Conto de Lima Barreto*
(foi respeitada a ortografia original)
Afonso Henriques de Lima Barreto, melhor
conhecido como Lima Barreto, nascido no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881,
foi jornalista, contista de vastos recursos literários e um dos mais
importantes escritores brasileiros.
COMO O
"HOMEM" CHEGOU
Deus está
morto; a sua piedade pelos homens matou-o.
A polícia
da república, como toda a gente sabe, é paternal e compassiva no tratamento das
pessoas humildes que dela necessitam; e sempre, quer se trate de humildes, quer
de poderosos, a velha instituição cumpre religiosamente a lei. Vem-lhe daí o
respeito que aos políticos os seus empregados tributam e a procura que ela
merece desses homens, quase sempre interessados no cumprimento das leis que
discutem e votam.
O caso
que vamos narrar não chegou ao conhecimento do público, certamente devido à
pouca atenção que lhe deram os repórteres; e é pena, pois, se assim não fosse,
teriam nele encontrado pretexto para clichês bem macabramente mortuários que
alegrassem as páginas de suas folhas volantes.
O
delegado que funcionou na questão talvez não tivesse notado o grande alcance de
sua obra; e tanto isso é de admirar quanto as conseqüências do fato concordam
com luxuriantes sorites de um filósofo sempre capaz de sugerir, do pé para a
mão, novíssimas estéticas aos necessitados de apresentá-las ao público bem
informado.
Sabedores
de acontecimento de tal monta, não nos era possível deixar de narrá-lo com
algum minudência, para edificação dos delegados passados, presentes e futuros.
Naquela
manhã, tinha a delegacia um movimento desusado. Passavam-se semanas sem que
houvesse uma simples prisão, uma pequena admoestação. A circunscrição era
pacata e ordeira. Pobre, não havia furtos; sem comércio, não havia gatunos; sem
indústria, não havia vagabundos, graças à sua extensão e aos capoeirões que lá
havia; os que não tinham domicílio arranjavam-no facilmente em chocas ligeiras
sobre chãos de outros donos mal conhecidos.
Os
regulamentos policiais não encontravam emprego; os funcionários do distrito
viviam descansados e, sem desconfiança, olhavam a população do lugarejo.
Compunha-se o destacamento de um cabo e três soldados; todos os quatro, gente
simples, esquecida de sua condição de sustentáculos do Estado.
O
comandante, um cabo gordo que falava arrastando a voz, com a cantante preguiça
de um carro de bois a chiar, habitava com a família um rancho próximo e
plantava ao redor melancias, colhendo-as de polpa bem rosada e doce, pelo verão
inflexível da nossa terra. Um dos soldados tecia redes de pescaria, chumbava-as
com cuidado para dar cerco às tainhas; e era de vê-las saltar por cima do fruto
de sua indústria com a agilidade de acrobatas, agilidade surpreendente naqueles
entes sem mãos e pernas diferenciadas. Um outro camarada matava o ócio pescando
de caniço e quase nunca pescava crocorocas, pois diante do mar, da sua infinita
grandeza, distraía-se, lembrando-se das quadrinhas que vinha compondo em louvor
de uma beleza local.
Tinham
também os inspetores de polícia essa concepção idílica, e não se aborreciam no
morno vilarejo. Conceição, um deles, fabricava carvão e os plantões os fazia
junto às caieiras, bem protegidas por cruzes toscas para que o tinhoso não
entrasse nelas e fabricasse cinza em vez do combustível das engomadeiras. Um
seu colega, de nome Nunes, aborrecido com o ar elísico daquela delegacia,
imaginou quebrá-lo e lançou o jogo do bicho. Era uma cousa inocente: o mínimo
da pule, um vintém; o máximo, duzentos réis, mas, ao chegar a riqueza do lugar,
aí pelo tempo do caju, quando o sol saudoso da tarde dourava as areias e os
frutos amarelos e vermelhos mais se intumesciam nos cajueiros frágeis,
jogavam-se pules de dez tostões.
Vivia
tudo em paz; o delegado não aparecia. Se o fazia de mês em mês, de semestre em
semestre, de ano em ano, logo perguntava: houve alguma prisão? Respondiam
alvissareiros: não, doutor; e a fronte do doutor se anuviava, como se sentisse
naquele desuso do xadrez a morte próxima do Estado, da Civilização e do
Progresso.
De onde
em onde, porém, havia um caso de defloramento e este era o delito, o crime, a
infração do lugarejo - um crime, uma infração, um delito muito próprio do
Paraíso, que o tempo, porém, levou a ser julgado pelos policiais, quando, nas
primeiras eras das nossas origens bíblicas, o fora pelo próprio Deus.
