Conto de Luiz Carlos
Facó
Doutor
Policarpo, quando o conheci, era um velho médico de Gandu, município da Bahia.
Festejado pela classe social dominante da localidade e odiado pelo zé-povinho.
Mas, quem disse que ele se incomodava com aquela rejeição? Aos que lhe
lembravam tão grande desapreço, ele arguia:
- O povo não
interessa, não avaliza nada. Não possui patrimônio para abonar o que quer que
seja. Sinto-me bem em não ser por ele aceito. O povo é pobre até no espírito.
Não vale o prato em que come. Se é que tem prato.
Não obstante
tais afirmações, feitas com pretensões de manter a arraia-miúda apartada da sua
vida, ele não conseguia. Toda gente o fazia alvo de insolências. Certo dia,
quando passava pela praça da matriz, dirigindo-se ao consultório, um gaiato
gritou bem alto, numa atitude provocativa a sua pessoa:
- Por esta
praça só passam médicos e baitolas.
Ao que ele,
apesar de afogueado e chocado pela afronta, perguntou:
- Você é
médico, meu filho?
Diante da
resposta negativa, curta e grossa do ofensor, Policarpo, no mesmo tom do
provocador, explodiu, sentindo-se vitorioso:
- Então você
é baitola.
Não eram,
entretanto, aquelas alusões acrimoniosas contra a gente pobre da terra os
motivos da sua impopularidade. Ela vinha de longe. Da época em que,
recém-formado, com uma cuia na mão, estetoscópio pendurado ao pescoço e
vestindo roupa surrada, deitara âncoras no município de Ituberá, donde Gandu,
posteriormente, se emanciparia.
Durante
pares de anos como único médico da cidade, Policarpo deitou e rolou. Atendia
aos pacientes se podia ou queria, fazendo exceção para os ricaços, aos quais
dava socorro pronto e cuidadoso. Quando o cliente não lhe era do agrado ou
paupérrimo, mesmo em casos de emergência, como um parto, ele dizia:
- Chame dona
Zefa, ela é boa aparadeira. Ou então:
- Deixa
morrer. Um a mais, um a menos não fará falta.
Num total
desrespeito à dignidade humana, parecido com a insensibilidade e a falta de
humanitarismo, característica de muitos médicos atuais. Cobrava honorários
salgados sem fazer qual tipo de concessão até àqueles que não possuíam dez réis
de mel coado. A esses exigia, por seus serviços, capoeira de galinha, casal de
porcos, mesmo um burro ou um cavalo xucro, talvez os únicos bens substantivos
daqueles desvalidos. Sem pagar, não ousavam permanecer. E aí daquele que
reclamasse! Entrava na lista negra do médico, resultando em ficar desassistido,
a não ser pelo padre, quando estava na cidade, para lhe administrar a extrema
unção. Policarpo só tinha uma virtude. Seus diagnósticos eram precisos. Ao
afirmar, depois de examinar e auscultar o paciente, ser ele portador de
tuberculose, verminose sífilis, espinhela caída, coqueluche, era tranchã. Por
isso, suportavam-no. Uma anuência estribada na sabedoria popular: “é melhor
comer pouco, do que dormir sem cear”. Agindo assim, em curto tempo, o esculápio
se tornou rico. Suas roças de cacau se espalhavam por todo município. Mas,
“como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe”, um dia, vindo de
Esplanada, também município da Bahia, chega à cidade, precedido de boa fama e excelente
reputação, um outro médico, Antônio da Costa Pinto Dantas. Acontecimento
inesperado, que inflou de contentamento os moradores da localidade. À exceção
de Policarpo, cuja vaidade espicaçada, diante daquela festiva manifestação
popular de boas-vindas ao forasteiro, determinava-lhe não sair dos seus cuidados
para saudar o ilustre colega. Apesar de ser o “intruso” – como o apelidou desde
aquele instante – seu velho conhecido e contemporâneo de estudos na vetusta
Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. Malgrado o amuo do colega, Antônio
resolveu fixar-se na cidade e ali clinicar. E o fez com sucesso.
Criado no
seio de uma família aristocrática – era neto do Barão de Jeremoabo, político e
latifundiário – o recém-chegado transpirava paciência, educação, candura e
total desprendimento de bens materiais, características que o fizeram, logo, o
xodó de toda gente. Principalmente porque tais atributos estavam atrelados a
sua competência profissional. Resultado:
tudo na cidade passou a girar em torno dele. Era o Dr. Antônio prá cá, o Dr.
