Política: Deu na CARTACAPITAL
Lições de um líder que, pressionado,
decidiu montar um ministério de direita
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Todo Príncipe tem inimigos, porque, em regra, governar é
tomar partido, por A ou por B, por isso ou por aquilo e atrás de tudo há,
sempre, um interesse. Governar, é, pois, administrar interesses. Os inimigos
são inevitavelmente nomeados quando o Príncipe escolhe com quem e para quem
governar, ou, escolhendo não escolher, caminha indeciso entre os extremos da
sociedade de classes e os interesses conflitados dos diversos grupos econômicos
e seus tentáculos políticos.
Getúlio fez-se defensor dos pobres e assim despertou a
desconfiança da classe média e o mau-humor dos ricos; Miguel Arraes, governador
de Pernambuco, atraiu o desagrado dos usineiros e donos da terra, porque
assumiu como seus os interesses dos camponeses; pêndulo político, Jânio Quadros
decidiu-se pelos empresários e adotou uma política externa independente, com o
que ganhou a desconfiança dos
trabalhadores e perdeu o apoio dos conservadores.
Casos há em que o prestígio do governante se desgasta na
divisão intercalasses, pois não é raro o conflito revelar-se entre os setores
produtivos e o sistema financeiro. Outras vezes, ao tentar atender igualmente
aos interesses de gregos e de troianos (digamos assim: dos operários, da classe
média e do grande capital), o Príncipe, pouco cioso na defesa da coisa pública,
termina perdendo a confiança de todos e por todos é desamado. Collor, sem clara
base social ou econômica de apoio, sem partidos, terminou seu mandato como
sabemos.
Nesses casos, quando mais carecia de apoio, o Príncipe não
encontrou seus defensores naturais.
O inimigo do príncipe é sempre um grupo de interesse,
organizado ou não em torno de um partido. Pode ser uma das várias frações do
grande capital, ou os grandes proprietários. O inimigo pode estar dentro ou
fora dos muros da cidade. Pode ser um adversário externo, o que, em regra, leva
à unidade dos súditos em torno do seu líder, adiando disputas domésticas.
Assim, Vargas, que acalentara a expectativa de apoiar o Eixo, unificaria a
nação em 1942 com a declaração de guerra à Alemanha, e, mais recentemente, a
última ditadura argentina prorrogou sua própria agonia com o massacre de seus
praças nas Malvinas. Terminadas as guerras, Vargas é deposto e a Argentina,
redemocratizada.
Muitas vezes, esse inimigo – interno ou externo – precisa
ser inventado para poder garantir a coesão doméstica, quando o soberano percebe
a existência de crise em suas bases. Como justificativa do golpe de Estado que
implantou a ditadura do ‘Estado Novo’, os militares brasileiros inventaram em
1937 a iminência de um levante comunista, brandindo estudo elaborado pelo
próprio serviço secreto do Exército (refiro-me ao ‘Plano Cohen’ redigido pelo
naquela altura capitão Mourão, por ordem de seu comandante, gal. Goes
Monteiro). Em 1954 os mesmos adversários, agora para derrubar o presidente
constitucional, alegaram a existência de um ‘mar de lama’ inundando os porões
do Palácio do Catete, com o que a oposição levantara a classe-média contra
Vargas.
Juscelino Kubitschek reencontrou-se com as bases populares
que o haviam elegido em 1955 quando seu ministro da Fazenda, conservador, se
indispôs com o FMI. Fidel Castro, porém, não precisou inventar a invasão da
Baía dos Porcos e o bloqueio econômico-político dos EUA para unificar o povo
cubano. Praticamente derrotado, o Bush filho conquistou uma reeleição
consagradora beneficiando-se do ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de
2001.
O pior adversário, no entanto, é sempre o que está dentro de
casa, faz parte do governo, frequenta os palácios ou integra as fileiras do
exército. Dezessete anos passados da instalação do ‘Estado novo’, Vargas
lamentaria o concurso dos inimigos íntimos para sua tragédia pessoal, ao
presidir, na madrugada de 23 para 24 de agosto a última reunião de seu
ministério. Sun Tzu, muitos séculos antes de Mazarini, Pombal e Maquiavel,
ensinou que, sem harmonia no Estado, não adianta ter exército; sem harmonia no
exército não pode haver formação de batalha. Harmonia não é apenas a paz
aparente da ordem interna, mas é também a disciplinada eleição do objetivo
comum, aquele que torna secundários todos os demais projetos. As tropas,
formando um corpo unido, impedem que os bravos avancem sozinhos (e sejam
aniquilados) e que os covardes abandonem a luta, como fizeram os soldados de Ricardo
III, deixando-o à mercê de sua má sorte. O Rei Lear foi condenado à tragédia
quando, embriagado pelos elogios falsos das filhas cínicas, dividiu o reino da
Bretanha.
