História/Arquitetura
Patrimônio
da Humanidade (UNESCO)
O Mausoléu de Gala Placídia é um célebre
monumento paleocristão de Ravena, na Itália. Localiza-se na Piazza Arcivescovado 1, e pertence
à Igreja Católica. Tem a
planta em forma de cruz latina e é coberto por uma cúpula. O exterior
despojado contrasta com o luxo da decoração interna, cujas superfícies são
revestidas de mosaicos que
representam vários personagens e cenas da religião cristã, com uma rica simbologia associada.
A despeito
de o Mausoléu já ter gerado grande bibliografia e ter sido objeto de repetidas
investigações, ainda pairam dúvidas sobre vários de seus aspectos,
especialmente sobre quem o mandou construir, para que finalidade e em que data.
Entretanto, formou-se um consenso de que foi erguido no segundo quartel do
século V por ordem de Gala Placídia,
imperatriz romana esposa de Constâncio III, para um uso fúnebre.
É uma das
oito estruturas da cidade que foram declaradas pela UNESCO como Patrimônio Mundial, considerando-a um exemplo raríssimo e de
excepcional qualidade em seu gênero. Seus mosaicos estão entre os mais antigos e
os mais bem preservados da tradição paleocristã, sendo especialmente celebrada
a cena que mostra o Bom Pastor. O edifício atesta a transição entre as estruturas
fúnebres imperiais e os oratórios cristãos primitivos, e sua decoração, em
termos de estilo, é uma sequência lógica, porém inovadora e
original, da arte helenística e romana, com alguma influência do oriente, sendo
importante também por constituir uma das primeiras ilustrações de alta
qualidade artística da apropriação das referências pagãs pela
arte cristã.
Élia Gala Placídia (em latim: Aelia
Galla Placidia), nasceu entre 388 e 393 em Constantinopla ou Tessalônica, filha do
imperador Teodósio,
o Grande e sua segunda esposa Gala, que era filha do imperador Valentiniano I. Era
também meia-irmã de Honório e Arcádio. Viveu no
período em que o Império Romano já
sofria com a ameaça bárbara e
havia tido seu território muito reduzido. A participação de Gala na vida
imperial iniciou em 408, quando os visigodos de Alarico estavam
sitiando Roma.
No saque da cidade ela foi capturada como parte do butim, mas
recebeu um tratamento digno. Pouco depois Alarico morreu, sendo sucedido
por Ataúlfo, o qual,
convencido da superioridade da estrutura administrativa romana, ofereceu-se
como associado de Honório e solicitou suprimentos em troca de Gala. Mas sua
oferta não foi aceita e ela por fim casou com Ataúlfo, aparentemente por
vontade própria, em uma suntuosa cerimônia em Narbona que
uniu tradições romanas e bárbaras e que indignou os romanos. Em 415 nasceu um
filho da união, Teodósio, que viveu poucos meses, e em seguida Ataúlfo foi
assassinado. Seu sucessor, Sigerico, a tratou
como uma prisioneira comum, impondo-lhe vexames públicos, mas logo também foi
morto, e ela, transferida para Tolosa e
finalmente entregue a Constâncio em
Ravena, em troca de 600 mil medidas de trigo. Em 417 foi forçada a desposar
Constâncio, mas logo tiveram um filho, Valentiniano, e uma filha, Justa Grata Honória, e ela passou a exercer sua influência sobre
Honório para favorecer seu marido. Em 421 ambos foram elevados à condição
de Augustos e associados a Honório como co-imperadores.
Apenas sete meses depois da morte de Constâncio, iniciaram atritos entre ela e
seu meio-irmão. Acusada de traição, foi exilada em Constantinopla, onde
reinava seu sobrinho Teodósio II. Honório
morreu em 423, e seu sucessor natural deveria ser Valentiniano, mas o trono foi
usurpado pelo primicério dos notários João. Teodósio decidiu apoiar as pretensões de Gala
para tornar seu filho o imperador legítimo e enviou o então menino para Ravena
junto com exércitos, e ali ele foi consagrado como Valentiniano III em
425. Sendo ainda menor, a regência passou para as mãos de Gala, que
governou de facto até 433, quando Flávio Aécio iniciou
uma campanha militar para derrubá-la, saindo vitorioso e obrigando a regente a
retirar-se da vida pública. Faleceu em Roma em 450.
Moeda com a efígie de Gala Placídia e no verso a
cruz, c. 425-435.