Antônio prá lá. Uma bajulação só.
Festas, batizados, casamentos, quaisquer atividades sociais só eram
consideradas distintas se contassem com a presença daquele novato profissional
na cidade. Até as mexeriqueiras da pequenina Ituberá desmanchavam-se em elogios
para com ele. Coisa rara. Porquanto elas sempre tinham um pigarro ao referir-se
a alguém. Nem o velho pároco da localidade, há anos do exercício de seu santo
ministério, escapava às maldades e às línguas ferinas daquelas mulheres.
Enquanto
isso, o Dr. Policarpo era lançado no rol do esquecimento. Dava dó ver o
consultório dele entregue às moscas. Ao passo que o do colega ficava apinhado
de gente. Tamanho era o isolamento em que se encontrava que resolveu partir.
Iria para o vizinho Gandu. A solução menos traumática que encontrara para não
se apartar dos bens adquiridos na região.
...
Como não
havia médico na localidade escolhida por Policarpo para homizia-se, os
munícipes o receberam com reservadas honras, jamais pompas. Porém o homem
continuava o mesmo. Mercenário, intolerante, autoritário, vaidoso do seu saber,
embora desde a colação de grau jamais houvesse lido uma página de qualquer
tratado referente ao seu mister. Cada vez mais esquecido do juramento feito a
Hipócrates. Porventura trouxesse à memória a liturgia daquela profissão de fé,
feita em voz alta no dia da formatura, ela se cingiria aos seus parágrafos
iniciais: “Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacéia e tomo
por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, ... Cumprir o que? Não se
lembrava mais, nem fazia força para conseguir.
As únicas
pessoas dali às quais, desde sempre, prestava vassalagem eram os membros da
família Libânio: Maneca, Durval e Celso, os senhorios do feudo. Para as demais
se lixava.
Apesar da
antipatia da sua figura, estampada no rosto gordo e de traços duros, arranjou
casamento com Cotinha, moça educada e prendada, filha adulterina do coronel
Érico Sabino, dono de belos cacauais e de muita piaçava. Com o passar do tempo,
descobriu-se, também, boa parideira, dando ao marido cinco filhos, dos quais o
mais velho deles, de nome Expedito, quando rapazinho, revelou o desejo de
seguir a profissão do pai. Fato que entornou de contentamento o coração do
ranzinza e malquerido Policarpo, cujo desejo, amadurecido na alma, era ter um
herdeiro para continuar cavoucando a mina de ouro que descobrira e explorava há
bom tempo. A espera, para que tal acontecesse, durou seis sofridos anos. De
saudades. Durante os quais, o velho médico se empenhara, sem mudar de rumo, em
fazer crescer o seu patrimônio, sob a alegação de que formar um filho lhe
custava os olhos da cara. Justificativa mentirosa, usada para encobrir seu
mercantilismo, pois o jovem não dava despesas. Estudava em faculdade pública e
morava na casa de parentes paternos, em Salvador.
Quando
formado, Expedito, conhecendo bem o pai e desejoso de não atritar-se com ele,
confrontando-o com suas ideias, diametralmente oposta às dele, quer sobre o
modo de viver, quer sobre a medicina, resistiu em voltar à terra natal. Mas foi
vencido pela insistência do astuto pai e lamuriosos pedidos de Cotinha, que via
no filho, a última chance de modificar o marido. Coisa inimaginável de se
alcançar. Mas, pensava ela, enquanto houvesse uma réstia de esperança, valia a
pena perseguir, lutar para sair daquele estado de mortificação a que era
submetida.
No início da
convivência profissional, as muitas divergências surgidas entre pai e filho
quase nublaram aquela tênue relação. Provocaram-nas a insistência de Policarpo
em avocar a si o atendimento de todos os clientes, sequer dando ao filho a
oportunidade de ser seu coadjuvante. No entanto, este, longe de ser mofino, de
se curvar à autoridade paterna, cada vez mais foi se insinuando, chegando a
ponto de desmontar aquela insustentável situação. Senhor de si, contraindicava
remédios obsoletos prescritos pelo velho médico. Aconselhava a dieta alimentar
a ser seguida pelos pacientes. Sugeria, quando a doença era grave, outro
profissional, radicado em centro mais adiantado, para cuidar do caso.
