segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

PUPU DAS RENDAS


Conto de Luiz Carlos Facó

Doutor Policarpo, quando o conheci, era um velho médico de Gandu, município da Bahia. Festejado pela classe social dominante da localidade e odiado pelo zé-povinho. Mas, quem disse que ele se incomodava com aquela rejeição? Aos que lhe lembravam tão grande desapreço, ele arguia:
- O povo não interessa, não avaliza nada. Não possui patrimônio para abonar o que quer que seja. Sinto-me bem em não ser por ele aceito. O povo é pobre até no espírito. Não vale o prato em que come. Se é que tem prato.
Não obstante tais afirmações, feitas com pretensões de manter a arraia-miúda apartada da sua vida, ele não conseguia. Toda gente o fazia alvo de insolências. Certo dia, quando passava pela praça da matriz, dirigindo-se ao consultório, um gaiato gritou bem alto, numa atitude provocativa a sua pessoa:
- Por esta praça só passam médicos e baitolas.
Ao que ele, apesar de afogueado e chocado pela afronta, perguntou:
- Você é médico, meu filho?
Diante da resposta negativa, curta e grossa do ofensor, Policarpo, no mesmo tom do provocador, explodiu, sentindo-se vitorioso:
- Então você é baitola.

Não eram, entretanto, aquelas alusões acrimoniosas contra a gente pobre da terra os motivos da sua impopularidade. Ela vinha de longe. Da época em que, recém-formado, com uma cuia na mão, estetoscópio pendurado ao pescoço e vestindo roupa surrada, deitara âncoras no município de Ituberá, donde Gandu, posteriormente, se emanciparia.
Durante pares de anos como único médico da cidade, Policarpo deitou e rolou. Atendia aos pacientes se podia ou queria, fazendo exceção para os ricaços, aos quais dava socorro pronto e cuidadoso. Quando o cliente não lhe era do agrado ou paupérrimo, mesmo em casos de emergência, como um parto, ele dizia:
- Chame dona Zefa, ela é boa aparadeira. Ou então:
- Deixa morrer. Um a mais, um a menos não fará falta.
Num total desrespeito à dignidade humana, parecido com a insensibilidade e a falta de humanitarismo, característica de muitos médicos atuais. Cobrava honorários salgados sem fazer qual tipo de concessão até àqueles que não possuíam dez réis de mel coado. A esses exigia, por seus serviços, capoeira de galinha, casal de porcos, mesmo um burro ou um cavalo xucro, talvez os únicos bens substantivos daqueles desvalidos. Sem pagar, não ousavam permanecer. E aí daquele que reclamasse! Entrava na lista negra do médico, resultando em ficar desassistido, a não ser pelo padre, quando estava na cidade, para lhe administrar a extrema unção. Policarpo só tinha uma virtude. Seus diagnósticos eram precisos. Ao afirmar, depois de examinar e auscultar o paciente, ser ele portador de tuberculose, verminose sífilis, espinhela caída, coqueluche, era tranchã. Por isso, suportavam-no. Uma anuência estribada na sabedoria popular: “é melhor comer pouco, do que dormir sem cear”. Agindo assim, em curto tempo, o esculápio se tornou rico. Suas roças de cacau se espalhavam por todo município. Mas, “como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe”, um dia, vindo de Esplanada, também município da Bahia, chega à cidade, precedido de boa fama e excelente reputação, um outro médico, Antônio da Costa Pinto Dantas. Acontecimento inesperado, que inflou de contentamento os moradores da localidade. À exceção de Policarpo, cuja vaidade espicaçada, diante daquela festiva manifestação popular de boas-vindas ao forasteiro, determinava-lhe não sair dos seus cuidados para saudar o ilustre colega. Apesar de ser o “intruso” – como o apelidou desde aquele instante – seu velho conhecido e contemporâneo de estudos na vetusta Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. Malgrado o amuo do colega, Antônio resolveu fixar-se na cidade e ali clinicar. E o fez com sucesso.
Criado no seio de uma família aristocrática – era neto do Barão de Jeremoabo, político e latifundiário – o recém-chegado transpirava paciência, educação, candura e total desprendimento de bens materiais, características que o fizeram, logo, o xodó de toda gente. Principalmente porque tais atributos estavam atrelados a sua competência profissional.  Resultado: tudo na cidade passou a girar em torno dele. Era o Dr. Antônio prá cá, o Dr. Antônio prá lá.  Uma bajulação só. Festas, batizados, casamentos, quaisquer atividades sociais só eram consideradas distintas se contassem com a presença daquele novato profissional na cidade. Até as mexeriqueiras da pequenina Ituberá desmanchavam-se em elogios para com ele. Coisa rara. Porquanto elas sempre tinham um pigarro ao referir-se a alguém. Nem o velho pároco da localidade, há anos do exercício de seu santo ministério, escapava às maldades e às línguas ferinas daquelas mulheres.
Enquanto isso, o Dr. Policarpo era lançado no rol do esquecimento. Dava dó ver o consultório dele entregue às moscas. Ao passo que o do colega ficava apinhado de gente. Tamanho era o isolamento em que se encontrava que resolveu partir. Iria para o vizinho Gandu. A solução menos traumática que encontrara para não se apartar dos bens adquiridos na região.
...

