Um imenso gargalo em todas as cidades
brasileiras
Texto por
Luis Antonio Lindau
Transporte é a infraestrutura com maior potencial para direcionar o
desenvolvimento urbano. Uma visão de futuro passa por explorar de forma controlada
esta vertente em todo o seu limite, por entender e exercer o papel que compete
ao transporte como protagonista da conformação urbana de uma cidade. Muitas
metrópoles latino-americanas vivem um processo constante de reconstrução.
Estima-se que até metade das áreas urbanas das nossas grandes cidades passarão
por uma renovação atingindo tanto vazios urbanos como áreas já edificadas.
O planejamento dos transportes é um processo contínuo e, portanto, não
pode se encerrar na formulação de um plano. A demanda por transportes deriva de
um conjunto complexo de fatores, desde os locacionais até os econômicos. Logo
uma sistematização apropriada para o estudo e o gerenciamento da demanda
compreende mais de uma área do conhecimento, envolve mais de uma esfera do
poder, e transcende a realização de um mandato governamental. É preciso
planejar a mobilidade urbana dentro de um contexto multidisciplinar.
Segue uma ilustração da complexa relação da mobilidade com a dinâmica
econômica-urbana de uma cidade nesse início de milênio:
O aumento na renda da população
urbana brasileira vem se refletindo de forma direta na indústria da construção
civil. A ascensão econômica dos diferentes estratos da população demanda uma
oferta diferenciada de imóveis. O padrão de construção que atendia os nossos
imigrantes urbanos de décadas anteriores não mais necessariamente atende as
aspirações da nossa classe urbana emergente. Novos imóveis – sejam eles
residenciais, comerciais ou para serviços, ou mesmo mistos – surgem em
praticamente todos os bairros, alterando suas densidades e exercendo pressão
sobre as infraestruturas instaladas. Os deslocamentos antes pendulares
bairro-centro, onde então residiam e trabalhavam nossos habitantes, agora se
dão em múltiplas direções. O aumento da renda também proporcionou a motorização
de uma parcela significativa dos então usuários cativos do transporte coletivo,
através da aquisição de autos e motos. Assim, multiplicam-se as origens e os
destinos das viagens, cresce a demanda pelo transporte privado e cai a demanda
pelo transporte coletivo
Dentre todas as infraestruturas, transportes é a que exige mais recursos
para aumentar a oferta. Transportes é a que requer a maior melhor compreensão
na leitura. No entanto, e no que se refere à mobilidade urbana, a avaliação dos
polos geradores de viagens, por exemplo, ainda tem sua análise muito limitada a
um empreendimento, no impacto sobre a circulação viária na área de influência
do seu entorno e na quantidade de vagas disponibilizada para o estacionamento de
automóveis, onde prevalece a máxima de quanto mais, melhor. E com o proliferar
dos empreendimentos, multiplicam-se os problemas de circulação na rede.
O transporte de bens é essencial e vem assumindo uma função cada vez
mais vital para a sociedade e a economia moderna. Mas muito pouco se sabe sobre
a circulação de cargas urbanas. Por exemplo, o sistema just-in-time, que
proporciona ganhos no processo produtivo através da redução de estoques e da
diminuição no tamanho dos lotes, pressupõe uma maior frequência de entregas e,
portanto, um maior número de viagens veiculares. E o aumento da participação de
veículos de carga na composição do tráfego gera uma nova natureza nos conflitos
viários e na disputa por vagas de estacionamento, entre veículos de passageiros
e carga representados por motos, vans e caminhões de diversas dimensões e
formatos. Torna-se importante, portanto, planejar o sistema de transportes de
maneira mais integrada, levando-se em conta as características particulares e
os interesses de cada setor envolvido.
É essencial harmonizar os movimentos de cargas e de pessoas. É
fundamental concatenar ações transversais para minimizar as externalidades
negativas geradas pelo transporte urbano, mormente os congestionamentos, os
atrasos, a intrusão visual, os acidentes, os ruídos, as emissões e os impactos
sobre a saúde.
