Ensaio de Fernando
Alcoforado*
Colaboração
Existe uma visão generalizada de que o ato de
empreender se circunscreve apenas ao setor privado. Trata-se de um ledo engano
desconsiderar a possibilidade de empreender também no setor público. No Brasil e no mundo, há
vários exemplos de empreendedorismo no setor público, como é o caso da
construção de Brasília pelo presidente Juscelino Kubitschek na década de 1950, a
construção de São Petersburgo na Rússia pelo czar Pedro I, o Grande, em 1703 e a
reforma urbana de Paris pelo barão
Haussmann entre 1852 e 1870.
Uma importante ação empreendedora que se espraiou pelo
mundo após a Segunda Guerra Mundial foi a levada avante pelo economista
inglês John Maynard Keynes ao lançar as bases do Keynesianismo que é uma teoria
econômica apresentada em seu livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda (General
theory of employment, interest and money) que,
se opondo às concepções liberais então dominantes, coloca o Estado como agente indispensável de controle da economia, com
o objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego. Tal teoria exerceu enorme
influência na formulação da políticas governamentais na segunda metade do século
XX.
A escola keynesiana se fundamenta no princípio de
que o ciclo econômico não é autorregulado como pensam os economistas
neoclássicos, uma vez que é determinado pelo "espírito animal" (animal spirit no
original em inglês) dos empresários. É por esse motivo, e pela incapacidade do sistema capitalista
conseguir empregar todos os que querem trabalhar, que Keynes defende a intervenção
do Estado na economia. A teoria de Keynes atribuiu ao Estado o direito e o dever de
conceder benefícios sociais que garantam à população um padrão mínimo de vida como a
criação do salário mínimo, do
seguro desemprego, da redução da jornada de trabalho
e a assistência médica gratuita. O Keynesianismo ficou conhecido também como “Estado de
bem-estar social”.
1. A inovação necessária ao setor público
Ao se olhar para dentro do aparelho estatal, portanto,
da máquina administrativa nas diversas esferas de um governo, é possível formular a
transformação necessária, que permita ao Estado desempenhar seus papéis. Só então se
passa a entender que esta transformação é basicamente gerencial. Mudar a
qualidade gerencial dos governos federal, estadual e municipal não é uma simples
reforma. É mais do que isso: é realizar uma profunda transformação gerencial. Trata-se de
trocar a péssima qualidade gerencial que existe hoje pelo modelo que vai permitir ao Estado
avançar e desempenhar os
papéis que lhe compete em benefício da sociedade. Que qualidade gerencial é essa que precisa ser mudada?
Por que não é uma reforma e, sim, uma profunda transformação gerencial? Para
realizar esta transformação o que se busca é fazer com que a qualidade gerencial desejada
seja obtida rompendo com o conjunto de valores que instituiu e mantém a cultura
da burocracia. Isto significa dizer que o enfoque das organizações governamentais que hoje
está centrado no processo seja
direcionado para o resultado.
Na atualidade, as organizações governamentais não
estão voltadas para atender as expectativas dos cidadãos. Hoje, há normas
burocráticas com organogramas, ministérios, secretarias, divisões de ministérios e de
secretarias, equipes e um conjunto de leis que determinam tudo o que se pode ou não
fazer. A partir dessas estruturas - e suas leis, instruções normativas, portarias,
regulamentos etc. -, os governos elaboram programas ou projetos que nem sempre estão
relacionados com os interesses do
cidadão. Não foi olhando para o cidadão que se
estruturou a máquina administrativa do Estado, nem se refletiu sobre a organização da equipe
governamental que deveria implementá-la, tampouco se a ação poderia ser
executada exclusivamente pelo setor público ou em parceria com o setor privado e a
Sociedade Civil. Para realizar uma profunda transformação no setor público,
a primeira mudança a ser realizada consiste em deslocar o foco da preocupação
de obedecer a regras em compartimentos estanques - ministério, secretarias,
departamentos e respectivos programas - e estabelecer o processo inverso. O passo
inicial consiste em identificar objetivamente o que precisa ser feito para atender as
necessidades da sociedade e, depois, subordinar a organização, a estruturação, a
normatização, o conhecimento, a qualificação e o arranjo de pessoas em equipes na
busca do resultado desejado. Este é um ponto importante de mudança da qualidade gerencial.
