Publicado em literatura por Alexandre Coslei,
em obviusmagazine
Van Gogh, talvez mais do que qualquer outro artista, nos mostra como a
loucura pode ser uma definição que se confunde com o reflexo da extrema
lucidez.
Inúmeras vezes, nas
cartas ao irmão Theo, Vincent Van Gogh discorre sobre literatura com a argúcia
de um crítico e a paixão de um leitor voraz. A literatura é um tema tão
recorrente para Van Gogh que nem nos surpreendemos quando ele confessa que
poderia tê-la escolhido como meio de expressão, caso a pintura não houvesse se
afirmado em sua vida.
A bipolaridade
emocional que o assolava afastou os amigos, incendiou o pavio das severas
crises de depressão que sofreu, mas raramente o impediu que se dedicasse com
afinco à criação dos seus quadros e à leitura intensa. Duas fortalezas
resistiram até o fim na alma de Van Gogh, a pintura e os livros.
Quem não pensa em Van
Gogh também como um escritor certamente não leu suas cartas, um valioso acervo
literário e histórico. E Vincent não se restringia a escrever, ele pensava
sobre literatura. A rica correspondência com Emile Bernard, um pintor que se
arriscava como poeta, demonstra sua lúcida habilidade em avaliar textos.
Não foi à toa que o
perfil mais visceral de Van Gogh foi desenhado por um escritor francês que nos
deixou o manifesto intitulado “Van Gogh, o suicida da sociedade” ,
de Antonin Artaud:
“Não, Van Gogh não
era louco, mas suas pinturas eram bombas atômicas, cujo ângulo de visão, ao
lado de todas as outras pinturas polêmicas da época, foi capaz de abalar
gravemente o conformismo larvar da burguesia” ...
Continua sobre Van
Gogh:
“E o que é um
autêntico alienado? É um homem que preferiu torna-se louco, no sentido em que
isso é socialmente entendido, a conspurcar uma certa ideia superior da honra
humana. Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos
quais ela quis se livrar ou se proteger por terem se recusado a se tornar
cúmplices dela em algumas grandes safadezas. Porque o alienado é também o homem
que a sociedade se negou a ouvir e quis impedi-lo de dizer insuportáveis
verdades”.
“Há em todo demente
um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma ideia assustadora e que só no
delírio consegue encontrar uma saída para as coerções que a vida lhe preparou”.
A pintura de Van Gogh
está ligada, numa comunhão indissolúvel, à obra escrita que ele nos legou
através das suas cartas. Uma complementa a outra. Daí sua fama e sua história
precederem e predominarem sobre a arte que ele produziu.
Protagonista de
amores obsessivos, do famoso caso em que decepa a própria orelha para entregar
a uma prostituta, dos acessos de fúria, dos mergulhos profundos na melancolia.
Tudo em torno de Van Gogh o rotulava como louco, mas as suas maiores
predileções literárias espelhavam um homem romântico e voltado para a razão.
Era um pintor que valorizava a palavra, conforme revela ao amigo Emile Bernard
em uma de suas cartas:
“Há tanta gente, especialmente
entre nossos camaradas, que imagina que as palavras não significam nada – pelo
contrário, a verdade é que dizer uma coisa bem é tão interessante e difícil
quanto pintá-la. Há a arte das linhas e das cores, mas também existe a arte das
palavras, e esta permanecerá”.
Destacava a
importância que via na criatividade:
“Um homem pode ter
uma soberba orquestração de cores e não ter ideias”.
A admiração
incondicional de Van Gogh por Émile Zola demonstra o fascínio que o
racionalismo científico lhe causava. Zola é citado incontáveis vezes em suas
correspondências.
“Chegando à França
como um estrangeiro, eu, talvez melhor do que os franceses nascidos e criados
aqui, senti o que havia em Delacroix e em Zola; e a minha admiração sincera e
total por eles não conhece limites”.
“Em sua qualidade de
pintores de uma sociedade, de uma natureza tomada em sua plenitude, assim como
Zola e Balzac, produzem raras emoções artísticas naqueles que os amam,
justamente porque eles abrangem a totalidade da época que descrevem”.
Vincent exprimia
muitos elogios aos autores franceses, principalmente os do século 19, com
exceção de Baudelaire, por quem nutria certa implicância por ter criticado
pintores que ele idolatrava.
“Vamos tomar
Baudelaire por aquilo que ele realmente é: um poeta moderno, do mesmo modo que
Musset, mas que ele deixe de se meter a falar de pintura”.
Em uma das cartas
comenta que estudou um dos livros de Víctor Hugo: “O último dia de um
condenado”, um manifesto contra a pena de morte que suscitou enorme repercussão
ao ser publicado. Há trechos em ele faz referências a Guy de Maupassant. Lia
historiadores, como Jules Michelet, para conhecer a história da Revolução
Francesa. Mas Van Gogh não deixava de praticar algum ecletismo literário quando
fala das suas leituras de Shakespeare, Charles Dickens, Beecher Stowe, Ésquilo,
da bíblia e dos evangelhos.
“Meu Deus, como é
belo Shakespeare. Quem é misterioso como ele? Suas palavras e sua maneira de
fazer equivalem a um pincel fremente de febre e emoção. Mas é preciso aprender
a ler, como é preciso aprender a ver e aprender a viver” (Van Gogh em Cartas a
Theo)
É de Van Gogh uma das
mais belas sentenças que podemos encontrar sobre a nossa humanidade em qualquer
literatura.
“Eu também gostaria
de saber aproximadamente o que é que eu sou. Talvez eu seja a larva de mim
mesmo". (Carta a Emile Bernard)
Ao terminarmos de ler
as cartas de Vincent, nos sucede um sonho encharcado de frenética juventude,
mas um súbito cansaço nos envelhece. Colocamos de lado aquele velho chapéu de
palha, rodeado de velas acesas, que usamos para romper a noite em que pintamos
luzes febris na tela branca. Velas que se apagaram com o silêncio em luto dos
corvos sobre os campos de trigo.
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