segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O HAMILTON E A MARINHA


Segundo relato de Herbert...

Conto inédito de Jayme Barbosa, que jamais o quis publicar.                          
      
  O bairro de Nazaré, em Salvador, ocupa a colina em torno do grotão cortado pela Castelo Branco. As vertentes externas desembocam nos vales da Baixa dos Sapateiros e da Fonte Nova, que levam suas águas ao dique do Tororó. Na linha de cumeada passa trecho da Joana Angélica, cujo final contorna o parque de Nazaré.

Na primeira metade do século passado, o bairro era habitado por gente da classe média, embora salpicado de umas poucas mansões burguesas, geralmente em torno do parque, e de muitas residências humildes espalhadas por vias e vielas. Acontecia, às vezes, o patrão e o empregado morarem na mesma rua; herança da colonização: juntar para defender-se.
           
Naquele tempo, as tortuosas, estreitas e enladeiradas ruas do bairro, calçadas a pé-de-moleque e interligadas por becos, eram ainda conhecidas pelos nomes tradicionais: Jenipapeiro, Jogo do Lourenço, Saúde, Agonia, Caquende, Alvo, Jaqueira, Cova da Onça, Jogo do Carneiro e diabo afora.
           
Nasci e cresci na Rua da Poeira. Na esquina destacava-se o palacete dos Calmons, já à época transformada em museu. A minha família, contudo, por ambos os lados, procedia das elites. Meu avô materno, do destacado tronco dos Drummonds, depois de presidir a Câmara dos Vereadores em Salvador, foi deputado federal em várias legislaturas. O avô paterno, Frank, abastado judeu alemão, aqui chegou em fins do século XIX. Casou e se instalou no corredor da Vitória, onde morava a nata da burguesia baiana. No começo do século passado, ele mandou os dois filhos, meu pai e meu tio, estudar em Londres, onde ficaram até o início da Primeira Grande Guerra, quando tiveram de voltar.
           
O desprogramado retorno e o desapegado estilo europeu de criar filhos esgarçaram rumos e posses familiares, levando, décadas depois, independente das origens, os Drummonds Frank, meus pais, à Poeira. Éramos cinco irmãos: nós, os três homens, viemos depois das duas irmãs. Hamilton, motivo deste relato, o mais velho.
           
Meu pai trabalhava na empresa americana de navegação Moore McComac Lines e acalentava esperança de ver um filho oficial da Marinha de Guerra Brasileira. Naquela época, a Marinha representava a elite das forças armadas nacionais. Um filho oficial daquela corporação faria crescer o prestígio familiar, o retorno sonhado à destacada condição antes vivida. E assim, filho na Marinha virou assunto recorrente à mesa, até que um dia: “filho meu que for pra Marinha terá toda regalia nesta casa, não só quando lá estiver como durante os estudos para os exames; terá mesada fixa e vantagens que só filho único tem”.

Hamilton, embora sem a mínima vocação militar, não foi insensível aos benefícios acenados. Resolveu-se: estava na idade. Foi ao 20 Distrito Naval, pegou o programa para os exames ao Colégio Naval do Rio de Janeiro e, com encenação pré-ensaiada, durante o jantar, declarou: decidi ir para a Marinha!

Foi um alvoroço. Meu pai emocionou-se quase às lágrimas. Seu filho mais velho atendera ao apelo para colocar o nome da família Frank nos anais das Forças Armadas. Ligou-se para parentes e amigos, e a notícia se espalhou. Tenho certeza que meus pais não dormiram naquela noite. Faziam planos e contas para conduzir Hamilton ao oficialato da Marinha Brasileira.

Logo, os sacrifícios começaram. No dia seguinte, Hamilton foi comprar roupas novas no crediário Ângelo Rossi, dois sapatos Tank, galupin – como era chamado o tênis da época – novo. Alpercata de verdureiro da rua do Gravatá, nunca mais. Um futuro oficial da Marinha tem de andar sempre bem vestido. Na semana seguinte, comprou-se a sonhada bicicleta e fixou-se a mesada. Contudo, estudo que é bom: nada.