Empreendedorismo no setor público significa obter resultados que beneficie a
sociedade. Pressupõe agilidade, dinamismo, flexibilidade. Gestão empreendedora
significa gestão voltada para resultados.
2. A gestão empreendedora do setor público
Importante para a gestão empreendedora do setor
público é entender a importância das parcerias, conceito segundo o qual toda organização
deve trabalhar, interna e externamente. A ação isolada é menos eficiente, pouco
eficaz, tem custo alto, visão limitada e obtém resultados de menor qualidade. No
capitalismo, a parceria interna e externa do governo com o setor privado e a Sociedade
Civil organizada deve ser estimulada, especialmente, na concepção e formulação,
etapa em que é recomendável reunir o máximo possível de informações para discutir
determinado problema, ampliando o conhecimento dele. Vinculado à parceria
está o trabalho em rede que deve
funcionar com pessoas e organizações que têm
interesses comuns e se articulam livremente, sem relação de poder. Estimular esse tipo
de trabalho significa também mudar a forma do Estado atuar.
O trabalho em rede deve ser incentivado, sobretudo no
esboço das políticas e na formulação dos programas, aproveitando o conhecimento
máximo acumulado dentro do governo, entre o governo e a sociedade civil, entre o
governo e o terceiro setor, entre o governo e a empresa privada e assim por diante. Outros
três aspectos importantes a incorporar, tendo em vista a mudança de qualidade
gerencial, são: 1) a questão da transparência; 2) o controle social (diálogo público);
e, 3) a gestão da informação e avaliação. O mais importante é que o Estado esteja
voltado para o cidadão – não do
ponto de vista teórico-conceitual, mas do ponto de
vista operacional. O Estado deve desenhar políticas e programas para atender os
interesses do cidadão e solucionar seus problemas reais, com todas as implicações decorrentes. A implantação de uma nova cultura gerencial inovadora
e empreendedora somente será bem-sucedida se estiver subordinada aos princípios da
transparência e do estímulo ao diálogo público – conceito mais rico do que controle
social, apesar de ser este mais
usado. O diálogo público funciona como entendimento de
fato, via de mão dupla, trabalho em rede. Pontos fortes e estratégicos da
gestão empreendedora, a transparência e o diálogo público, pressupõem a informação. É
preciso informar e informar-se, saber o que está acontecendo, verificar se o resultado está
sendo atingido, se determinado padrão de qualidade está sendo observado, se está
havendo eficiência, eficácia etc. Obter a informação, saber usá-la, gerenciá-la e
decidir a partir dela são hoje habilidades estratégicas em qualquer aparelho público ou
organização ligada ao governo.
3. Informação e avaliação gerencial
Não há mudança de padrão gerencial, nem transparência
e melhoria do diálogo público sem boas informações. É preciso prestar contas do que
está acontecendo. A ideia da informação como instrumento de decisão não é nova. Tampouco
é novidade que a mudança de padrão gerencial, a transparência e a
melhoria do diálogo público não se viabilizam sem boas informações. Saber o que está
acontecendo pressupõe atuar sobre os fatos e, com muita agilidade, fazer ajustes de
percurso para alcançar os objetivos desejados. É preciso saber o que está acontecendo para
poder prestar contas à Sociedade Civil. Assim, economizam-se tempo e recurso
financeiro, não se perdem sinergia nem
motivação e dá-se credibilidade à ação pública – tudo
vinculado à questão da informação.
Dispor da informação relaciona-se a saber avaliar. A
ação pública tem que estar submetida à avaliação permanente. Quem implanta o
programa é o primeiro responsável por avaliá-lo. Cabe-lhe verificar se o caminho traçado
está sendo seguido e se o resultado da ação concreta está sendo alcançado. Como
é que políticas provocam transformações? Todo governo, em geral, traça
programas por meio dos quais materializa sua política. O programa tem objetivo,
meta física, orçamento, equipe e assim por diante. Essa dinâmica precisa ser avaliada e
a ação concreta também. O caminho está adequado? A estrutura organizacional e o
processo operacional estão adequados? Estas são perguntas que o gestor deve
fazer, diariamente.
