quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

MAUSOLÉU DE GALLA PLCÍDIA – RAVENA, ITÁLIA

História/Arquitetura

Patrimônio da Humanidade (UNESCO)


Mausoléu de Gala Placídia é um célebre monumento paleocristão de Ravena, na Itália. Localiza-se na Piazza Arcivescovado 1, e pertence à Igreja CatólicaTem a planta em forma de cruz latina e é coberto por uma cúpula. O exterior despojado contrasta com o luxo da decoração interna, cujas superfícies são revestidas de mosaicos que representam vários personagens e cenas da religião cristã, com uma rica simbologia associada.
A despeito de o Mausoléu já ter gerado grande bibliografia e ter sido objeto de repetidas investigações, ainda pairam dúvidas sobre vários de seus aspectos, especialmente sobre quem o mandou construir, para que finalidade e em que data. Entretanto, formou-se um consenso de que foi erguido no segundo quartel do século V por ordem de Gala Placídia, imperatriz romana esposa de Constâncio III, para um uso fúnebre.


É uma das oito estruturas da cidade que foram declaradas pela UNESCO como Patrimônio Mundial, considerando-a um exemplo raríssimo e de excepcional qualidade em seu gênero. Seus mosaicos estão entre os mais antigos e os mais bem preservados da tradição paleocristã, sendo especialmente celebrada a cena que mostra o Bom Pastor. O edifício atesta a transição entre as estruturas fúnebres imperiais e os oratórios cristãos primitivos, e sua decoração, em termos de estilo, é uma sequência lógica, porém inovadora e original, da arte helenística e romana, com alguma influência do oriente, sendo importante também por constituir uma das primeiras ilustrações de alta qualidade artística da apropriação das referências pagãs pela arte cristã.

Gala Placídia (à direita) e os seus dois filhos, Valentiniano e Honória.

Élia Gala Placídia (em latimAelia Galla Placidia), nasceu entre 388 e 393 em Constantinopla ou Tessalônica, filha do imperador Teodósio, o Grande e sua segunda esposa Gala, que era filha do imperador Valentiniano I. Era também meia-irmã de Honório e Arcádio. Viveu no período em que o Império Romano já sofria com a ameaça bárbara e havia tido seu território muito reduzido. A participação de Gala na vida imperial iniciou em 408, quando os visigodos de Alarico estavam sitiando Roma.


No saque da cidade ela foi capturada como parte do butim, mas recebeu um tratamento digno. Pouco depois Alarico morreu, sendo sucedido por Ataúlfo, o qual, convencido da superioridade da estrutura administrativa romana, ofereceu-se como associado de Honório e solicitou suprimentos em troca de Gala. Mas sua oferta não foi aceita e ela por fim casou com Ataúlfo, aparentemente por vontade própria, em uma suntuosa cerimônia em Narbona que uniu tradições romanas e bárbaras e que indignou os romanos. Em 415 nasceu um filho da união, Teodósio, que viveu poucos meses, e em seguida Ataúlfo foi assassinado. Seu sucessor, Sigerico, a tratou como uma prisioneira comum, impondo-lhe vexames públicos, mas logo também foi morto, e ela, transferida para Tolosa e finalmente entregue a Constâncio em Ravena, em troca de 600 mil medidas de trigo. Em 417 foi forçada a desposar Constâncio, mas logo tiveram um filho, Valentiniano, e uma filha, Justa Grata Honória, e ela passou a exercer sua influência sobre Honório para favorecer seu marido. Em 421 ambos foram elevados à condição de Augustos e associados a Honório como co-imperadores. Apenas sete meses depois da morte de Constâncio, iniciaram atritos entre ela e seu meio-irmão. Acusada de traição, foi exilada em Constantinopla, onde reinava seu sobrinho Teodósio II. Honório morreu em 423, e seu sucessor natural deveria ser Valentiniano, mas o trono foi usurpado pelo primicério dos notários João. Teodósio decidiu apoiar as pretensões de Gala para tornar seu filho o imperador legítimo e enviou o então menino para Ravena junto com exércitos, e ali ele foi consagrado como Valentiniano III em 425. Sendo ainda menor, a regência passou para as mãos de Gala, que governou de facto até 433, quando Flávio Aécio iniciou uma campanha militar para derrubá-la, saindo vitorioso e obrigando a regente a retirar-se da vida pública. Faleceu em Roma em 450.

Moeda com a efígie de Gala Placídia e no verso a cruz, c. 425-435.

