Crônica de Jayme
Barbosa
Viver na dúvida é muito
difícil, mas ter qualquer
certeza é completamente
imbecil.
Voltaire
Faz anos, li
entrevista de Jorge Luis Borges sobre os incríveis meandros da língua
portuguesa: ao ponto, dizia ele, de um texto traduzido para três idiomas
produzir versões totalmente diversas. O que mais o surpreendeu foi saber de
escritor nipônico que as três traduções eram absolutamente fiéis ao original.
Isso lembra
o filme de Akira Kurosawa baseado no conto de Ryunosuke Akutagawa, Rashomon,
que da década de 50 venceu o festival de Veneza e revelou o potencial dramático
de Toshiro Mifune.
A película
focaliza os depoimentos inteiramente discordantes das quatro únicas testemunhas
de um trágico acontecimento. É algo superior a ambiguidade da língua, que
assombrou o poeta argentino. É a relatividade do próprio fato ou da verdade que
o reveste.
Quando o
filme foi exibido, eu não tinha ainda descoberto que nenhuma verdade é
acessível. Só mais tarde entendi que a verdade é apenas aquilo em que se
acredita. Como ensina Mia Couto: “Os fatos só são verdadeiros depois de serem
inventados”. Já do ponto de vista do antropólogo catalão Sánchez Piñol: “Não há
verdades, há versões. A verdade é somente a última versão de um relato”.
Quando se
estuda a relatividade do movimento dos corpos no espeço, as infinitas
trajetórias dependentes das ilimitadas posições do observador, aprende-se que
existe um pressuposto e único ponto deste infindável espaço que permite a um
bendito olheiro, lá situado, identificar o real percurso.
Pode-se
então imaginar um individuo livre dos dogmas religiosos tradicionais,
intentando presumir um deus, como o abençoado observador, na função de
referencial absoluto da verdade, à imagem e semelhança do referencial absoluto
do movimento. Nessa estrutura
cartesiana, a exatidão incontestável de um fato – como a negada ao
espectador em Rashomon, que ele pensa existir só seria do conhecimento desse
deus detentor universal da verdade.
O diabo que
é um princípio intangível não pode ser comprovado. Começa-se então a questionar
a necessidade desse deus recém-nascido: Deus detém a verdade; nós, as dúvidas,
tormentos e sofrimentos. É desigual. Vira-se ateu, mesmo sem perder o
“sentimento oceânico” a que se Refere Romain Romand nas suas cartas a Freud.
Afinal somos cultivadores de deuses. “Se Deus não existisse o homem o homem não
seria capaz de criá-Lo”, assegura o bispo holandês George Berkley, com uma
lógica semelhante ao paradoxo revelado pelo Cristo de Pascal: “Tu não me
buscarias se já não tivesse encontrado”. Por outro lado, Mark Twain, nos
momentos de tristeza, culpava a Deus por não existir.
Somos,
portanto, criadores de deuses, desde quando fomos criados.
Vale também
lembrar que, ao criar seu deus, as escrituras recomendam não tomar seu santo
nome em vão, mas batizá-lo com o que lhe parecer, como ensina Alberto Caeiro em
O guardador de rebanhos:
Para que lhe
chamo Deus?
Chamo-lhe
flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se
ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e
flores e árvores e montes,
Se ele me
aparece como sendo árvores e montes
E luar sol e
flores,
É que ele
quer que eu o conheça
Como árvores
e montes e flores e luar e sol.
E, por fim,
para reforçar a crença no mote desta descrente crônica não esqueçamos a máxima
de Nietzsche: “Fé não significa saber o que é a verdade.”
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