Mobilidade
urbana no contexto nacional e internacional
Nunca se vendeu tanto automóvel e motocicletas no Brasil. E nunca a
discussão sobre congestionamentos esteve tão presente na nossa vida. Os
congestionamentos se alastraram no tempo e no espaço, ocupando novas vias e
horários de Porto Alegre. Os tempos de deslocamento entre pares origem-destino
na cidade de Porto Alegre vêm crescendo ano a ano. Muito já perguntam se
haveria um limite, um ponto quando Porto Alegre atingiria a situação
prevalecente em megalópoles como, por exemplo, São Paulo, onde uma viagem urbana
pode levar horas, muito embora os recursos públicos municipais aportados ao
setor rivalizem com os orçamentos da saúde e educação. Os congestionamentos
geram externalidades negativas e grandes deseconomias que contribuem para a
perda da competitividade de uma cidade frente àquelas cidades que tomaram a
decisão por enfrentar, de frente, a crise da mobilidade urbana.
Entre essas cidades já despontam Bogotá e Curitiba - no cenário
latino-americano, Paris, Estocolmo, Amsterdam, Milão e Londres – na dimensão
europeia, Cingapura e Seul – na Ásia, e, mais recentemente, Nova Iorque – na
América do Norte.
Excetuando a crise econômica que ora se abate sobre o planeta e cuja
exata dimensão competirá à história tratar, as perspectivas para a economia
brasileira são muito favoráveis na medida em que o risco Brasil cai a patamares
nunca vistos e a atratividade do nosso país se aproxima daqueles classificados
como investment-grade. Como resultado do crescimento da renda, nossas famílias
urbanas estão se motorizando e deixando ainda mais marcante a falta de
investimentos das últimas décadas em sistemas de transporte urbano. Essa
carência é particularmente perceptível em cidades brasileiras de porte médio a
grande, ou seja, cidades com população superior a 500 mil habitantes.
Na medida em que carecemos de uma rede viária estruturada, dividida em
vias expressas, arteriais, coletoras e locais, praticamente todas as vias da
grande maioria das metrópoles brasileiras, mesclam o tráfego local com o de
passagem, além de juntar automóveis, motos, ônibus, lotações e caminhões a
pedestres e veículos de tração animal e humana. O tráfego local e o de passagem
têm velocidades e alcances distintos, sendo assim intrinsicamente conflitantes
e naturalmente incompatíveis. Como resultado de anos de transformação de vias
coletoras de bairro em vias arteriais, buscando acomodar o volume crescente do
tráfego de veículos privados, temos hoje um quadro viário marcado pelo
alastramento dos congestionamentos e das emissões veiculares que tem efeitos
não só sobre a saúde humana como também sobre o aquecimento global, por
acidentes de trânsito que agora se espalham por toda a rede, e pela perda
crescente de atratividade do transporte coletivo que resta cada vez mais refém
do congestionamento.
Transporte afeta a saúde da população
tanto de forma direta como através da poluição do meio ambiente. Transporte
responde por 23% das emissões de gases de efeito estufa e por 70% da poluição
do ar nas grandes cidades. As emissões do transporte apresentam um crescimento
mais rápido do que em qualquer outro setor. Veículos motorizados sobre pneus,
que preponderam nas áreas urbanizadas do planeta, respondem por 74% das
emissões de CO2 provenientes do transporte. Os principais impactos do
transporte sobre a saúde incluem as lesões decorrentes de acidentes de
trânsito, problemas respiratórios decorrentes da poluição do ar, obesidade
associada à redução da atividade física e perturbações causadas pelo ruído. Os
grupos mais vulneráveis incluem crianças e idosos, bem como ciclistas e
pedestres.
Estima-se que a inspeção técnica veicular prevista no Código de Trânsito
Brasileiro de 1998, que ainda está por ser regulamentada, e que daria amparo
legal para retirar das ruas aqueles veículos sem condições de trafegar por
questões de segurança ou por não se enquadrarem nas normas de emissões, poderia
reprovar até um terço dos automóveis que circulam em São Paulo. Nas ruas
movimentadas das nossas cidades, onde a idade média da frota dos automóveis
ultrapassa os 10 anos, é comum o nível de ruído ultrapassar os limites legais.