Se o modelo operacional posto em execução, o conjunto
de metas, o volume de recursos e a dinâmica são internamente incompatíveis, isso
precisa ser avaliado para que seja tomada a melhor decisão. Ou se aceita o modelo
existente, de implementação mais lenta, ou se altera a dinâmica do processo para ganhar
mais rapidez. Sem a avaliação, pode haver o comprometimento dos resultados. Também
deve ser avaliado o plano de governo, do qual o programa é uma parte. A própria
implantação de partes do plano estabelece uma lógica. Se foram previstos 300
programas, serão implantados 300 programas. Então, cada programa e esse agregado de
programas precisam ser avaliados. Demandam avaliação, igualmente, as políticas que
sustentam os planos e os programas. Estes não surgem do nada; baseiam-se em opções
políticas que precisam ser avaliadas, para que se saiba se estão acontecendo na prática e se
as ações são condizentes ou não com a opção estratégica. Políticas têm que ser
avaliadas em sentido amplo e no seu impacto específico, mas também na sua conexão com
outras políticas e com as diretrizes maiores que sustentam o governo. Área muito
nova e importante fonte de avaliação é o diálogo público – ou controle social. A
qualidade dos programas só aumenta quando o diálogo público é intensificado e de
fato acontece. É o cidadão que melhor avalia se a ação que o governo programou
corresponde à sua expectativa do que deveria ser realizado. A construção dos próprios
padrões de qualidade por meio do diálogo público também conforma um grande sistema de
avaliação que ainda não existe entre nós.
4. Autonomia e responsabilização
A gestão empreendedora, focada em resultados e com
avaliação baseada em um bom sistema de informações, pressupõe a autonomia de
decisão e a responsabilização. Como se tem na atualidade uma maneira de trabalhar toda
regulamentada, isto é, tudo o que se pode e não se pode fazer está previamente determinado
por escrito, na realidade, ninguém gerencia nada. Ou quase nada. Além disso,
tomam-se pouquíssimas decisões. Tudo o que pode ser feito está na lei, no decreto, na
portaria, na instrução normativa, na orientação do ministro, do secretário, nas normas
internas da organização ou na regulamentação do governo. E aí, como o privilégio é
da burocracia, o primeiro procedimento de qualquer área é normatizar seu
trabalho.
Essa é a cultura reinante na área governamental: só se
faz o que está normatizado. E tudo o que não se pode fazer também está normatizado.
Ora, como a norma nunca é tão ampla e detalhada a ponto de prever todos os aspectos
em jogo, ela resolve tudo na média - que é a forma de normatizar o princípio.
Assim, quase sempre, a norma atrapalha a todos. Jamais se consegue, portanto, fazer
tudo o que deveria ser feito, porque as normas não permitem. Com um agravante: a
existência da norma é diluidora da responsabilidade pela decisão e exime seu executor.
Hoje, ninguém é responsável
pelo que está escrito na norma. Ela determina o que se
pode e o que não se pode fazer. Em última instância, ninguém toma decisão alguma. São
todos regidos pelo comando abstrato da norma. Criam-se, então, mecanismos para se
avançar apesar das normas. Fazem isso apenas aqueles que se comprometem de corpo
e alma com a transformação e se dispõem a correr o risco.
A cultura anglo-saxônica, menos afeita à burocracia e
ao formalismo de normas e regras, incorporou ao serviço público o conceito de accountability
(responsabilização), que traz embutida a ideia de responsabilidade com
autonomia. Accountability ou responsabilização é um conceito que se dissemina entre
os especialistas brasileiros em gestão pública empreendedora. Antes de adotá-lo
amplamente, contudo, será preciso submeter a administração pública a um processo de desnormatização,
transformar a própria cultura do servidor e habituá-lo a trabalhar
em um ambiente com mais liberdade de ação, onde predominem a inventividade, a
criatividade e a capacidade de iniciativa. Nesse ambiente, é imperativo que as diretrizes sejam
mais fluidas e os propósitos muito
claros. É preciso construir um espaço flexível para a
tomada de decisão, de modo a que não se frustre a responsabilização sobre a ação.