O que é, porém, harmonia interna? Ora não se trata de
conceito de aplicação universal e pacificada.
Getúlio Vargas afagou as classes empresariais e com elas
também terçou armas; afagou os trabalhadores e por eles foi amado, afagou
amigos e inimigos, foi amado e odiado. Governou sem grandes pesadelos de 1930 a
1945. Mas quando a fortuna se voltou contra si, não lhe foi possível enfrentar
a adversidade, pois emergira a dissensão em sua retaguarda: traído dentro do
Palácio do Catete (presidência conquistada legitimamente em processo eleitoral
democrático), sem controle sobre ações criminosas supostamente praticadas em
seu nome e no seu entorno, sob o fogo de uma imprensa vituperina e de uma
oposição reacionária clamando junto aos quartéis indisciplinados pelo golpe de
Estado, descobriu que não contava com seus ministros: estavam muitos deles entre
os conspiradores, negociando sua renúncia. Inclusive o vice-presidente Café
Filho. Tardiamente, Vargas compreendeu o significado do isolamento a que fora
condenado: sua solidão político-afetiva era uma metáfora de seu distanciamento
da sociedade.
Os militares, aliados umas vezes e outras muitas conduzidos
pelos líderes da oposição biliar e pela campanha dos grandes meios de
comunicação, ao invés de defenderem o mandato de seu comandante, imperativo
constitucional, conspiravam contra o Presidente, cujo partido não foi capaz de
protegê-lo contra os ataques inimigos, sem limites na injúria, na calúnia e na
difamação. Quedou-se acuado como o tatu-bola, enroscado em si mesmo. Ator,
sujeito da História desde pelo menos 1930, líder dos trabalhadores, Vargas escolheu
entregar-se ao império das circunstâncias. De nada lhe valera a base
trabalhista – construída meticulosamente durante o período ditatorial – que não
acorreu em defesa de seu mandato. Já havendo perdido o apoio da classe-média,
desde sempre incomodada com seus namoros com os ‘marmiteiros’, via agora as
massas populares – seu último esteio – também influenciadas pela onda moralista
que percorria todos os escaninhos da sociedade, assustada pela campanha de
imprensa com ecos no Congresso. Seus fiéis adversários ideológicos de direita
encontraram-se nas ruas com o oportunismo e a incompreensão histórica da
esquerda comunista, que também decidira fazer-lhe oposição.
Após campanha eleitoral marcada pelo nacionalismo e um sem
número de teses comuns à esquerda de então – defesa da Petrobras e do monopólio
estatal do petróleo, controle das remessas de lucros ao exterior, aumento real
do salário mínimo, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas etc.
–, Vargas assumira a Presidência (1951) abraçando projetos progressistas e
montara, para executá-los, um ministério de direita.
Seria, porém, traído pelo varguismo e a História, agora
ingrata, não lhe deu tempo para a autocrítica.
O anúncio do suicídio inesperado (embora reiteradamente
anunciado em sua biografia), levantou como um sopro mágico as massas
adormecidas que, como formigueiro atacado, ocuparam as ruas, em desespero,
anárquicas, sem rumo, sem alvo, sem perspectivas. Sem azimute político, sem
liderança, avançaram ao mesmo tempo sobre os jornais da imprensa golpista e da
esquerda comunista, identificada com o golpismo. O despertar da consciência
coletiva chegara muito tarde, e agora a mobilização era só uma catarse coletiva
inaproveitada, que logo levaria de volta as massas ensandecidas para o sossego
medíocre.
Outro príncipe, na História do mesmo país, ele também amado
pelos trabalhadores e pelos pobres, viu-se igualmente sob o foco de terríveis
ataques orquestrados entre a oposição partidária e os meios de comunicação de
massa, agora poderosíssimos. Não lhe acorreu o socorro dos partidos de sua base
de apoio, e mesmo o partido que fundara mostrava-se abatido em face das
acusações que pesavam sobre seus membros. Ao contrário de muitos de seus
antecessores, porém, o Príncipe lembrou-se do Marquês de Pombal e decidiu
romper com os áulicos, e trocou a solidão do poder pelo contato com as massas.
Simplesmente optou pela Política, decidindo exercê-la na plenitude possível.
Foi ouvido pelo país e emergiu vitorioso, nas eleições que se seguiram.
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