Uma noite, com certa circunspecção, Hamilton expôs ao velho: são três provas: Português, História e Geografia, Matemática. Nas duas primeiras sempre fui aluno nota 10; agora, a tal da Matemática não é o meu forte. Preciso de professor particular, sentenciou.

Que jeito? Mais um sacrifício. Contratou-se a professora Zulmira, que ensinava à sociedade baiana da Graça, Barra e Canela. Durante as aulas exigia-se silêncio sepulcral em casa, e eram servidas merendas de causar inveja aos outros. Afinal, o futuro oficial estava aprimorando-se nas ciências matemáticas.

O dia do exame ia se aproximado e os privilégios aumentando. Dormia agora em quarto separado, pois não queria que a sua concentração para as provas fosse perturbada.

Por fim, começaram os exames. No primeiro dia, a família toda foi de bonde levá-lo à Escola de Aprendiz de Marinheiro, no Distrito Naval, para a prova de Português. E lá ficou-se até Hamilton sair com ares vitoriosos: prova fácil; vou tirar 10. Vibração na família.

No dia seguinte, outra prova e a mesma movimentação familiar. E veio de lá o Hamilton: nota 10 com louvor. Não falei que História e Geografia eram matérias que eu mais sabia?

Chegou o dia da tão temida Matemática. Não faltou promessa que minha mãe não fizesse, inclusive a tradicional ida a pé ao Bonfim. Na casa não sobrou espaço para velas acesas. Naquela altura, parentes e amigos também se irmanaram às rezas e promessas. Todos juntos para botar Hamilton na Marinha.

E lá fomos de novo. A tensão dos meus pais era palpável, embora o “oficial”, como já o chamávamos, fosse só tranquilidade. Desta vez foi grande a demora. Minha mãe e tia Musa ficaram rezando terços na Igreja da Conceição da Praia, ali defronte. Por volta das doze e meia, aparece Hamilton. “Trinta perguntas; acertei 26, pois conferi com o capitão que tomava conta da sala, e por isso demorei. Das quatro restantes duas acertei mais da metade e as outras encaminhei as respostas. O capitão disse que vou tirar, no mínimo, nove.”

Meu pai fez as contas: 10 em Português, 10 em História e Geografia e 9 em Matemática, seu filho já era oficial da Marinha. A festa começou ali mesmo nas escadarias da Igreja da Conceição. Abraços, beijos e vivas. É verdade que Haroldo e eu, conhecendo nosso irmão, olhávamos com certa desconfiança aquele milagre.

Voltamos pra casa de carro de praça – nome que se dava ao taxi da época –, já que um futuro oficial da Maria não podia andar de bonde. Na Rua da Poeira outra festa, com a casa agora cheia dos vizinhos avisados do sucesso de Hamilton. Todos a parabenizar meu irmão, enquanto ele afirmava que ia tirar primeiro lugar em todo o Brasil, e ia carregar o estandarte do Colégio Naval, logo no primeiro ano.

No dia seguinte, meu pai foi ao Distrito Naval solicitar a relação do enxoval para alunos aspirantes ao Colégio Naval. De posse da relação, minha mãe convocou primas, cunhadas e irmãs para ajudarem a preparar o enxoval do futuro oficial da Marinha, que constava de camiseta, camisas, calças, calções, cuecas, meias e outros itens, todos com o HDF bordado. Em pouco tempo, o enxoval de 84 peças estava confeccionado, passado, engomado e embalado em mala nova, aguardando a partida para o Rio de Janeiro.

E nada de resultado dos exames, todavia. Corria o ano de 1951, Getúlio Vargas elegera-se Presidente da República no ano anterior.

Uma noite, Hamilton chega a casa com ar preocupado. Disse ter estado no Distrito conversando com o capitão que acompanhou suas provas e lhe reafirmara seu sucesso com as melhores notas do Brasil. Porém, ele tinha esclarecido a Hamilton que para entrar na Marinha só com pistolão ou sendo filho de almirante.