Como não havia médico na localidade escolhida por Policarpo para homizia-se, os munícipes o receberam com reservadas honras, jamais pompas. Porém o homem continuava o mesmo. Mercenário, intolerante, autoritário, vaidoso do seu saber, embora desde a colação de grau jamais houvesse lido uma página de qualquer tratado referente ao seu mister. Cada vez mais esquecido do juramento feito a Hipócrates. Porventura trouxesse à memória a liturgia daquela profissão de fé, feita em voz alta no dia da formatura, ela se cingiria aos seus parágrafos iniciais: “Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacéia e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, ... Cumprir o que? Não se lembrava mais, nem fazia força para conseguir.
As únicas pessoas dali às quais, desde sempre, prestava vassalagem eram os membros da família Libânio: Maneca, Durval e Celso, os senhorios do feudo. Para as demais se lixava.
Apesar da antipatia da sua figura, estampada no rosto gordo e de traços duros, arranjou casamento com Cotinha, moça educada e prendada, filha adulterina do coronel Érico Sabino, dono de belos cacauais e de muita piaçava. Com o passar do tempo, descobriu-se, também, boa parideira, dando ao marido cinco filhos, dos quais o mais velho deles, de nome Expedito, quando rapazinho, revelou o desejo de seguir a profissão do pai. Fato que entornou de contentamento o coração do ranzinza e malquerido Policarpo, cujo desejo, amadurecido na alma, era ter um herdeiro para continuar cavoucando a mina de ouro que descobrira e explorava há bom tempo. A espera, para que tal acontecesse, durou seis sofridos anos. De saudades. Durante os quais, o velho médico se empenhara, sem mudar de rumo, em fazer crescer o seu patrimônio, sob a alegação de que formar um filho lhe custava os olhos da cara. Justificativa mentirosa, usada para encobrir seu mercantilismo, pois o jovem não dava despesas. Estudava em faculdade pública e morava na casa de parentes paternos, em Salvador.
Quando formado, Expedito, conhecendo bem o pai e desejoso de não atritar-se com ele, confrontando-o com suas ideias, diametralmente oposta às dele, quer sobre o modo de viver, quer sobre a medicina, resistiu em voltar à terra natal. Mas foi vencido pela insistência do astuto pai e lamuriosos pedidos de Cotinha, que via no filho, a última chance de modificar o marido. Coisa inimaginável de se alcançar. Mas, pensava ela, enquanto houvesse uma réstia de esperança, valia a pena perseguir, lutar para sair daquele estado de mortificação a que era submetida.
No início da convivência profissional, as muitas divergências surgidas entre pai e filho quase nublaram aquela tênue relação. Provocaram-nas a insistência de Policarpo em avocar a si o atendimento de todos os clientes, sequer dando ao filho a oportunidade de ser seu coadjuvante. No entanto, este, longe de ser mofino, de se curvar à autoridade paterna, cada vez mais foi se insinuando, chegando a ponto de desmontar aquela insustentável situação. Senhor de si, contraindicava remédios obsoletos prescritos pelo velho médico. Aconselhava a dieta alimentar a ser seguida pelos pacientes. Sugeria, quando a doença era grave, outro profissional, radicado em centro mais adiantado, para cuidar do caso. Obliterava certos procedimentos praticados por Policarpo no exercício da sua medicina, por pertencerem ao passado da ciência. Passava por cima dos protestos paternos, a princípio veementes com o sucesso do jovem, transformados em sussurros até minguarem de vez, graças a um fato que, se não fosse dramático, eu o chamaria de burlesco.