Em geral,
os inspetores por eles mesmos resolviam o caso; davam paternos conselhos suasórios
e a lei sagrava o que já havia sido abençoado pelas prateadas folhas das
imbaúbas, nos capoeirões cerrados.
Não quis,
porém, o delegado deixar que os seus subordinados liquidassem aquele caso. A
paciente era filha do Sambabaia, chefe político do partido do Senador Melaço; e
o agente era eleitor do partido contrário a Melaço. O programa do partido de
Melaço era não fazer cousa alguma e o do contrário tinha o mesmo ideal; ambos,
porém, se diziam adversários de morte e essa oposição, refletindo-se no caso,
embaraçada sobremodo o subdelegado.
Interrogado,
confessara-se o agente pronto a reparar o mal; e, desde há muito, a paciente
dera a tal respeito a sua indispensável opinião.
A
autoridade, entretanto, hesitava, por causa da incompatibilidade política do
casal. As audiências se sucediam e aquela era já a quarta. Estavam os soldados
atônitos com tanta demora, provinda de não saber bem o delegado se, unindo mais
uma vez o par, não iria o caso desgostar Melaço e mesmo o seu adversário Jati -
ambos senadores poderosos, aquele do governo e este da oposição; e, desgostar
qualquer dele punha em perigo o seu emprego porque, quase sempre entre nós, a
oposição passa a ser governo e o governo oposição instantaneamente. O
consentimento dos rapazes não bastava ao caso; era preciso, além, uma
reconciliação ou uma simples adesão política.
Naquela
manhã, o delegado tomava mais uma vez o depoimento do agente, inquirindo-o
desta forma:
—Já se
resolveu?
— Pois
não, doutor. Estou inteiramente a seu dispor...
— Não é
bem ao meu. Quero saber se o senhor tem tenção?
— De que,
doutor? De casar? Pois não, doutor.
— Não é
de casar... Isto já sei... E...
— Mas de
que deve ser então, doutor?
— De
entrar para o partido do doutor Melaço.
— Eu
sempre, doutor, fui pelo doutor Jati. Não posso...
— Que tem
uma cousa com a outra? O senhor divide o seu voto: a metade dá para um e a
outra metade para outro. Está aí!
— Mas
como?
— Ora! O
senhor saberá arranjar as cousas da melhor forma; e, se o fizer com habilidade,
ficarei contente e o senhor será feliz, porquanto pode arranjar tanto com um
como com outro, conforme andar a política no próximo quatriênio, um lugar de
guarda dos mangues.
— Não há
vaga, doutor.
— Qual!
Há sempre vaga, meu caro. O Felizardo não se tem querido alistar, não nasceu aqui,
é de fora, é "estrangeiro"; e, dessa maneira, não pode continuar a
fiscalizar os mangues. E vaga certa. O senhor adere ou antes: divide a votação?
—Divido
então...
Por aí,
um dos inspetores veio avisar de que o guarda civil de nome Hane lhe queria
falar. O doutor Cunsono estremeceu. Era cousa do chefe, do geral lá de baixo;
e, de relance, viu o seu hábil trabalho de harmonizar Jati e Melaço perdido
inteiramente, talvez por causa de não ter, naquele ano, efetuado sequer uma
prisão. Estava na rua, suspendeu o interrogatório e veio receber o visitador
com muita angústia no coração. Que seria?
— Doutor,
foi logo dizendo o guarda, temos um louco.
Diante
daquele caso novo, o delegado quis refletir, mas logo o guarda emendou:
— O
doutor Sili...
Era assim
o nome do ajudante do geral inacessível; e dele, os delegados têm mais medo do
que do chefe supremo todo-poderoso.
Hane
continuou:
— O
doutor Sili mandou dizer que o senhor o prendesse e o enviasse à Central.
Cunsono
pensou bem que esse negócio de reclusão de loucos é por demais grave e delicado
e não era propriamente da sua competência fazê-lo, a menos que fossem sem eira
nem beira ou ameaçassem a segurança pública. Pediu a Hane que o esperasse e foi
consultar o escrivão. Este serventuário vivia ali de mau humor. O sossego da
delegacia o aborrecia, não porque gostasse da agitação pela agitação, mas pelo
simples fato de não perceber emolumentos ou quer que seja, tendo que viver de
seus vencimentos. Aconselhou-se com ele o delegado e ficou perfeitamente
informado do que dispunham a lei e a praxe. Mas Sili...
Voltando
à sala, o guarda reiterou as ordens do auxiliar, contando também que o louco
estava em Manaus. Se o próprio Sili não o mandava buscar, elucidou o guarda,
era porque competia a Cunsono deter o "homem", porquanto a sua
delegacia tinha costas do oceano e de Manaus se vinha por mar.
— É muito
longe, objetou o delegado.