Representação romântica de Vasiliy Smirnov, c. 1880, mostrando a imperatriz homenageando seus ancestrais no interior do Mausoléu
Representação romântica de Vasiliy Smirnov, c. 1880, mostrando a imperatriz homenageando seus ancestrais no interior do Mausoléu
Tem sido
muito debatido entre os historiadores quem teria sido o verdadeiro patrono do
Mausoléu que leva o nome de Gala Placídia, mas existem boas evidências que
apoiam a teoria de que sua construção foi ordenada ou por ela mesma ou pela
Casa Imperial. É sabido que Gala financiou a construção de
várias igrejas e capelas, e a sua localização, na área dos palácios
imperiais de Ravena, é fortemente sugestiva. Entretanto, é um edifício que se
desvia da tradição anterior de mausoléus régios da Roma tardo-imperial, tanto
por suas dimensões reduzidas como pela sua planta cruciforme. Porém, Gala era
uma devota da Santa Cruz, tendo a ela dedicado sua capela privada no palácio
imperial de Ravena, construída também sobre a forma da cruz. Além disso ela
havia oferecido ricos dotes à Basílica da Santa Cruz em Jerusalém, e nas
moedas onde é representada a cruz sempre aparece. A estrutura do Mausoléu
remete a um precedente similar que fora erguido em Constantinopla como capela
mortuária imperial, e a outro muito parecido na mesma cidade que serviu como
mausoléu de Arcádio e sua família, e ambos devem ter sido conhecidos por Gala.
Mas não existe nenhuma evidência direta de que a estrutura aqui em questão foi
de fato erguida a seu mando. Tampouco a data precisa de sua construção pôde ser
assegurada. Se foi mesmo obra sua, duas datas são mais prováveis: entre 417 e
421, quando estava casada com Constâncio, e o período em que assumiu a regência
em nome de Valentiniano, a partir de 425. Alguns estudiosos, especialmente
o biógrafo de Gala, Stewart Oost,
levantaram a possibilidade de que o Mausoléu foi erguido por ordem de
Valentiniano III, seu filho, ou pelo seu meio-irmão Honório. É de notar também
que fontes coevas que narraram a vida da imperatriz não mencionaram o Mausoléu.
Mesmo entre dúvidas, a maior parte dos historiadores modernos considera a
atribuição a Gala pelo menos bastante plausível.
Da mesma forma é uma incógnita seu uso original. A cumeeira em forma de
pinha era típica das estruturas funerárias romanas, e as janelas pequenas e seu
programa iconográfico reforçam esta ideia. Além disso, escavações no
século XIX revelaram no subsolo remanescentes de elementos arquitetônicos
similares aos que eram usados nos nichos das catacumbas. Uma das
hipóteses é de que tenha sido a tumba da própria Gala. Uma antiga tradição
dizia que ela havia sido enterrada diante do altar deste
Mausoléu, num dos sarcófagos que
ali ainda existem, ataviada com trajes imperiais e sentada em um trono. Esse
sarcófago permaneceu intacto até o século XVI, quando crianças, aproveitando-se
de uma abertura que ele possui, atearam fogo ao seu conteúdo. Mas as conclusões
tiradas a partir da sua análise estilística não concordam com a época em que
viveu a imperatriz, apontando uma data de execução pelo menos um século
posterior à conclusão do Mausoléu e sugerindo uma origem estranha ao edifício,
sendo possivelmente uma transferência de uma necrópole vizinha
ou da Basílica de São Vital. Se seu corpo foi trasladado para ali em algum
momento, terá sido depois de um sepultamento anterior.
É certo que ela faleceu em Roma, e para alguns ela foi ali sepultada, em
uma capela imperial ao lado da Basílica de São Pedro. Essa teoria é apoiada através de uma cadeia de
eventos sugestivos. Pouco antes de sua morte em Roma houve o enterramento de um
certo Teodósio nessa capela imperial, uma cerimônia que segundo os registros
contou com a presença de uma "Placídia" (não é garantido tratar-se da
mesma Placídia), membros do senado romano e
do papa,
eminências que só estariam presentes para honrar uma figura também ilustre. No
século XV essa capela foi escavada e nela foi encontrado um sarcófago revestido
de grande quantidade de prata e contendo dois caixões, um grande e um pequeno,
cujos corpos estavam ataviados com trajes de ouro que pesavam dezesseis libras,
uma riqueza indicativa de serem personagens imperiais. Isso parece corroborar a
tese de que pertenciam a Gala e ao filho que tivera com Ataúlfo, mas sua
identificação permanece hipotética, porque em seguida a tumba foi desmantelada
e os metais preciosos removidos por ordem do papa, impedindo uma confirmação
moderna.
