Conto de Luiz Carlos Facó
A pachorra tomava conta de mim. Todo
domingo ela se repete. Torno-me indolente, entregue à mesmice de um dia tão sem
graça. Não fora este texto que me dá prazer em escrever, estaria sob os lençóis
da minha cama, rolando de um lado para outro. Num desassossego de fazer dó. Não
creio que Deus tenha reservado para Si algum dia de descanso. Eu, sua criatura,
não tenho. Acho que o domingo foi uma invenção da preguiça humana justificada
na passagem bíblica que revela: depois da criação do universo, no sétimo dia, o
Todo-Poderoso descansou. Descanso que não dou crédito. Afinal, Ele é Deus. E,
como tal, Onisciente, Onipresente, Onipotente. Com tais poderes, como pôde descansar
sequer repousar? Pôde sim, se desiludir. Até os deuses se desiludem com as
criaturas que se desgarram dos seus ensinamentos. Pelo abandono delas da
prática da bondade, da solidariedade, do amor ao próximo. Por vê-las
imiscuir-se em atos de corrupção, abandono dos princípios éticos, morais, em
lutas de conquistas, em competições acirradas, em acumular vaidades doentias,
em submeter seus semelhantes aos tacões dos seus caprichos e volúpias.
Embora o domingo, pela sua própria
natureza, não propicie, estimule ou exacerbe a minha criatividade, faço tudo
para exercitá-la. Leio a mancheias. Escrevo sem parar, mesmo tendo a lentidão
como companheira, pois só assim sinto-me vivo nesse dia morto.
Hoje arrumando meus alfarrábios,
encontrei, entre surpreso e emocionado, um caderno que preenchi no ano de 1957
com varias anotações de episódios que vivenciei. O mais interessante deles,
dou-lhes conta, agora senhores leitores.
Chamavam-no padre Santo. Embora de
santo nada tivesse. No entanto, era queridíssimo entre os paroquianos graças
aos seus cuidados com os mais necessitados. Cuidados que lhe escapuliam no
trato com as coisas de Deus: pregar o Evangelho; ensinar os mandamentos do
Senhor; rezar a missa diária; ouvir a confissão dos fieis; ministrar os
sacramentos abrindo exceção para dois deles: o batismo e a extrema-unção,
quando aproveitava para “beber” o defunto ou a defunta até a hora do enterro.
Aliás, um acontecimento que adorava. Dado que era exímio em puxar as
“incelência”. Odiava a batina. Aversão que jamais o impediu de usá-la. Mesmo
quando velha, desbotada, suja do pó vermelho que se desprende do chão
sertanejo. Porque ela se tornara o seu escudo e a marca que o diferençava dos
seus acólitos. O sinal da responsabilidade e da subserviência exigida do seu
rebanho.
Iletrado, com imensa dificuldade,
fazia sermões. Desconhecia a Teologia e a Filosofia. Porém de burro não tinha
nada. Sabia comprar e vender como poucos, o que lhe valeu fama de esperto. As
mais das vezes de finório. Gabava-se de jamais ter feito um mau negócio. O que
era pura verdade. Tanto que, em pouco tempo, à frente da prelazia para a qual
fora designado pelo Arcebispo D. Augusto Álvaro da Silva, primaz do Brasil,
amealhou uma pequena fortuna. De sem-terra, tornou-se latifundiário, criador de
caprinos, fornecedor da melhor carne de sol da região. Para a desdita dos
velhos coronéis da localidade, que viam o seu prestígio pessoal esvair-se e
passar às mãos do ladino padre.
Como hábil politiqueiro, era capaz de
utilizar-se dos métodos mais desprezíveis para enfeixar sob suas rédeas o poder
municipal e regional. Às vozes que o confrontavam, bem poucas na verdade,
tratava de sufocá-las. Nem que para isso fosse necessário apagá-las para
sempre. Uma decisão que procrastinava até o último instante. Mas, quando
tomada, era cumprida por seus acompanhantes ser tergiversações, sequer
rezingas. Só determinava aos executores que não a levassem a efeito de forma
ardilosa. Tinha horror à tocaia. Fazia questão de que o executado soubesse quem
mandara eliminá-lo.
Diante de tanto poder, aureolado por
sua fama de santidade, quase milagreiro, em virtude da assistência que
despendia com os mais pobres, fornecendo-lhes mantimentos e roupas, passou a
ser cortejado por todos os políticos da capital. Mesmo distante, nos confins da
Bahia, Gloria, remansosa cidade situada na beirada do Rio São Francisco, onde o
diabo perdeu as botas, feudo do reverendo, viu-se de repente palco de ilustres
visitas. Secretários, deputados, senadores, até o governador do estado se
deslocavam do centro político para, naquele local, prestar homenagens ao padre
cuja fama ultrapassara os limites da região. O que lhe rendia, ainda mais,
prestígio diante do seu povo, e, de quando em quando, benfeitorias: uma
delegacia, um cartório, uma escola, uma estrada vicinal, um posto de saúde. Às
vezes, até dinheiro público, que ele embolsava sem nenhuma impudência.