O guarda
teve o cuidado de explicar que Sili já vira a distancia no mapa e era bem
reduzida: obra de palmo e meio. Cunsono perguntou ainda:
— Qual a
profissão do "homem"?
— E
empregado da delegacia fiscal.
— Tem pai?
— Tem.
Pensou o
delegado que competia ao pai o pedido de internação, mas o guarda adivinhou-lhe
o pensamento e afirmou:
— Eu
conheço muito e meu primo é cunhado dele.
Estava já
Cunsono irritado com as objeções do escrivão e desejava servir a Sili, tanto
mais que o caso desafiava a sua competência policial. A lei era ele; e mandou
fazer o expediente.
Após o
que, tratou Cunsono de ultimar o enlace de Melaço e Jati, por intermédio do
casamento da filha do Sambabaia. Tudo ficou assentado da melhor forma; e, em
pequena hora, voltava o delegado para as ruas onde não policiava, satisfeito
consigo mesmo e com a sua tríplice obra, pois não convém esquecer a sua
caridosa intervenção no caso do louco de Manaus.
Tomava a
condução que devia trazer à cidade, quando a lembrança do meio de transporte do
dementado lhe foi presente. Ao guarda-civil, ao representante de Sili na zona,
perguntou por esse instante:
— Como há
de vir o "sujeito"?
O guarda,
sem atender diretamente à pergunta, disse:
— E... E,
doutor; ele está muito furioso.
Cunsono
pensou um instante, lembrou-se dos seus estudos e acudiu:
— Talvez
um couraçado... O "Minas Gerais" não serve? Vou requisitá-lo.
Hane, que
tinha prática do serviço e conhecimento dos compassivos processos policiais,
refletiu:
— Doutor:
não é preciso tanto. O "carro-forte" basta para trazer 0
"homem".
Concordou
Cunsono e olhou as alturas um instante sem notar as nuvens que vagavam sem rumo
certo, entre o céu e a terra.
II
Sili, o
doutor Sili, bem como Cunsono, graças à prática que tinham do oficio, dispunham
da liberdade dos seus pares com a maior facilidade. Tinham substituído os
graves exames íntimos provocados pelos deveres de seus cargos, as perigosas
responsabilidades que lhes são próprias, pelo automático ato de uma assinatura
rápida. Era um contínuo trazer um oficio, logo, sem bem pensar no que faziam,
sem lê-lo até, assinavam e ia com essa assinatura um sujeito para a cadeia,
onde ficava aguardando que se lembrasse de retirá-lo de lá a sua mão distraída
e ligeira.
Assim
era; e foi sem dificuldade que atendeu ao pedido de Cunsono no que toca ao carro-forte.
Prontamente deu as ordens para que fosse fornecida a seu colega a masmorra
ambulante, pior do que masmorra, do que solitária, pois nessas prisões sente-se
ainda a algidez da pedra, alguma cousa ainda de meiguice de sepultura, mas
ainda assim meiguice; mas, no tal carro feroz, é tudo ferro, há inexorável
antipatia do ferro na cabeça, ferro nos pés, aos lados uma igaçaba de ferro em
que se vem sentado, imóvel, e para a qual se entra pelo próprio pé. E blindada
e quem vai nela, levado aos trancos e barrancos de seu respeitável peso e do
calçamento das vias públicas, tem a impressão de que se lhe quer poupar a morte
por um bombardeio de grossa artilharia para ser empalato aos olhos de um
sultão. Um requinte de potentado asiático.
Essa
prisão de Calistenes, blindada, chapeada, couraçada, foi posta em movimento; e
saiu, abalando o calçamento, a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora
em busca de um inofensivo.
O
"homem", como dizem eles, era um ente pacato, lá dos confins de
Manaus, que tinha a mania da Astronomia e abandonara, não de todo, mas quase
totalmente, a terra pelo céu inacessível. Vivia com o pai velho nos arrabaldes
da cidade e construíra na chácara de sua residência um pequeno observatório,
onde montou lunetas que lhe davam pasto à inocente mania. Julgando
insuficientes o olhar e as lentes, para chegar ao perfeito conhecimento da
Aldebarã longínqua, atirou-se ao cálculo, à inteligência pura, à Matemática e a
estudar com afinco e fúria de um doido ou de um gênio.
Em uma
terra inteiramente entregue à chatinagem e à veniaga, Fernando foi tomando a
fama de louco, e não era ela sem algum motivo. Certos gestos, certas
despreocupações e mesmo outras manifestações mais palpáveis pareciam justificar
o julgamento comum; entretanto, ele vivia bem com o pai e cumpria os seus
deveres razoavelmente. Porém, parentes oficiosos e outros longínquos aderentes
entenderam curá-lo, como se se curassem assomos de alma e anseios de pensamento.