Certo dia, por exceção à regra, estando o consultório entregue a Expedito, nele penetrou uma senhora conhecida como Pupu das Rendas. Baixinha, de pela acaboclada, cabelos negros e lisos, olhos amortecidos pelo sofrimento, parruda como barril de azeite, vestida com roupas rendadas, com dificuldades no locomover-se. Dizendo-se cliente de Policarpo, exigia que ele a atendesse com brevidade. Alegava, para tanto, estar sentindo muitas dores. Diante do estado lastimoso em que se entrava aquela senhora, de aparência bonachona, porém risível, Expedito condoído, deu-lhe primazia no atendimento. E, logo descobriu a causa do seu sofrimento. Era proveniente de uma feia e grande ulceração na perna esquerda, que a paciente revelou portar há dez anos. Indignado com o que vira e ouvira, Expedito admoestou-a:
- A senhora precisava de tratamento. Seu descuido em não se ocupar desse mal, pode, ainda, causar-lhe grandes constrangimentos. No entanto, há tempo de curá-la. O sucesso virá, caso a senhora garanta-me seguir, corretamente, o tratamento que prescreverei. Só assim terei certeza de não precisar amputar esse membro.
Com o rosto estampando surpresa, olhos esbugalhados e branca que nem borra de vela, Pupu das Rendas, apelido ganho pela sua habilidade em manusear bilros para fazer rendas de almofada, balbuciou:
- Não foi por falta de tratamento que me encontro assim. Seu pai tem sido o meu médico durante todo esse tempo. Felizmente. Porque só ele sabe como aplacar as minhas lancinantes dores. Se não fosse ele já estaria sem perna.
Diante daquela revelação, Expedito silenciou. Sua estupefação, misturada com desapontamento, era manifesta. Por isso, tratou de abreviar aquele encontro. Preencheu o receituário recomendando o uso de água oxigenada, penicilina, analgésico, unguentos e, a seguir, despachou a senhora com palavras mansas e esperançosas.
- Espero vê-la curada dentro de um mês. Volte, assim que estiver boa.
Entrementes, aquela atitude de esperança não foi suficiente para acalmá-lo. Levou o dia inteiro agitado. Só pensava no porquê do descaso do pai para com aquela cliente. Como pôde ele permitir que ela sofresse durante tanto tempo, já que a cura da enfermidade era facílima? Até um primeiranista de medicina saberia promovê-la.
À noite, reunido com o pai retornado de uma de suas roças de cacau, onde observara os trabalhos de secagem de muitas arroubas de amêndoas em barcaças de sua propriedade, Expedito não se conteve e, agressivamente, cobrou-lhe uma explicação para o caso de Pupu das Rendas:
- Foi por desídia ou ignorância que ela ficou durante tanto tempo nesse estado? Ao que o cínico e maquiavélico clínico respondeu-lhe:
- Foi por sua causa. Aquela ferida, durante todos esses anos, proveu-me de recursos para formá-lo.
Não fora essa estarrecedora confissão mentirosa, Expedito jamais teria assumido a responsabilidade de assumir sozinho e tocar o destino do consultório.
Pouco tempo depois, Policarpo que não era Quaresma, nem símile da personagem criada por Lima Barreto, inesquecível e talentoso escritor, morreu como viveu. Sem jamais ter sido solidário, sem praticar benemerência, sem ter arrependimentos, sem ser bom, sem ter aprendido com o Padre Antônio Vieira que “o melhor e mais fácil para um homem se distinguir é o fazer-se bom”.
Coube, tempos depois, ao filho, resgatar a dívida que o pai acumulou com a sociedade local. Ele construiu e sustenta um hospital voltado para os pobres, ao qual batizou de Dispensário de Pupu das Rendas. E, jamais, explicou as razões sobre a escolha desse nome.

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