Conquanto seu prestígio político se
fizesse cada dia mais ascendente, o religioso entrava em colapso. O Bispo do
Município de Senhor do Bonfim, seu superior hierárquico, repreendia-o quase
sempre. Lamentava a vida dissipada que levava com mulher e filhos frequentando
os bordeis da cidade. Bebia, sem medidas. Da caninha pura e gostosa saída do
seu alambique, fazendo questão de que o primeiro gole fosse do santo. Jogava
pôquer diariamente e limpava os parceiros – protegido por sorte descomunal –
que ousavam enfrentá-lo. O bispo, censurando-o pela sua omissão religiosa no
pastoreio do seu povo, recriminava pelos seus métodos e atitudes na condução da
vida política regional. Admoestações que jamais abalaram o seu espírito e a sua
confiança. Fazia-se mouco a todas elas. Confiava no poder político que
conquistara para continuar na terra onde criara raízes. Porém, reverente, não
contestava o bispo e ainda o presenteva com licores, sacos de umbus, pequis e
mantas da melhor carne do sol que produzia.
Era muito jovem quando o conheci.
Partilhei momentos agradáveis a seu lado. Fomos conhecer as mulheres-damas da
cidade. Com algumas teve filhos. Fui apresentado aos seus amigos mais chegados
aos quais permitia toda a liberdade. Um deles me contou uma história, cuja
veracidade até hoje não comprovei verdadeira, mas que demostra toda a
sagacidade pseudo-religioso. Transmito-a sem tirar nem por, sequer um vírgula.
Chegado a Glória, recém-ordenado pelo
seminário de Estância, no estado de Sergipe, no qual teve como contemporâneo,
Lauro Barreto Fontes, uma singular figura, grande escritor e historiógrafo
sergipano, padre Santo atraiu, pela sua irreverência, a antipatia das beatas.
Uma delas, entretanto, cativada pela sua beleza e modos ofereceu-se para
servi-lo a troco de migalhas. Serviços que se estenderam por bom período. Até o
momento em que o vigário levou para a casa paroquial Maricotinha, uma mulher de
“vida fácil” que mais tarde se tornaria a mãe de metade de seus filhos.
Entrementes, enquanto viveu sob a
custódia da beata Severina, padre Santo teve uma vida comedida. Fazia suas
farras, porém, o cabresto curto, que a bondosa senhora lhe impusera, refreava
os seus ímpetos mais audaciosos, dando azo, inclusive, para cumprir suas
obrigações pastorais. Dentre elas, rezar, mesmo num latim arrevesado, a missa
diária, depois de noitada de orgia. Certo dia, porém, na hora da missa o padre
estava ausente. Zeferina, aturdida,
tentou localizá-lo. Como numa via-crúcis, percorreu todos os bares da cidade,
as casas de tolerância, diligenciando, em vão, localizar o irresponsável
religioso. Cabisbaixa, quando já desistira das suas pretensões, eis que ouve a
voz gritada do padre Santo: Ganhei, canalha. Eu tenho uma quadra de reis. Pague
e não bufe.
Animada Zeferina entrou na casa do
velho Armindo, palco da jogatina, e, encarando o ganhador da rodada chamou-o à
responsabilidade:
- Vá rezar a missa. Os fieis estão a
sua espera.
Esse, aturdido pela determinação da
anciã, não esboçou reação. Recolheu as fichas sobre a mesa, colocou-as na dobra
da manga da batina e acompanhou a velha senhora para cumprir o exercício do seu
ofício. Para os gatos pingados pacientes que sobraram da penitente espera a que
foram submetidos.
Sem inquietudes, padre Santo procedeu
como de costume. Era como se nada tivesse acontecido. Só na hora da consagração,
furibundo, reclamou do sacristão do pouco vinho colocado no cálice. Um detalhe
que o tirava do sério sempre que acontecia. Na hora da comunhão, dirigiu-se ao
sacrário, retirou o cibório onde estavam às hóstias e, por inadvertência,
deixou escorregar da manga da batina para o recipiente uma das fichas que
ganhara no jogo. De tão branca que era, ele não se deu conta da sua diabrura e
partiu para distribuir a comunhão.
Terminado o santo Sacrifício,
encontrava-se o padre na sacristia, desfazendo-se dos paramentos que envergava,
quando uma velinha aproximou-se:
- Padre, a hóstia que o senhor me
serviu durante a missa era dura como um osso. Mastiguei, mastiguei e só com
muita dificuldade pude degluti-la.
Ao que o astuto homem, lembrando-se
das fichas brancas que recebera como paga de seus lucros no jogo e
associando-as às hóstias, respondeu:
- Você é uma felizarda. Aconteceu-lhe
um milagre. Um prêmio à sua bem-aventurança. Você hoje recebeu o corpo de
Cristo completo: carne e osso. A carne você logo digeriu. O osso é que é duro
de roer. Até o de Cristo. Vá com Deus e que Ele a acompanhe.
Foi assim que nasceu sua fama de
milagreiro e o apelido de padre Santo, pois na verdade ele se chama Antônio
Virgulino Ferreira.
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