Não lhes
vinha tal propósito de perversidade inata, mas de estultice congênita,
juntamente com a comiseração explicável em parentes. Julgavam que o ser
descompassado envergonhava a família e esse julgamento era reforçado pelos
cochichos que ouviam de alguns homens esforçados por parecerem inteligentes.
O mais
célebre deles era o doutor Barrado, um catita do lugar, cheiroso e apurado no
corte das calças. Possuía esse doutor a obsessão das cousas extraordinárias,
transcendentes, sem par, originais; e, como sabia Fernando simples e desdenhoso
pelos mandões, supôs que ele, com esse procedimento, censurava Barrado por
demais mesureiro com os magnates. Começou, então, Barrado a dizer que Fernando
não sabia Astronomia; ora, este último não afirmava semelhante cousa. Lia,
estudava e contava o que lia, mais ou menos o que aquele fazia nas salas, com
os ditos e opiniões dos outros.
Houve
quem o desmentisse; teimava, no entanto, Barrado no propósito. Entendeu também
de estudar uma Astronomia e bem oposta à de Fernando: a Astronomia do centro da
terra. O seu compêndio favorito era A Morgadinha de Val-Flor e os livros
auxiliares: A Dama de Monsoreau e O Rei dos Grilhetas, numa biblioteca de
Herschell.
Com isto,
e cantando, e espalhando que Fernando vivia nas tascas com vagabundos,
auxiliado pelo poeta Machino, o jornalista Cosmético e o antropologista
Tucolas, que fazia sábias mensurações nos crânios das formigas, conseguiu e
mover os simplórios parentes de Fernando, e foi bastante que, de parente para
conhecido, de conhecido para Hane, de Hane, para Sili e Cunsono, as coisas se
encadeassem e fosse obtida a ordem de partida daquela fortaleza couraçada,
roncando pelas ruas, chocalhando ferragens, abalando calçadas, para ponto tão
longínquo.
Quando,
porém, o carro chegou à praça mais próxima, foi que o cocheiro lembrou-se de
que não lhe tinham ensinado onde ficava Manaus. Voltou e Sili, com a energia de
sua origem britânica, determinou que fretassem uma falua e fossem a reboque do
primeiro paquete.
Sabedor
do caso e como tivesse conhecimento de que Fernando era desafeto do poderoso
chefe político Sofonias, Barrado que, desde muito, lhe queria ser agradável,
calou o seu despeito, apresentou-se pronto para auxiliar a diligência. Esse
chefe político dispunha de um prestigio imenso e nada entendia de Astronomia;
mas, naquele tempo, era a ciência da moda e tinham em grande consideração os
membros da Sociedade Astronômica, da qual Barrado queria fazer parte.
Sofonias
influía nas eleições da Sociedade, como em todas as outras, e podia determinar
que Barrado fosse escolhido. Andava, portanto, o doutor captando a boa vontade
da potente influência eleitoral, esperando obter, depois de eleito, o lugar de
Diretor Geral das Estrelas de Segunda Grandeza.
Não é de
estranhar, pois, que aceitasse tão árdua incumbência e, com Hane e carrião,
veio até à praia; mas não havia canoa, caíque, bote, jangada, catraia, chalana,
falua, lancha, calunga, poveiro, peru, macacuano, pontão, alvarenga, saveiro,
que os quisesse levar a tais alturas.
Hane
desesperava, mas o companheiro, lembrando-se dos seus conhecimentos de Astronomia,
indicou um alvitre:
— O carro
pode ir boiando.
— Como,
doutor? E de ferro... muito pesado, doutor!
— Qual o
quê! O "Minas", o "Aragón", o "São Paulo" não
bóiam? Ele vai, sim!
— E os
burros?
— Irão a
nadar, rebocando o carro.
Curvou-se
o guarda diante do saber do doutor e deixou-lhe a missão confiada, conforme as
ordens terminantes que recebera.
A
calistênica entrou pela água adentro, consoante as ordens promanadas do saber
de Barrado e, logo que achou água suficiente, foi ao fundo com grande desprezo
pela hidrostática do doutor. Os burros, que tinham sempre protestado contra a
física do jovem sábio, partiram os arreios e salvaram-se; e graças a uma
poderosa cábrea, pôde a almanjarra ser salva também.
Havia
poucos paquetes para Manaus e o tempo urgia. Barrado tinha ordem franca de
fazer o que quisesse. Não hesitou e, energicamente, fez reparar as avarias e
tratou de embarcar num paquete todo o trem, fosse como fosse.
Ao
embarcá-lo, porém, surgiu uma dúvida entre ele e o pessoal de bordo. Teimava
Barrado que o carro merecia ir para um camarote de primeira classe, teimavam os
marítimos que isso não era próprio, tanto mais que ele não indicava o lagar dos
burros.