As estatísticas brasileiras revelam que 30% dos
acidentes de trânsito envolvem pedestres e estes respondem por 50% das mortes
de trânsito. Pesquisas internacionais mostram que um pedestre atingido por um
automóvel a 60 km/h tem 95% de probabilidade de morrer, a 50 km/h esta
probabilidade cai para 50% e a 30 km/h fica em 5%.
Ações integradas entre os diversos setores que gerenciam as políticas
urbanas são fundamentais para a melhora da qualidade do ar nas grandes cidades
e para a redução dos acidentes. O estímulo ao transporte coletivo e a redução
de veículos circulantes é, talvez, a mais importante dessas ações.
Nenhuma rede viária consegue crescer na mesma proporção dos novos
empreendimentos e da motorização. Durante décadas o mundo tentou mover a maior
quantidade possível de veículos da forma mais rápida possível. Hoje as grandes
metrópoles enfrentam o desafio de melhorar a qualidade do espaço viário, de
tornar mais agradável e fácil a circulação das pessoas. Nas cidades proativas
pela mobilidade do século XXI, discute-se o resgate dos espaços públicos para
os cidadãos e o fim da hegemonia do automóvel sobre o limitado espaço viário
disponível.
Enquanto isso as cidades brasileiras, quer por inércia ou por desconhecimento
das melhores práticas internacionais, continuam apostando na construção de
viadutos para atacar problemas localizados de congestionamento. Também seguem
asfaltando as ruas de suas periferias mais pobres e condenando suas muitas
crianças a compartirem o pouco espaço disponível para o lazer com alguns poucos
veículos motorizados que agora se deslocam em velocidades bem mais elevadas.
Muito pouco se investe no planejamento e na construção de uma infraestrutura de
transportes que possibilite o resgate da escala humana da cidade.
No período que antecedeu a reforma constitucional de 1988 avançamos na
implantação de sistemas estruturantes de transporte coletivo nas regiões
metropolitanas brasileiras. Foram idealizados e implantados sistemas sobre pneus
de alta capacidade que serviram de modelo e foram transpostos com sucesso para
realidades vigentes em outros países. Entre eles, cabe destacar os corredores
de ônibus de São Paulo e Porto Alegre, que conseguiram acomodar fluxos
veiculares elevados, e o sistema estruturado de Curitiba hoje reconhecido
mundialmente como o pioneiro dos BRT (Bus Rapid Transit). O Governo Federal
desempenhou, então, um papel preponderante na captação de recursos
internacionais e na implantação dos modernos trens metropolitanos de Recife,
Belo Horizonte e Porto Alegre. Ao falhar no intuito original de criar uma
esfera metropolitana de poder e ao empoderar os empobrecidos municípios
brasileiros, a nova constituição sepultou por décadas qualquer avanço
significativo na racionalização da mobilidade metropolitana brasileira.
No mundo, ainda muito pouco se avançou nos estudos de carga urbana.
Práticas adotadas em determinadas localidades nem sempre atenderão as
necessidades de outras, ou seja, as soluções devem respeitar peculiaridades
locais. Japão e Holanda, por exemplo, consideram a implantação de dutos
subterrâneos para a distribuição de carga nas zonas centrais, resgatando a
prática de alguns correios europeus no início do século passado. A utilização
de dutos em cidades ainda está bastante limitada à distribuição de gás natural.
Inovações em carga urbana incluem desde caixas seguras para depósito noturno de
mercadorias até guindastes que estacionam próximo ao centro e elevam
contêineres para abastecer lojas localizadas em ruas muito estreitas.
Ainda, diversas cidades já adotaram medidas de gerenciamento de carga
urbana que incluem sistemas de licenças de acesso, pedágios urbanos para carga,
delimitação de zonas ambientais, definição de rotas de circulação para veículos
pesados, utilização de combustíveis alternativos, parcerias entre empresas
transportadoras, e criação de centros de distribuição para consolidação de
carga.
Extraído: http://embarqbrasil.org/node/136
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