terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A VERDADE E O BOM DEUS

Crônica de Jayme Barbosa

Viver na dúvida é muito difícil, mas ter qualquer
certeza é completamente imbecil.
Voltaire

Faz anos, li entrevista de Jorge Luis Borges sobre os incríveis meandros da língua portuguesa: ao ponto, dizia ele, de um texto traduzido para três idiomas produzir versões totalmente diversas. O que mais o surpreendeu foi saber de escritor nipônico que as três traduções eram absolutamente fiéis ao original.
Isso lembra o filme de Akira Kurosawa baseado no conto de Ryunosuke Akutagawa, Rashomon, que da década de 50 venceu o festival de Veneza e revelou o potencial dramático de Toshiro Mifune.
A película focaliza os depoimentos inteiramente discordantes das quatro únicas testemunhas de um trágico acontecimento. É algo superior a ambiguidade da língua, que assombrou o poeta argentino. É a relatividade do próprio fato ou da verdade que o reveste.

Quando o filme foi exibido, eu não tinha ainda descoberto que nenhuma verdade é acessível. Só mais tarde entendi que a verdade é apenas aquilo em que se acredita. Como ensina Mia Couto: “Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados”. Já do ponto de vista do antropólogo catalão Sánchez Piñol: “Não há verdades, há versões. A verdade é somente a última versão de um relato”.
Quando se estuda a relatividade do movimento dos corpos no espeço, as infinitas trajetórias dependentes das ilimitadas posições do observador, aprende-se que existe um pressuposto e único ponto deste infindável espaço que permite a um bendito olheiro, lá situado, identificar o real percurso.
Pode-se então imaginar um individuo livre dos dogmas religiosos tradicionais, intentando presumir um deus, como o abençoado observador, na função de referencial absoluto da verdade, à imagem e semelhança do referencial absoluto do movimento. Nessa estrutura  cartesiana, a exatidão incontestável de um fato – como a negada ao espectador em Rashomon, que ele pensa existir só seria do conhecimento desse deus detentor universal da verdade.
O diabo que é um princípio intangível não pode ser comprovado. Começa-se então a questionar a necessidade desse deus recém-nascido: Deus detém a verdade; nós, as dúvidas, tormentos e sofrimentos. É desigual. Vira-se ateu, mesmo sem perder o “sentimento oceânico” a que se Refere Romain Romand nas suas cartas a Freud. Afinal somos cultivadores de deuses. “Se Deus não existisse o homem o homem não seria capaz de criá-Lo”, assegura o bispo holandês George Berkley, com uma lógica semelhante ao paradoxo revelado pelo Cristo de Pascal: “Tu não me buscarias se já não tivesse encontrado”. Por outro lado, Mark Twain, nos momentos de tristeza, culpava a Deus por não existir.
Somos, portanto, criadores de deuses, desde quando fomos criados.
Vale também lembrar que, ao criar seu deus, as escrituras recomendam não tomar seu santo nome em vão, mas batizá-lo com o que lhe parecer, como ensina Alberto Caeiro em O guardador de rebanhos:
Para que lhe chamo Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E, por fim, para reforçar a crença no mote desta descrente crônica não esqueçamos a máxima de Nietzsche: “Fé não significa saber o que é a verdade.” 

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