segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

ESTADO, RELIGIÃO, INTOLERÂNCIA

Raymundo Pinto, desembargador aposentado do TRT,
é escritor,
         membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e Academia Feirense de Letras.   

A denominada Reforma Protestante eclodiu no início do século XVI, tendo Martim Lutero como seu principal líder. Na época, a Igreja Católica vivia uma séria crise e o movimento teve como um de seus objetivos denunciar certos desmandos, inclusive a condenável prática da venda de “indulgências”, uma forma de arrecadar altas somas em dinheiro, prometendo, em troca, o perdão dos pecados e, após a morte, a ida ao céu dos doadores. É claro que não ficou só nisso, uma vez que representou um profundo rompimento com dogmas e costumes religiosos então vigentes. A mais poderosa organização cristã não demorou a reagir, logo surgindo a Contrarreforma, destacando-se a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loiola, em 1540. Vale observar que o desenrolar de tais acontecimentos coincide com o tempo em que o Brasil dava seus primeiros passos na condição de colônia de Portugal.
Muitos dos membros da indicada Companhia, chamados de jesuítas, foram deslocados para o território do nosso país com a missão de exercer a catequese, ou seja, difundir a doutrina de Cristo, principalmente entre os indígenas. Sua atuação, que se estendeu a atividades leigas, teve enorme influência em toda a população. Recordamos esses fatos históricos para demonstrar que as pessoas que habitavam a colônia, bem assim seus descendentes por inúmeras gerações, viveram e foram formados dentro de uma cultura de fortes raízes religiosas, que atravessou séculos e tem presença marcante nos dias atuais. Até o final do Império, com D. Pedro II, a Católica era a religião oficial. Deve-se a Rui Barbosa a insistência em incluir na Constituição de 1891, a primeira da República, a separação do Estado de qualquer culto. Em face das tradições bem antigas, é admirável e até surpreendente a coragem dos constituintes em consagrar um princípio tão avançado para aquela época.
Somente no decurso do século anterior, apareceram neste país, com mais intensidade, adeptos de outras religiões, sendo, na maioria, seguidores das idéias protestantes, conhecidos  como “evangélicos”. No passado, as autoridades não toleravam e perseguiam os cultos de origem africana, forçando os negros, mesmo depois de libertados da escravidão, a praticarem na clandestinidade os atos de suas crenças. Para disfarçar, eles procuraram, de modo inteligente, identificar os orixás com santos católicos. Pouco a pouco, os obstáculos foram vencidos e hoje já prevalece um consenso de aceitação dos usos e costumes das minorias. Em suma, urge reconhecer que o nosso Brasil é atualmente um exemplo para o mundo em termos de tolerância religiosa. Casos esparsos e pontuais – como a campanha de certa igreja neopentecostal contra os terreiros de candomblé e seus fiéis aqui na Bahia – são exceções e receberam imediata repulsa.
Enquanto no nosso país convivemos num ambiente de considerável paz entre os que professam seitas diferentes, é muito triste constatar que, em pleno século XXI, chegam às manchetes dos veículos de imprensa do todo o mundo inacreditáveis notícias de intolerância religiosa. Fica parecendo que a História entrou em retrocesso. Mais grave ainda é verificar-se que essas condenáveis atitudes negativas estão intimamente associadas ao terrorismo. Os fanáticos que ocuparam partes dos territórios do Iraque e da Síria, implantando um suposto “Estado Islâmico”, não se contentem em impor sua doutrina, mas vão além, assassinando pessoas que não se convertem e também cidadãos de outros países que foram por eles sequestrados. Palestinos e israelenses igualmente não se entendem, entre outras causas, por se deixarem influenciar pelos intransigentes e intolerantes extremistas de ambos os lados.

                As Nações mais poderosas já deram mostras de que é imperioso reagir à gravíssima ameaça que representa para a civilização o avanço dessas ideias radicais. Estrategistas de guerra provam que os bombardeios atuais em áreas dominadas por terroristas islâmicos não têm funcionado como desejável. As populações mais vitimadas pelas atrocidades esperam que as lideranças mundiais tomem a iniciativa de medidas mais enérgicas para conter o retorno a uma barbárie que parecia ter ficado no passado. Respeitando opiniões contrárias, não tenho dúvidas de que muito concorre para a disseminação de ideias radicais a adoção – pregada pela maioria dos mulçumanos – do princípio de que o Estado deve estar atrelado a uma religião oficial. É evidente que isso constitui um indiscutível óbice ao livre trânsito de pensamentos divergentes. A Turquia conseguiu a separação e a boa notícia é que Tunísia, após as últimas revoltas populares, marcha célere nesse sentido. Vamos torcer para que todos os povos deste planeta voltem a vista para o Brasil e, mirando seus exemplos de tolerância religiosa, convençam-se de que, ao insistirem na intolerância – inclusive no campo político-ideológico, acrescentamos –, jamais será alcançada a paz mundial.

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