Meu pai bateu na mesa e disse, aborrecido, não ser almirante nem possuir nenhum pistolão, mas era um getulista ferrenho e ia escrever uma carta ao Presidente Getúlio Vargas pedindo a interferência dele para que não houvesse injustiça com seu filho. E assim o fez:


Senhor Presidente,

            Saudações Trabalhistas

Sempre fui intransigente aliado do Partido Trabalhista Brasileiro, apoiando Vossa Excelência a qualquer hora, em todos os momentos. No
instante em que uma tragédia se avizinha da minha família não tenho a
quem recorrer senão ao iluminado Presidente Getúlio Vargas, personagem nacional a quem muito admiro.

Peço desculpas por incomodar Vossa Excelência, preocupado em resolver os problemas do Brasil e de seus trabalhadores, porém, a efetivação de uma injustiça ameaça minha família.

Meu filho Hamilton prestou exames aqui em Salvador para o Colégio Naval, saindo-se muito bem em todas as provas, segundo comprovaram os examinadores, que após cada prova conferiram os resultados dos quesitos respondidos pelo meu filho, afirmando inclusive que o mesmo passaria em um dos primeiros lugares.

Para surpresa minha soube por fontes fidedignas que na Marinha só passava quem tivesse pistolão ou fosse filho de almirante, procedimento que tenho certeza não conta com a concordância do eminente Presidente.

Daí o motivo de, em nome da JUSTIÇA, apelar para a Vossa Excelência interferir no sentido de que meu filho não venha a ser prejudicado no seu grande ideal de vir a ser um futuro oficial da Marinha do Brasil.

Salvador, 16 de novembro de 1951

Clemente

Os dias foram passando e nada do resultado dos exames, que na ocasião era comunicado por carta aos habilitados. E Hamilton dizendo sempre que na Marinha só passava filho de almirante. Meu pai afirmando que confiava em Getúlio, e que este não deixaria um filho de trabalhador ser prejudicado.

Um dia, no meio da manhã, o carteiro trouxe uma carta com a chancela da Presidência da República, que causou imediato alvoroço. Como estava endereçada ao meu pai, mamãe telefonou imediatamente para ele, na McComac, cujos escritórios ficavam na Cidade Baixa. Meu pai largou tudo e veio a pé. Galgou a infeliz ladeira do Taboão, percorreu trecho da Baixa dos Sapateiros e subiu a ladeira da Poeira num fôlego só. Chegou em casa ofegante, mas feliz com a certeza que o Presidente Getúlio Vargas tinha feito justiça, e Hamilton, finalmente, entrava na Marinha.

Com toda a família debruçada nos seus ombros, vizinhos e parentes próximos ao redor, meu pai abriu e leu a carta:

            Senhor
            Clemente
            Rua Pires de Carvalho, 86 – Nazaré
            Salvador – Bahia

            Prezado Correligionário:

Como era minha obrigação, procurei inteirar-me do assunto referente aos exames admissionais do seu filho Hamilton para o Colégio Naval da Marinha do Brasil.

Em despacho com o Senhor Ministro da Marinha determinei o acompanhamento pessoal das correções das provas para o Colégio Naval, no sentido de que não houvesse nenhuma injustiça com o seu filho ou qualquer filho de trabalhador que estivesse prestando os referidos exames.

Como podem comprovar as cópias dos documentos anexos, o Senhor Ministro da Marinha exigiu do Diretor do Colégio Naval esclarecimentos a respeito das provas de seleção. Conforme esclarece o Senhor Diretor, pelo Regimento Interno do Colégio Naval, o candidato será aprovado nos exames admissionais caso tenha nota mínima de 6 (seis) em cada prova e média de 7 (sete), considerando todas as provas.

Infelizmente o seu filho Hamilton obteve nas três provas média de 1,2 (um inteiro e dois décimos), sendo 2 (dois) em Português, nota 01 (um) em História e Geografia e nota 0,6 (seis décimos) em Matemática.

Saudações Trabalhistas

Getúlio Vargas
Presidente

Foi a primeira vez que vi meu pai chorar.

Já no início da leitura da carta procurei Hamilton e não o encontrei. Foi
morar com as Bicotas, primas de minha mãe, no Caquende, onde passou quase um mês. Só voltou depois de insistentes apelos dos parentes e amigos ao meu pai para que não fosse literalmente arrancado o couro do ex-futuro oficial da Marinha de Guerra do Brasil.

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