Representação romântica de Vasiliy Smirnov, c. 1880, mostrando a imperatriz homenageando seus ancestrais no interior do Mausoléu

Tem sido muito debatido entre os historiadores quem teria sido o verdadeiro patrono do Mausoléu que leva o nome de Gala Placídia, mas existem boas evidências que apoiam a teoria de que sua construção foi ordenada ou por ela mesma ou pela Casa Imperial. É sabido que Gala financiou a construção de várias igrejas e capelas, e a sua localização, na área dos palácios imperiais de Ravena, é fortemente sugestiva. Entretanto, é um edifício que se desvia da tradição anterior de mausoléus régios da Roma tardo-imperial, tanto por suas dimensões reduzidas como pela sua planta cruciforme. Porém, Gala era uma devota da Santa Cruz, tendo a ela dedicado sua capela privada no palácio imperial de Ravena, construída também sobre a forma da cruz. Além disso ela havia oferecido ricos dotes à Basílica da Santa Cruz em Jerusalém, e nas moedas onde é representada a cruz sempre aparece. A estrutura do Mausoléu remete a um precedente similar que fora erguido em Constantinopla como capela mortuária imperial, e a outro muito parecido na mesma cidade que serviu como mausoléu de Arcádio e sua família, e ambos devem ter sido conhecidos por Gala. Mas não existe nenhuma evidência direta de que a estrutura aqui em questão foi de fato erguida a seu mando. Tampouco a data precisa de sua construção pôde ser assegurada. Se foi mesmo obra sua, duas datas são mais prováveis: entre 417 e 421, quando estava casada com Constâncio, e o período em que assumiu a regência em nome de Valentiniano, a partir de 425. Alguns estudiosos, especialmente o biógrafo de Gala, Stewart Oost, levantaram a possibilidade de que o Mausoléu foi erguido por ordem de Valentiniano III, seu filho, ou pelo seu meio-irmão Honório. É de notar também que fontes coevas que narraram a vida da imperatriz não mencionaram o Mausoléu. Mesmo entre dúvidas, a maior parte dos historiadores modernos considera a atribuição a Gala pelo menos bastante plausível.
Da mesma forma é uma incógnita seu uso original. A cumeeira em forma de pinha era típica das estruturas funerárias romanas, e as janelas pequenas e seu programa iconográfico reforçam esta ideia. Além disso, escavações no século XIX revelaram no subsolo remanescentes de elementos arquitetônicos similares aos que eram usados nos nichos das catacumbas. Uma das hipóteses é de que tenha sido a tumba da própria Gala. Uma antiga tradição dizia que ela havia sido enterrada diante do altar deste Mausoléu, num dos sarcófagos que ali ainda existem, ataviada com trajes imperiais e sentada em um trono. Esse sarcófago permaneceu intacto até o século XVI, quando crianças, aproveitando-se de uma abertura que ele possui, atearam fogo ao seu conteúdo. Mas as conclusões tiradas a partir da sua análise estilística não concordam com a época em que viveu a imperatriz, apontando uma data de execução pelo menos um século posterior à conclusão do Mausoléu e sugerindo uma origem estranha ao edifício, sendo possivelmente uma transferência de uma necrópole vizinha ou da Basílica de São Vital. Se seu corpo foi trasladado para ali em algum momento, terá sido depois de um sepultamento anterior.


É certo que ela faleceu em Roma, e para alguns ela foi ali sepultada, em uma capela imperial ao lado da Basílica de São Pedro. Essa teoria é apoiada através de uma cadeia de eventos sugestivos. Pouco antes de sua morte em Roma houve o enterramento de um certo Teodósio nessa capela imperial, uma cerimônia que segundo os registros contou com a presença de uma "Placídia" (não é garantido tratar-se da mesma Placídia), membros do senado romano e do papa, eminências que só estariam presentes para honrar uma figura também ilustre. No século XV essa capela foi escavada e nela foi encontrado um sarcófago revestido de grande quantidade de prata e contendo dois caixões, um grande e um pequeno, cujos corpos estavam ataviados com trajes de ouro que pesavam dezesseis libras, uma riqueza indicativa de serem personagens imperiais. Isso parece corroborar a tese de que pertenciam a Gala e ao filho que tivera com Ataúlfo, mas sua identificação permanece hipotética, porque em seguida a tumba foi desmantelada e os metais preciosos removidos por ordem do papa, impedindo uma confirmação moderna.
Alternativamente, como há evidências de que ela sempre lamentara o precoce desaparecimento do pequeno Teodósio, filho que tivera com Ataúlfo, de que trouxera o seu corpo com ela quando foi devolvida à Itália e que o mantivera em Ravena, terá precisado de um local digno para depositar o defunto antes de mudar-se com ele para Roma, e o Mausoléu é um edifício que parece bastante adequado para isso. Um viajante italiano visitou-o no século XII e relatou ter visto uma inscrição com o nome de Teodósio, mas ela já não é mais visível. Como os locais de sepultamento dos outros Teodósios da família imperial são conhecidos - Teodósio I e Teodósio II, ambos em Constantinopla - parece lícito supor que esse Teodósio se tratasse do primeiro filho de Gala, e que o Mausoléu tenha sido o local de repouso temporário desta criança. As próprias dimensões modestas do edifício poderiam explicar seu uso como sepulcro não de um imperador, cujos sepultamentos se davam usualmente em edifícios monumentais, mas para o filho de um rei bárbaro. Finalmente, vários dos motivos decorativos do interior têm similares em tradições funerárias visigóticas, sendo encontrados em sarcófagos e outros objetos.