Era
difícil essa questão da colocação dos burros. Os homens de bordo queriam que
fossem para o interior do navio; mas, objetava o doutor:
— Morrem
asfixiados, tanto mais que são burros e mesmo por isso.
De comum
acordo, resolveram telegrafar a Sili para resolver a curiosa contenda. Não
tardou viesse a resposta, que foi clara e precisa: "Burros sempre em cima.
Sili."
Opinião
como esta, tão sábia e tão verdadeira, tão cheia de filosofia e sagacidade da
vida, aliviou todos os corações e abraços fraternais foram trocados entre
conhecidos e inimigos, entre amigos e desconhecidos.
A
sentença era de Salomão e houve mesmo quem quisesse aproveitar o apotegma para
construir uma nova ordem social.
Restava a
pequena dificuldade de fazer entrar o carro para o camarote do doutor Barrado.
O convés foi aberto convenientemente, teve a sala de jantar mesas arrancadas e
o bendegó ficou no centro dela, em exposição, feio e brutal, estúpido e inútil,
como um monstro de museu.
O paquete
moveu-se lentamente em demanda da barra. Antes fez uma doce curva, longa, muito
suave, reverente à beleza da Guanabara. As gaivotas voavam tranqüilas,
cansavam-se, pousavam na água—não precisavam de terra...
A cidade
sumia-se vagarosamente e o carro foi atraindo a atenção de bordo.
— O que
vem a ser isto?
Diante da
almanjarra, muitos viajantes murmuravam protestos contra a presença daquele
estafermo ali; outras pessoas diziam que se destinava a encarcerar um
bandoleiro da Paraíba; outras que era um salva-vidas; mas, quando alguém disse
que aquilo ia acompanhando um recomendado de Sofonias, a admiração foi geral e
imprecisa.
Um
oficial disse:
— Que
construção engenhosa!
Um médico
afirmou:
— Que
linhas elegantes!
Um
advogado refletiu:
— Que
soberba criação mental!
Um
literato sustentou:
— Parece
um mármore de Fídias!
Um
sicofanta berrou:
— E obra
mesmo de Sofonias! Que republicano!
Uma moça
adiantou:
— Deve
ter sons magníficos!
Houve
mesmo escala para dar ração aos burros, pois os mais graduados se disputavam a
honraria. Um criado, porém, por ter. passado junto ao monstro e o olhado com
desdém, quase foi duramente castigado pelos passageiros. O ergástulo ambulante
vingou-se do serviçal; durante todo o trajeto perturbou-lhe o serviço.
Apesar de
ir correndo a viagem sem mais incidentes, quis ao meio dela Barrado desembarcar
e continuá-la por terra. Consultou, nestes termos, Sili: "Melhor carro ir
terra faltam três dedos mar alonga caminho"; e a resposta veio depois de
alguns dias: "Não convém desembarque embora mais curto carro chega sujo.
Siga."
Obedeceu
e o meteorito, durante duas semanas, foi objeto da adoração do paquete. Nos
últimos dias, quando um qualquer dos passageiros dele se acercava, passava-lhe
pelo dorso negro a mão espalmada com a contrição religiosa de um maometano ao
tocar na pedra negra da Caaba.
Sofonias,
que nada tinha com o caso, não teve nunca noticia dessa tocante adoração.
III
Muito
rica é Manaus, mas, como em todo o Amazonas, nela é vulgar a moeda de cobre. E
um singular traço de riqueza que muito impressiona o viajante, tanto mais que
não se quer outra e as rendas do Estado são avultadas. O Eldorado não conhece o
ouro, nem o estima.
Outro
traço de sua riqueza é o jogo. Lá, não é divertimento nem vicio: é para quase
todos profissão. O valor dos noivos, segundo dizem, é avaliado pela média das paradas
felizes que fazem, e o das noivas pelo mesmo processo no tocante aos pais.
Chegou o
navio a tão curiosa cidade quinze dias após fazendo uma plácida viagem, com o
fetiche a bordo. Desembarcá-lo foi motivo de absorvente cogitação para o doutor
Barrado. Temia que fosse de novo ao fundo, não porque o quisesse encaminhá-lo
por sobre as águas do Rio Negro; mas, pelo simples motivo de que, sendo o cais
flutuante, o peso do carrião talvez trouxesse desastrosas conseqüências para
ambos, cais e carro.
O capataz
não encontrava perigo algum, pois desembarcavam e embarcavam pelos flutuantes
volumes pesadíssimos, toneladas até.
Barrado,
porém, que era observador, lembrava-se da aventura do rio, e objetou:
— Mas não
são de ferro.
— Que tem
isso? fez o capataz.