5. Simplificando procedimentos gerenciais
Buscar resultados, manter a transparência, decidir com
base na informação, avaliar e poder ajustar percursos - pontos-chave da
transformação que se deseja - impõem simplificar os procedimentos de modo a se ter
autonomia e responsabilização. Os princípios mais importantes da gestão empreendedora no
setor público são: 1) enfoque no resultado; 2) autonomia e responsabilização; 3)
construção de boas parcerias; 4) trabalho em rede; 5) gestão da informação; e, 6)
transparência, diálogo público e avaliação. Todos esses princípios estão muito
interligados. Parceria, trabalho em rede e transparência do diálogo público não funcionam de
forma mecânica nem constituem mera metodologia. Na base deles estão o sentimento e a
confiança. Confiança é algo bastante peculiar, que não existe a priori. Tem
que ser praticada e construída. Isso não é fácil em um ambiente de muita desconfiança, de
competição e de receio do risco. A discussão da questão confiança tem de sair do
campo da psicologia e da sociologia e ir para o contexto administrativo, como ferramenta
gerencial que é. Estabelecer relações de confiança é um instrumento gerencial, tanto quanto
ter boa rede tecnológica, conhecimento, trabalho em parceria e diálogo público.
Na construção de boas relações
de confiança, é importante destacar que as partes
envolvidas não precisam concordar em tudo, obedecer à mesma ideologia ou partilhar
integralmente os mesmos princípios. Fundamental é o interesse comum. Identificar o
interesse comum em uma comunidade, para definir as instituições ideais à implementação do
propósito público, é indispensável ao estabelecimento da relação de confiança como
instrumento da gestão empreendedora.
6. Criando uma nova cultura do servidor público
O processo de criação de uma nova cultura do servidor
público é bastante complexo, porque envolve profunda mudança de cultura. O novo enfoque
é o de que para o desempenho-padrão o servidor já tem o salário; a
gratificação recompensaria o desempenho extra. De modo geral, o servidor entende
que gratificação é salário, portanto, ele não tem que melhorar o desempenho para
recebê-la. A avaliação de desempenho está prevista na Constituição e, apesar da
dificuldade de separar gratificação e salário, não há como manter o atual
estado de coisas por muito mais tempo. Outro ponto de valorização do servidor é a
capacitação. Deve haver um programa amplo de desenvolvimento gerencial em todos
os níveis - extenso e profundo. Trata-se de capacitação em gestão e não de capacitação
técnica especializada. Já existe muito conhecimento técnico acumulado. A
administração pública tem bons médicos, sanitaristas, educadores, especialistas em
estradas, em zoonoses etc. O que não existe em larga escala – e só muito recentemente é que
se começou a perceber isso – é o conhecimento sobre o que fazer (conteúdo)
aliado ao conhecimento de como fazer
(gestão). De modo geral, sempre se assumiu que quem
sabe definir o que fazer sabe implantar. Isto não é verdade. Raramente se encontra
uma pessoa que entenda bem do conteúdo (o que fazer) e também de implantação
(gestão). Os governos federal, estadual e municipal têm muito servidor capacitado em assunto
especializado e poucos habilitados a liderar uma transformação gerencial a
partir desse conhecimento. O programa de capacitação privilegia, portanto, o
desenvolvimento gerencial.
* Fernando Alcoforado, 74, membro da
Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e
Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor
universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento
empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é
autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a
FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo,
1998), Um Projeto para o Brasil
(Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do
desenvolvimento do Estado da Bahia
(Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,
http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944,
2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia-
Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era
Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic
and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller
Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento
Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e Editora,
Salvador, 2010), Amazônia
Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena-
Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011) e Os Fatores
Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba,
2012), entre outros.
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