Planta do edifício.

Outro ângulo

O Mausoléu é uma pequena estrutura de tijolos aparentes, com 12,75 m de comprimento e 10,20 m de largura e com uma cúpula interna de 4,4 m de diâmetro. É coberta com telhas cerâmicas e sua planta possui a forma da cruz latina, com um braço ligeiramente mais comprido que os outros, constituindo uma diminuta nave. Os braços possuem fachadas em forma de edícula, com uma base retangular dividida em dois arcos cegos nas laterais e um arco central em sua maior parte cego, perfurado apenas por uma estreita janela vertical. Sobre essa base repousa um frontão clássico com um pequeno óculo retangular ao centro. A fachada principal não apresenta arcos cegos, apenas uma porta no centro com um lintel decorado por um friso em relevo, que mostra dois animais fantásticos semelhantes a felinos em torno de uma representação de um vaso, entre motivos fitomórficos. Sobre o cruzamento dos braços se ergue uma estrutura cúbica com pequenas janelas e coberta por um telhado em quatro águas, contendo em seu interior a cúpula.
Seu interior contrasta fortemente com a simplicidade externa, tendo suas superfícies parietais quase integralmente decoradas de mosaicos com tésseras de vidro e esmalte colorido, em parte revestidas de ouro, em uma densidade que chega a 271 peças por decímetro quadrado. Uma faixa na parte inferior das paredes é revestida com mármore amarelo. O teto da parte central é uma cúpula rasa, apoiada em pendentes triangulares estreitos, entre os quais se delineiam quatro áreas semicirculares ou lunetas. Sobre os braços, o teto é em forma de abóbada de berço, cujas extremidades são fechadas verticalmente por lunetas que possuem aberturas centrais. A terminação anterior do braço que serve como nave não tem janelas e abre-se a porta de entrada. Nos três outros braços se encontram sarcófagos.
Segundo relatório da Unesco, o prédio evidencia ser uma transição entre as tipologias funerárias imperiais da Roma Antiga e os martyria cruciformes  paleocristãos, e pertence à tradição ocidental de arquitetura, com alguns exemplos precursores italianos. Uma característica típica dessa fase é o uso de ânforas como material de construção em vez de tijolos, a fim de aliviar o peso das estruturas. No caso, elas foram encontradas durante reparos no prédio em 1838, no volume cúbico que sustenta a cúpula. Sua aparência original, contudo, era bastante distinta do que a que hoje se pode contemplar. Primitivamente o edifício era um anexo da Igreja de Santa Cruz, da qual só restam ruínas, associado à extremidade sul do seu nártex e precedido de um pórtico. Era revestido de estuque pintado de modo a imitar mármore, removido posteriormente.


Sua identificação como monumento fúnebre só se fixou no século VII, quando foram acrescentados sarcófagos ao interior. A primeira referência documental que associa Gala à construção data do início do século IX, constando numa passagem do Liber Pontificalis Ecclesiae Ravennatis de Andrea Agnellus, um padre de Ravena. Disse ele que a Igreja da Santa Cruz fora decorada por ordem da imperatriz, e relatou a existência de uma epígrafe atestando que a decoração da Capela de São Zacarias, um edifício também anexo à Igreja no lado oposto do nártex, teria sido ordenada por Gala, mas Agnellus não transcreveu a inscrição e ela se perdeu. Além disso, citou que já em sua época a identificação do prédio como o túmulo de Gala era apenas uma tradição popular, e referia-se a ele como "Mosteiro de São Nazário" (na época "mosteiro" poderia significar apenas uma edificação ou capela fundada por monges e não sua habitação). Embora se suponha que em sua origem fosse dedicado a São Lourenço, não há provas documentais. Referências explícitas ao patronato da imperatriz só apareceram em 1279, e desde então essa opinião se generalizou.
Em 1540 o piso foi substituído com mármore na técnica de opus sectile e elevado em 1,43 m, a área em torno do edifício também foi aterrada na mesma altura, e em 1602 o prédio foi desvinculado de Santa Croce, cujo nártex foi destruído e a fachada, recuada em sete metros. Foi então envolvido pelo convento de São Vital. Nesta altura a entrada original foi fechada e transferida para uma pequena porta aberta no lado oeste. Em 1774 esta mudança foi anulada, retornando a entrada à sua posição primitiva. Entre 1898 e 1901 a parte inferior das paredes internas foi revestida de mármore amarelo, e suas janelas, originalmente talvez de vidro, são atualmente fechadas com placas translúcidas de alabastro ofertadas por Vitório Emanuel III em 1908.