Barrado,
que era observador e inteligente, afinal compreendeu que um quilo de ferro pesa
tanto quanto um de algodão; e só se convenceu inteiramente disso, como
observador que era, quando viu o ergástulo em salvamento, rolando pelas ruas da
cidade.
Continuou
a ser ídolo e o doutor agastou-se deveras porque o governador visitou a
caranguejola, antes que ele o fizesse.
Como não
tivesse completas as instruções para detenção de Fernando, pediu-as a Sili. A
resposta veio num longo telegrama, minucioso e elucidativo. Devia requisitar
força ao governador, arregimentar capangas e não desprezar as balas de altéia.
Assim fez o comissário. Pediu uma companhia de soldados, foi às alfurjas da
cidade catar bravos e adquirir uma confeitaria de altéia. Partiu em demanda do
"homem" com esse trem de guerra; e, pondo-se cautelosamente em
observação, lobrigou os óculos do observatório, donde concluiu que a sua força
era insuficiente. Normas para o seu procedimento requereu a Sili. Vieram secas
e peremptórias: "Empregue também artilharia."
De novo
pôs-se em marcha com um parque do Krupp. Desgraçadamente, não encontrou o homem
perigoso. Recolheu a expedição a quartéis; e, certo dia, quando de passeio, por
acaso, foi parar a um café do centro comercial. Todas as mesas estavam ocupadas;
e só em uma delas havia um único consumidor. A esta ele sentou-se. Travou por
qualquer motivo conversa com o mazombo; e, durante alguns minutos, aprendeu com
o solitário alguma cousa.
Ao
despedirem-se, foi que ligou o nome à pessoa, e ficou atarantado sem saber como
proceder no momento. A ação, porém, lhe veio prontamente; e, sem dificuldade,
falando em nome da lei e da autoridade, deteve o pacifico ferrabrás em um dos
bailéus do cárcere ambulante.
Não havia
paquete naquele dia e Sili havia recomendado que o trouxessem imediatamente.
"Venha por terra," disse ele; e Barrado, lembrado do conselho, tratou
de segui-lo. Procurou quem o guiasse até ao Rio, embora lhe parecesse curta e
fácil a viagem. Examinou bem o mapa e, vendo que a distancia era de palmo e meio,
considerou que dentro dela não lhe cabia o carro. Por este e aquele, soube que
os fabricantes de mapas não têm critério seguro: era fazer uns muito grandes,
ou muito pequenos, conforme são para enfeitar livros ou adornar paredes. Sendo
assim, a tal distancia de doze polegadas bem podia esconder viagem de um dia e
mais.
Aconselhado
pelo cocheiro, tomou um guia e encontrou-o no seu antigo conhecido Tucolas,
sabedor como ninguém do interior do Brasil, pois o palmilhara à cata de
formigas para bem firmar documentos às suas investigações antropológicas.
Aceitou a
incumbência o curioso antropologista de himenópteros, aconselhando, entretanto,
a modificação do itinerário.
— Não me
parece, Senhor Barrado, que devamos atravessar o Amazonas. Melhor seria, Senhor
Barrado, irmos até a Venezuela, alcançar as Guianas e descermos, Senhor Barrado.
— Não
teremos rios a atravessar, Tucolas?
— Homem!
Meu caro senhor, eu não sei bem; mas, Senhor Barrado me parece que não, e sabe
por quê?
— Por que?
— Por
que? Porque este Amazonas, Senhor Barrado, não pode ir até lá, ao Norte, pois
só corre de oeste para leste...
Discutiram
assim sabiamente o caminho; e, à proporção que manifestava o seu profundo trato
com a geografia da América do Sul, mais Tucolas passava a mão pela cabeleira de
inspirado.
Achou que
os conselhos do doutor eram justos, mas temia as surpresas do carrão. Ora, ia
ao fundo, por ser pesado; ora, sendo pesado, não fazia ir ao fundo frágeis
flutuantes. Não fosse ele estranhar o chão estrangeiro e pregar-lhe alguma peça?
O cocheiro não queria também ir pela Venezuela, temia pisar em terra de gringos
e encarregou-se da travessia do Amazonas - o que foi feito em paz e salvamento,
com a máxima simplicidade.
Logo que
foi ultimada, Tucolas tratou de guiar a caravana. Prometeu que o faria com
muito acerto e contentamento geral, pois aproveitá-la-ia, dilatando as suas
pesquisas antropológicas aos moluscos dos nossos rios. Era sábio naturalista, e
antropologista, e etnografista da novíssima escola do Conde de Gobineau, novidade
de uns sessenta anos atrás; e, desde muito, desejava fazer uma viagem daquelas
para completar os seus estudos antropológicos nas formigas e nas ostras dos
nossos rios.