Alternativamente, como há evidências de que ela sempre lamentara o
precoce desaparecimento do pequeno Teodósio, filho que tivera com Ataúlfo, de
que trouxera o seu corpo com ela quando foi devolvida à Itália e que o
mantivera em Ravena, terá precisado de um local digno para depositar o defunto
antes de mudar-se com ele para Roma, e o Mausoléu é um edifício que parece
bastante adequado para isso. Um viajante italiano visitou-o no século XII e
relatou ter visto uma inscrição com o nome de Teodósio, mas ela já não é mais
visível. Como os locais de sepultamento dos outros Teodósios da família
imperial são conhecidos - Teodósio I e Teodósio II, ambos em Constantinopla -
parece lícito supor que esse Teodósio se tratasse do primeiro filho de Gala, e
que o Mausoléu tenha sido o local de repouso temporário desta criança. As
próprias dimensões modestas do edifício poderiam explicar seu uso como sepulcro
não de um imperador, cujos sepultamentos se davam usualmente em edifícios
monumentais, mas para o filho de um rei bárbaro. Finalmente, vários dos
motivos decorativos do interior têm similares em tradições funerárias
visigóticas, sendo encontrados em sarcófagos e outros objetos.
O Mausoléu é uma pequena estrutura de tijolos aparentes, com 12,75 m de
comprimento e 10,20 m de largura e com uma cúpula interna
de 4,4 m de diâmetro. É coberta com telhas cerâmicas e sua planta possui a
forma da cruz latina, com um
braço ligeiramente mais comprido que os outros, constituindo uma diminuta nave. Os braços possuem fachadas em forma de edícula, com uma
base retangular dividida em dois arcos cegos nas laterais e um arco central em sua
maior parte cego, perfurado apenas por uma estreita janela vertical. Sobre essa
base repousa um frontão clássico
com um pequeno óculo retangular
ao centro. A fachada principal não apresenta arcos cegos, apenas uma porta no
centro com um lintel decorado
por um friso em
relevo, que mostra dois animais fantásticos semelhantes a felinos em torno de
uma representação de um vaso, entre motivos fitomórficos. Sobre o cruzamento
dos braços se ergue uma estrutura cúbica com pequenas janelas e coberta por um
telhado em quatro águas, contendo em seu interior a cúpula.
Seu
interior contrasta fortemente com a simplicidade externa, tendo suas
superfícies parietais quase integralmente decoradas de mosaicos com tésseras de vidro e esmalte colorido, em parte revestidas de ouro, em uma densidade que chega a 271 peças por decímetro quadrado. Uma
faixa na parte inferior das paredes é revestida com mármore amarelo.
O teto da parte central é uma cúpula rasa, apoiada em pendentes triangulares
estreitos, entre os quais se delineiam quatro áreas semicirculares ou lunetas.
Sobre os braços, o teto é em forma de abóbada de berço, cujas extremidades são fechadas verticalmente por
lunetas que possuem aberturas centrais. A terminação anterior do braço que
serve como nave não tem janelas e abre-se a porta de entrada. Nos três outros
braços se encontram sarcófagos.
Segundo
relatório da Unesco, o prédio evidencia ser uma transição entre as
tipologias funerárias imperiais da Roma Antiga e
os martyria cruciformes paleocristãos,
e pertence à tradição ocidental de arquitetura, com alguns exemplos precursores
italianos. Uma característica típica dessa fase é o uso de ânforas como
material de construção em vez de tijolos, a fim de aliviar o peso das
estruturas. No caso, elas foram encontradas durante reparos no prédio em 1838,
no volume cúbico que sustenta a cúpula. Sua aparência original, contudo,
era bastante distinta do que a que hoje se pode contemplar. Primitivamente o
edifício era um anexo da Igreja de Santa Cruz, da qual só restam ruínas,
associado à extremidade sul do seu nártex e
precedido de um pórtico. Era
revestido de estuque pintado
de modo a imitar mármore, removido posteriormente.
Sua identificação como monumento fúnebre só se fixou no século VII,
quando foram acrescentados sarcófagos ao interior. A primeira referência
documental que associa Gala à construção data do início do século IX, constando
numa passagem do Liber Pontificalis Ecclesiae Ravennatis de Andrea Agnellus, um padre
de Ravena. Disse ele que a Igreja da Santa Cruz fora decorada por ordem da
imperatriz, e relatou a existência de uma epígrafe atestando
que a decoração da Capela de São Zacarias, um
edifício também anexo à Igreja no lado oposto do nártex, teria sido ordenada
por Gala, mas Agnellus não transcreveu a inscrição e ela se perdeu. Além disso,
citou que já em sua época a identificação do prédio como o túmulo de Gala era
apenas uma tradição popular, e referia-se a ele como "Mosteiro de São Nazário" (na
época "mosteiro" poderia significar apenas uma edificação ou capela
fundada por monges e não sua habitação). Embora se suponha que em sua
origem fosse dedicado a São Lourenço, não há
provas documentais. Referências explícitas ao patronato da imperatriz só
apareceram em 1279, e desde então essa opinião se generalizou.
