro cheio de álcool para exibi-los, com orgulho sobre a mesa de jantar.
Conta o povo, espectador privilegiado da história, que, depois da partida de Violeta, Eponina jamais tirou o vestido preto que usava para simbolizar a morte da filha no seu coração. Padre Santo deixou de falar com a irmã. O “causo” virou lenda em todo o sertão e Zé do Birro, enlouquecido, até hoje vaga pelas caatingas, como alma penada à procura dos seus benditos bagos.

Um comentário:

  1. Belo conto, Luiz Facó. Uma peça literária do mais alto valor.
    Claro que se trata de um conto, porém aproveitando alguns personagens da vida real.
    O chamado “Padre Santo” foi vigário de Santo Antônio da Glória (antiga Curral dos Bois), atual Glória, nas barrancas do São Francisco. Seu noem real era Emílio de Moura Ferreira Santos, conhecido como Padre Santo, que de “santo” não tinha nada – gerou uma vasta prole com a governanta da casa paroquial.
    Padre Santo era amigo do chefe político local, o legendário coronel Petro (Petrolino de Alcântara Reis). Petro era um homem baixo, barrigudo, moreno. Estava sempre de chapéu, até dentro de casa. Era um sujeito conversador, contador de “causos”. Para tudo tinha um ditado. Gostava de citar provérbios e frases latinas decoradas, com o que impressionava os catingueiros, que o tinham como homem de cultura, embora tivesse apenas o curso primário. Era abastecido de frases e provérbios pelo inseparável amigo, o Padre Santo.
    No dia 20 de outubro de 1929, domingo, Lampião levou seus cabras para uma festa, com missa, foguetório e muito povo, na casa de Vicente Malaquias, na fazenda Poço Comprido, município de Santo Antônio da Glória (atual Glória). O padre Emílio de Moura Ferreira já estava lá. A missa foi celebrada no alpendre da casa de Vicente.
    Foi um dia de rara felicidade naqueles ermos. Eram todos amigos. Vicente Malaquias era coiteiro de confiança.
    Terminado o ofício religioso, Lampião, Virgínio, Ezequiel e outros cangaceiros do seu estado-maior foram convidados para almoçar com o vigário. Depois do almoço, o vigário perguntou se algum dos presentes queria se confessar. O cangaceiro Ângelo Roque, cuja família era conhecida daquele sacerdote, resolveu confessar-se. O reverendo, antes da absolvição, aconselhou:
    – Não mate mais os macacos, meu filho. Nos mandamentos de Deus está proibido. Quando pegar um, você cape ele e solte capado, mas não mate...
    Lampião não quis se confessar, mas proseou um pouco com o vigário, enquanto os cabras se divertiam, bebendo e dançando com as moças. O padre aconselhou-o:
    – Virgulino, você precisa deixar essa vida pecadora de cangaceiro...
    – Isso é impussive, pade Imilo – respondeu o Capitão. – Cumo vou largá essa vida se o guverno nun me dexa sussegá? Mais tenho certeza de qui os macaco nun me mata porque eu sô um pé de dinhero... Hoje im dia a vida só é boa pra sordado e pra bandido!

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