A viagem
correu maravilhosamente durante as primeiras horas. Sob um sol de fogo, o carro
solavancava pelos maus caminhos; e o doente, à mingua de não ter onde se
agarrar, ia ao encontro de uma e outra parede de sua prisão couraçada. Os
burros, impelidos pelas violentas oscilações dos varais, encontravam-se e
repeliam-se, ainda mais aumentando os ásperos solavancos da traquitana; e o
cocheiro, na boléia, oscilava de lá para cá, de cá para lá, marcando o compasso
da música chocalhante daquela marcha vagarosa.
Na
primeira venda que passaram, uma dessas vendas perdidas, quase isoladas, dos
caminhos desertos, onde o viajante se abastece e os vagabundos descansam de sua
errância pelos descambados e montanhas, o encarcerado foi saudado com uma vaia:
ó maluco! ó maluco!
Andava
Tucolas distraído a fossar e cavocar, catando formigas; e, mal encontrava uma
mais assim, logo examinava bem o crânio do inseto, procurava-lhe os ossos
componentes, enquanto não fazia uma mensuração cuidadosa do ângulo de Camper ou
mesmo de Cloquet. Barrado, cuja preocupação era ser êmulo do Padre Vieira,
aproveitara o tempo para firmar bem as regras de colocação de pronomes,
sobretudo a que manda que o "que" atraia o pronome complemento.
E assim
andando foi o carro, após dias de viagem, encontrar uma aldeia pobre, à margem
de um rio, onde chalanas e naviecos a vapor tocavam de quando em quando.
Cuidaram
imediatamente de obter hospedagem e alimentação no lugarejo. O cocheiro lembrou
o "homem" que traziam. Barrado, a respeito, não tinha com segurança
uma norma de proceder. Não sabia mesmo se essa espécie de doentes comia e
consultou Sili, por telegrama. Respondeu-lhe a autoridade, com a energia
britânica que tinha no sangue, que não era do regulamento retirar aquela
espécie de enfermos do carro, o "ar" sempre lhes fazia mal. De resto,
era curta a viagem e tão sábia recomendação foi cegamente obedecida.
Em
pequena hora, Barrado e o guia sentavam-se à mesa do professor público, que
lhes oferecera do jantar. O ágape ia fraternal e alegre, quando houve a visita
da Discórdia, a visita da Gramática.
O ingênuo
professor não tinha conhecimento do pichoso saber gramatical do doutor Barrado
e expunha candidamente os usos e costumes do lugar com a sua linguagem roceira:
— Há aqui
entre nós muito pouco caso pelo estudo, doutor. Meus filhos mesmo e todos quase
não querem saber de livros. Tirante este defeito, doutor, a gente quer mesmo o
progresso.
Barrado
implicou com o "tirante" e o "a gente", e tentou ironizar.
Sorriu e observou:
— Fala-se
mal, estou vendo.
O matuto
percebeu que o doutor se referia a ele. Indagou mansamente:
— Por que
o doutor diz isso?
— Por
nada, professor. Por nada!
— Creio,
aduziu o sertanejo, que, tirante eu, o doutor aqui não falou com mais ninguém.
Barrado
notou ainda o "tirante" e olhou com inteligência para Tucolas, que se
distraía com um naco de tartaruga.
Observou
o caipira, momentaneamente, o afã de comer do antropologista e disse,
meigamente:
— Aqui, a
gente come muito isso. Tirante a caça e a pesca, nós raramente temos carne fresca.
A
insistência do professor sertanejo irritava sobremaneira o doutor inigualável.
Sempre aquele "tirante", sempre o tal "a gente, a gente, a
gente"—um falar de preto mina! O professor, porém, continuou a informar
calmamente:
— A gente
aqui planta pouco, mesmo não vale a pena. Felizardo do Catolé plantou uns
leirões de horta, há anos, e quando veio o calor e a enchente...
— E
demais! E demais! exclamou Barrado.
Docemente,
o pedagogo indagou:
— Por
quê? Por que, doutor?
Estava o
doutor sinistramente raivoso e explicou-se a custo:
— Então,
não sabe? Não sabe?
— Não,
doutor. Eu não sei, fez o professor, com segurança e mansuetude.
Tucolas
tinha parado de saborear a tartaruga, a fim de atinar com a origem da disputa.
— Não
sabe, então, rematou Barrado, não sabe que até agora o senhor não tem feito
outra coisa senão errar em português?
— Como,
doutor?
— E
"tirante", é "a gente, a gente, a gente"; e, por cima de
tudo, um solecismo!
— Onde,
doutor?
— Veio o
calor e a chuva - é português?
— É,
doutor, é, doutor! Veja o doutor João Ribeiro! Tudo isso está lá. Quer ver?
O
professor levantou-se, apanhou sobre a mesa próxima uma velha gramática
ensebada e mostrou a respeitável autoridade ao sábio doutor Barrado. Sem saber
desdéns simular, ordenou:
—
Tucolas, vamo-nos embora.