Obliterava certos procedimentos praticados por Policarpo no exercício da sua
medicina, por pertencerem ao passado da ciência. Passava por cima dos protestos
paternos, a princípio veementes com o sucesso do jovem, transformados em
sussurros até minguarem de vez, graças a um fato que, se não fosse dramático,
eu o chamaria de burlesco.
Certo dia,
por exceção à regra, estando o consultório entregue a Expedito, nele penetrou
uma senhora conhecida como Pupu das Rendas. Baixinha, de pela acaboclada,
cabelos negros e lisos, olhos amortecidos pelo sofrimento, parruda como barril
de azeite, vestida com roupas rendadas, com dificuldades no locomover-se.
Dizendo-se cliente de Policarpo, exigia que ele a atendesse com brevidade.
Alegava, para tanto, estar sentindo muitas dores. Diante do estado lastimoso em
que se entrava aquela senhora, de aparência bonachona, porém risível, Expedito
condoído, deu-lhe primazia no atendimento. E, logo descobriu a causa do seu
sofrimento. Era proveniente de uma feia e grande ulceração na perna esquerda,
que a paciente revelou portar há dez anos. Indignado com o que vira e ouvira,
Expedito admoestou-a:
- A senhora
precisava de tratamento. Seu descuido em não se ocupar desse mal, pode, ainda,
causar-lhe grandes constrangimentos. No entanto, há tempo de curá-la. O sucesso
virá, caso a senhora garanta-me seguir, corretamente, o tratamento que
prescreverei. Só assim terei certeza de não precisar amputar esse membro.
Com o rosto
estampando surpresa, olhos esbugalhados e branca que nem borra de vela, Pupu
das Rendas, apelido ganho pela sua habilidade em manusear bilros para fazer
rendas de almofada, balbuciou:
- Não foi
por falta de tratamento que me encontro assim. Seu pai tem sido o meu médico
durante todo esse tempo. Felizmente. Porque só ele sabe como aplacar as minhas
lancinantes dores. Se não fosse ele já estaria sem perna.
Diante
daquela revelação, Expedito silenciou. Sua estupefação, misturada com
desapontamento, era manifesta. Por isso, tratou de abreviar aquele encontro.
Preencheu o receituário recomendando o uso de água oxigenada, penicilina,
analgésico, unguentos e, a seguir, despachou a senhora com palavras mansas e
esperançosas.
- Espero
vê-la curada dentro de um mês. Volte, assim que estiver boa.
Entrementes,
aquela atitude de esperança não foi suficiente para acalmá-lo. Levou o dia
inteiro agitado. Só pensava no porquê do descaso do pai para com aquela
cliente. Como pôde ele permitir que ela sofresse durante tanto tempo, já que a
cura da enfermidade era facílima? Até um primeiranista de medicina saberia promovê-la.
À noite,
reunido com o pai retornado de uma de suas roças de cacau, onde observara os
trabalhos de secagem de muitas arroubas de amêndoas em barcaças de sua
propriedade, Expedito não se conteve e, agressivamente, cobrou-lhe uma
explicação para o caso de Pupu das Rendas:
- Foi por
desídia ou ignorância que ela ficou durante tanto tempo nesse estado? Ao que o
cínico e maquiavélico clínico respondeu-lhe:
- Foi por
sua causa. Aquela ferida, durante todos esses anos, proveu-me de recursos para
formá-lo.
Não fora
essa estarrecedora confissão mentirosa, Expedito jamais teria assumido a
responsabilidade de assumir sozinho e tocar o destino do consultório.
Pouco tempo
depois, Policarpo que não era Quaresma, nem símile da personagem criada por
Lima Barreto, inesquecível e talentoso escritor, morreu como viveu. Sem jamais
ter sido solidário, sem praticar benemerência, sem ter arrependimentos, sem ser
bom, sem ter aprendido com o Padre Antônio Vieira que “o melhor e mais fácil
para um homem se distinguir é o fazer-se bom”.
Coube,
tempos depois, ao filho, resgatar a dívida que o pai acumulou com a sociedade
local. Ele construiu e sustenta um hospital voltado para os pobres, ao qual
batizou de Dispensário de Pupu das Rendas. E, jamais, explicou as razões sobre
a escolha desse nome.
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