segunda-feira, 23 de março de 2015

UM DADO DOMINGO

 Não debite à sua memória os esquecimentos que você tem. Tampouco se recrimine pelas falhas de esquecimento.


Crônica de Luiz Carlos Facó

Este domingo escolheu roupa nova para vestir. Engalanado, desfila garboso, sem hesitações, numa passarela iluminada pelo sol. Dá-nos mostras de sua leveza, graciosidade e incomum deslumbre. Num espetáculo que transcende a imaginação dos mais talentoso e sensível artista. Por isso mesmo, incapaz de concebê-lo ou retratá-lo. Sinto-me feliz por presenciar este raro espetáculo, de pássaros adejando e pipilando confronte a minha janela, criando cirandas para coroá-lo único. Árvores balouçando suas frondes como se o reverenciassem. Nas encostas, que daqui diviso, as flores silvestres, homenageando-o, vicejam em cores vibrantes. Ouro, prata, azul, vermelho, púrpura. 

Tantas, quantas as que enfeitam a vida. Um arco-íris. A terra umedecida, úbere da criação, em ais de aprazimento, deixa escapar seu gostoso e inconfundível cheirinho característico. Um festival primaveril que se antecipa, prematuramente, à partida do inverno que agoniza. É criança chegando. Prenúncio de tempos felizes, que tonifica jovens e aquece idosos. Profetizam haver lugar, no mundo, para a parcimônia, o desarmamento dos espíritos, a compreensão, a paz. Para a consubstanciação da crença em Deus nos nossos corações. A comunhão das religiões. Abrigo seguro para guardar valores éticos e morais tão relegados nesse último decênio. Ser tempo de arrefecimento de disputas e ódios. Ser período de acasalamento. Ser o momento do amor.

É, neste dia, retrato por inteiro da magnificência do Criador, que faço questão de expressar-me, aproveitando o meu espírito movendo-se do ócio execrável à alegria produtiva, com disposição para cavalgar o alazão das ideias. Oportunidade única, impossível de se descartar sob pena de ser tomado pelo remorso.

Sou recalcitrante em esquecer. Muita vez, esqueço um endereço, um número de telefone, um nome, até de um lugar por onde passei. Recrimino-me e prometo a mim mesmo, fervorosamente, não permitir recaídas. Tudo debalde. Na primeira oportunidade, desprezo ou faço pouco caso dessas ausências e, por via de consequência, lá se vão para o baú envelhecido e furado da minha memória alguns fatos que mereceria lembrar ou festejar.  E, quando me dou conta de tais incidentes ou sucessões de omissões, debito-as à velhice que me acolhe, o que para mim é decepcionante.

Outro dia, ensimesmado por ter esquecido o meu aniversário, pus-me a buscar e procurar explicações para esse defeito que eu não conseguia corrigir. Recorri, para tanto, ao meu computador pessoal, o cérebro, e descobri que tudo importante que vira, ouvira, aprendera, lera, estavam incólumes, em arquivos, no meu aparelho pensante. Até aquele dado domingo festivo descrito no início desta crônica. Mais, que ele só não registrara o que não tinha tido importância para mim.
A propósito, nessa busca empreendida, lembrei-me até de uma frase do Prof. Nelson de Souza Sampaio, no momento em que eu cursava o primeiro ano de faculdade, quando ensinava Direito Constitucional: “justitia est constant et perpetua voluntas sunt uniquique tribuere”. Fato ocorrido há sessenta anos.

Portanto, amigos leitores, se algo desse tipo acontecer hoje ou vier a se apresentar a você amanhã não se preocupe, não acuse a sua memória de relapsa ou cansada. Tal ocorreu simplesmente porque você não achou importante que algum episódio, circunstância, evento, fosse registrado por ela em vista de ter sido irrelevante ou dispensável ao seu interesse.

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