— E a
tartaruga? diz o outro.
O hóspede
ofereceu-a, o original antropologista embrulhou-a e saiu com o companheiro. Cá
fora, tudo era silêncio e o céu estava negro. As estrelas pequeninas piscavam
sem cessar o seu olhar eterno para a terra muito grande. O doutor foi ao
encontro da curiosidade recalcada de Tucolas:
— Vê,
Tucolas, como anda o nosso ensino? Os professores não sabem os elementos de
gramática, e falam como negros de senzala.
— Senhor
Barrado, julgo que o senhor deve a esse respeito chamar a atenção do ministro
competente, pois me parece que o país, atualmente, possui um dos mais
autorizados na matéria.
— Vou
tratar, Tucolas, tanto mais que o Semica é amigo do Sofonias.
— Senhor
Barrado, uma coisa...
— Que é?
— Já
falou, Senhor Barrado, a meu respeito com o senhor Sofonias?
— Desde
muito, meu caro Tucolas. Está à espera da reforma do museu e tu vais para lá
direitinho. E o teu lugar.
—
Obrigado, Senhor Barrado. Obrigado.
A viagem
continuou monotonamente. Transmontaram serras, vadearam rios e, num deles,
houve um ataque de jacarés, dos quais se salvou Barrado graças à sua pele muito
dura. Entretanto, um dos animais de tiro perdeu uma das patas dianteiras e
mesmo assim conseguiu pôr-se a salvo na margem oposta.
Sarou-lhe
a ferida não se sabe como e o animal não deixou de acompanhar a caravana. Às
vezes, distanciava-se; às vezes, aproximava-se; e sempre a pobre alimária
olhava longamente, demoradamente, aquele forno ambulante, manquejando sempre,
impotente para a carreira, e como se se lastimasse de não poder auxiliar
eficazmente o lento reboque daquela almanjarra pesadona.
Em dado
momento, o cocheiro avisa Barrado de que o "homem" parecia estar
morto; havia até um mau cheiro indicador. O regulamento não permitia a abertura
da prisão e o doutor não quis verificar o que havia de verdade no caso. Comia
aqui, dormia ali, Tucolas também e os burros também—que mais era preciso para
ser agradável a Sofonias? Nada, ou antes: trazer o "homem" até ao Rio
de Janeiro. As doze polegadas da sua cartografia desdobravam-se em um infinito
número de quilômetros. Tucolas que conhecia o caminho, dizia sempre: estamos a
chegar, Senhor Barrado! Estamos a chegar! Assim levaram meses andando, com o
burro aleijado a manquejar atrás do ergástulo ambulante, olhando-o docemente,
cheio de piedade impotente.
Os urubus
crocitavam por sobre a caravana, estreitavam o vôo, desciam mais, mais, mais,
até quase debicar no carro-forte. Barrado punha-se furioso a enxotá-los a
pedradas; Tucolas imaginava aparelhos para examinar a caixa craniana das ostras
de que andava à caça; o cocheiro obedecia.
Mais ou
menos assim, levaram dois anos e foram chegar à aldeia dos Serradores, margem
do Tocantins.
Quando
aportaram, havia na praça principal uma grande disputa, tendo por motivo o
preenchimento de uma vaga na Academia dos Lambrequins.
Logo que
Barrado soube do que se tratava, meteu-se na disputa e foi gritando lá a seu
jeito e sacudindo as perninhas:
— Eu
também sou candidato! Eu também sou candidato!
Um dos
circunstantes perguntou-lhe a tempo, com toda a paciência:
— Moço: o
senhor sabe fazer lambrequins?
— Não
sei, não sei, mas aprendo na academia e é para isso que quero entrar.
A eleição
teve lugar e a escolha recaiu sobre um outro mais hábil no uso da serra que o
doutor recém-chegado.
Precipitou-se
por isso a partida e o carro continuou a sua odisséia, com o acompanhamento do
burro, sempre a olhá-lo longamente, infinitamente, demoradamente, cheio de
piedade impotente. Aos poucos os urubus se despediram; e, no fim de quatro
anos, o carrião entrou pelo Rio adentro, a roncar pelas calçadas, chocalhando
duramente as ferragens, com o seu manco e compassivo burro a manquejar-lhe à
sirga.
Logo que
foi chegado, um hábil serralheiro veio abri-lo, pois a fechadura
desarranjara-se devido aos trancos e às intempéries da viagem, e desobedecia à
chave competente. Sili determinou que os médicos examinassem o doente, exame
que, mergulhados numa atmosfera de desinfetantes, foi feito no necrotério
público.
Foi este
o destino do enfermo pelo qual o delegado Cunsono se interessou com tanta
solicitude.
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