Em 1540 o piso foi substituído com mármore na técnica de opus sectile e
elevado em 1,43 m, a área em torno do edifício também foi aterrada na mesma
altura, e em 1602 o prédio foi desvinculado de Santa Croce, cujo nártex
foi destruído e a fachada, recuada em sete metros. Foi então envolvido
pelo convento de São Vital. Nesta altura a entrada original foi fechada e
transferida para uma pequena porta aberta no lado oeste. Em 1774 esta mudança
foi anulada, retornando a entrada à sua posição primitiva. Entre 1898 e
1901 a parte inferior das paredes internas foi revestida de mármore
amarelo, e suas janelas, originalmente talvez de vidro, são atualmente
fechadas com placas translúcidas de alabastro ofertadas
por Vitório Emanuel III em 1908.
A cúpula é inteiramente revestida de uma simulação de céu estrelado, com
uma cor de azul profundo e muitas estrelas douradas em arranjo concêntrico, com
tamanhos maiores à medida que se afastam do centro, o que dá uma impressão de
maior altura. No centro há uma grande cruz latina dourada. Nos quatro cantos,
sobre os pendentes, estão meias-figuras douradas de seres alados sobre nuvens,
representando as criaturas associadas aos quatro apóstolos evangelistas -
o anjo, o touro, o leão e
a águia. São
imagens típicas da iconografia paleocristã, não possuindo auréolas nem
os livros dos Evangelhos, elementos
que só apareceram por volta do século VI, mas diferem do uso da época por terem
apenas duas asas, quando o comum era a representação de seis.
A cruz flutuando livre no céu estrelado se presta a várias
interpretações. Segundo Gillian Mackie,
possivelmente significa o anúncio apocalíptico do Segundo Advento de Cristo, Swift
& Alwis a veem como uma expressão da crença no radiante poder intercessor
dos santos; já foi citada como uma reprodução da visão de Constantino, como um
sinal de ortodoxia, e
pode ilustrar o conceito cosmográfico dos
cristãos primitivos, que cultivavam a ideia de o universo ser conformado à
maneira de uma cruz como um símbolo da Encarnação do Verbo Divino.
Dizia Santo Irineu: "porque Cristo é o Verbo de Deus... que em
sua forma invisível penetra todo o universo e abrange seu comprimento e
largura, sua altura e profundidade... o Filho de Deus também foi crucificado
nesta forma cruciforme do universo". Assim, para Burton-Christie a cruz
entre estrelas significa a presença de Deus a
brilhar em todo o universo.
Sobre as quatro lunetas, áreas semicirculares entre os pendentes, que
simbolizam a transição entre o mundo celeste e o terrestre, estão duplas de
figuras masculinas vestidas de túnicas brancas com pálios,
características dos senadores romanos, mas que
podem simbolizar a pureza dos recém-batizados ou a
transfiguração da alma na Ressurreição final.
Identificados como os demais oito apóstolos, colocam-se contra um fundo azul
escuro, flanqueando as janelas centrais e gesticulando de modo a aclamar a cruz
celeste. Todos têm um aspecto semelhante, mas se distinguem pela sua
gestualidade e pelas fisionomias individualizadas. Quase todas as figuras à
esquerda das janelas seguram um rolo de pergaminho em
sua mão esquerda, e as da direita escondem a mesma mão na túnica; ambas sempre
têm sua mão direita elevada em aclamação, numa postura que era típica da
iconografia dos oradores romanos.
Diferem dois personagens, identificados como São Paulo e São Pedro. O
primeiro, por sua longa barba escura, e o segundo, por segurar uma chave e ter
cabelos brancos, traços convencionais na sua iconografia.
Debaixo das janelas estão pares de figuras de pombas bebendo água de
vasos ou fontes, que são interpretadas como alegorias da
luta da alma em
busca do Reino dos Céus, e a água pode ser um símbolo do
batismo, um tema comum em contextos fúnebres e batismais do cristianismo
primitivo. Na parte superior às janelas há um motivo dourado de concha que
empresta uma sensação de tridimensionalidade às cenas abaixo, contendo ainda
adornos em forma de pérolas e uma
pomba ao centro, que representa o Espírito Santo. As áreas
são delimitadas com faixas de variados motivos abstratos multicores e ramos
de videira entrelaçados, tradicionalmente associados
à Salvação oferecida
por Cristo.
Detalhe da decoração de flores estilizadas e
círculos concêntricos
Luneta no braço direito com os veados a beber
O Bom Pastor, luneta sobre a porta de entrada
Luneta oposta à entrada.
Luneta no braço direito com os veados a beber
O Bom Pastor, luneta sobre a porta de entrada
Luneta oposta à entrada.
Vista do eixo principal do edifício, com os
sarcófagos.
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