Interior da cúpula com seus pendentes.

São Paulo e São Pedro, com as pombas a beber ao centro

A cúpula é inteiramente revestida de uma simulação de céu estrelado, com uma cor de azul profundo e muitas estrelas douradas em arranjo concêntrico, com tamanhos maiores à medida que se afastam do centro, o que dá uma impressão de maior altura. No centro há uma grande cruz latina dourada. Nos quatro cantos, sobre os pendentes, estão meias-figuras douradas de seres alados sobre nuvens, representando as criaturas associadas aos quatro apóstolos evangelistas - o anjo, o touro, o leão e a águia. São imagens típicas da iconografia paleocristã, não possuindo auréolas nem os livros dos Evangelhos, elementos que só apareceram por volta do século VI, mas diferem do uso da época por terem apenas duas asas, quando o comum era a representação de seis.
A cruz flutuando livre no céu estrelado se presta a várias interpretações. Segundo Gillian Mackie, possivelmente significa o anúncio apocalíptico do Segundo Advento de Cristo, Swift & Alwis a veem como uma expressão da crença no radiante poder intercessor dos santos; já foi citada como uma reprodução da visão de Constantino, como um sinal de ortodoxia, e pode ilustrar o conceito cosmográfico dos cristãos primitivos, que cultivavam a ideia de o universo ser conformado à maneira de uma cruz como um símbolo da Encarnação do Verbo Divino. Dizia Santo Irineu: "porque Cristo é o Verbo de Deus... que em sua forma invisível penetra todo o universo e abrange seu comprimento e largura, sua altura e profundidade... o Filho de Deus também foi crucificado nesta forma cruciforme do universo". Assim, para Burton-Christie a cruz entre estrelas significa a presença de Deus a brilhar em todo o universo.
Sobre as quatro lunetas, áreas semicirculares entre os pendentes, que simbolizam a transição entre o mundo celeste e o terrestre, estão duplas de figuras masculinas vestidas de túnicas brancas com pálios, características dos senadores romanos, mas que podem simbolizar a pureza dos recém-batizados ou a transfiguração da alma na Ressurreição final. Identificados como os demais oito apóstolos, colocam-se contra um fundo azul escuro, flanqueando as janelas centrais e gesticulando de modo a aclamar a cruz celeste. Todos têm um aspecto semelhante, mas se distinguem pela sua gestualidade e pelas fisionomias individualizadas. Quase todas as figuras à esquerda das janelas seguram um rolo de pergaminho em sua mão esquerda, e as da direita escondem a mesma mão na túnica; ambas sempre têm sua mão direita elevada em aclamação, numa postura que era típica da iconografia dos oradores romanos. Diferem dois personagens, identificados como São Paulo e São Pedro. O primeiro, por sua longa barba escura, e o segundo, por segurar uma chave e ter cabelos brancos, traços convencionais na sua iconografia.
Debaixo das janelas estão pares de figuras de pombas bebendo água de vasos ou fontes, que são interpretadas como alegorias da luta da alma em busca do Reino dos Céus, e a água pode ser um símbolo do batismo, um tema comum em contextos fúnebres e batismais do cristianismo primitivo. Na parte superior às janelas há um motivo dourado de concha que empresta uma sensação de tridimensionalidade às cenas abaixo, contendo ainda adornos em forma de pérolas e uma pomba ao centro, que representa o Espírito Santo. As áreas são delimitadas com faixas de variados motivos abstratos multicores e ramos de videira entrelaçados, tradicionalmente associados à Salvação oferecida por Cristo.

Detalhe da decoração de flores estilizadas e círculos concêntricos

Luneta no braço direito com os veados a beber

O Bom Pastor, luneta sobre a porta de entrada

Luneta oposta à entrada.

Vista do eixo principal do edifício, com os sarcófagos.

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