Cinema
Aos 74 anos, Al Pacino reflete sobre sua vida e sua obra com a estreia
de ‘O Último Ato’
GREGORIO BELINCHÓN Madri 19 ABR 2015
EL PAÍS - JORNAL GLOBAL
Al Pacino, retratado em 30 de agosto no último festival de cinema de
Veneza. / RUNE HELLESTAD (CORBIS)
Quando o
punhado de jornalistas entra na suíte, Al Pacino já está ali, parafraseando o
dinossauro de Monterroso. Primeiro se ouve sua voz, grave, gutural, que gorjeia
melodiosa; depois se veem opacos óculos de sol. Cabelo penteado, camisa preta
aberta quase até o umbigo, pelos grisalhos que saltam do peito aos borbotões,
munhequeira, coca-cola e água. Ou seja, aspecto de rolling stone, irmão carnal de Jagger, Wood e
Richards. O Pacino homem (East Harlem, Nova York, 1940) é igual ao Pacino
lenda. Os cinéfilos babam: o mito passa no teste.
Festival de
Veneza. Final de agosto. A noite foi longa, como testemunham as fotos na
Internet. O ator que explicou em duas pinceladas o capitalismo selvagem (“Meu
pai lhe fez uma oferta que não pôde recusar”) está feliz. Apresentou dois
filmes. Um deles foi recebido com críticas divididas: em Manglehorn encarna
um chaveiro atolado em sua existência solitária; a presença – enorme – de
Pacino torna impossível alguém acreditar no personagem. Mas no outro... no
outro encarna um ator, lenda do teatro, fanático por Shakespeare, gigante do
cinema, que perdeu seu talento para a interpretação e, em depressão, beira o
suicídio. Até que se envolve uma jovem lésbica (interpretada por Greta Gerwig)
e começa a cavalgar uma surrealista montanha-russa da vida. The
Humbling (O Último Ato) foi filmado em 20 dias na casa do
diretor, outro grande veterano, Barry Levinson, e se baseia, embora muito
expurgado pelo roteirista e ator Buck Henry, no romance A Humilhação,
de Philip Roth. “Tanto Barry como eu nos interessamos pelos direitos do livro e
acabamos cruzando nossos caminhos. Filmamos ao estilo guerrilha: em 20 dias, em
sua casa, em umas jornadas no outono e outras no inverno. Sinceramente, é que
queríamos fazer o filme”.
Entre os projetos de Al Pacino, está trabalhar pela primeira vez com
Martin Scorsese em The Irishman, “com Joe Pesci e Bobby [Robert de
Niro], e está de pé apesar dos atrasos. Mas que grupo de italianos!”. Conheceu
Scorsese no início de sua carreira: “Eu existia antes de O Poderoso
Chefão [ironiza], mas nunca surgiu a possibilidade de trabalharmos
juntos”.
Duas filmagens que
já realizou são Danny Collins, do estreante Dan Fogelman, um drama
baseado na história real do cantor folk Steve Tilston; e Beyond deceit,
de Shintaro Shimosawa, um thriller que está filmando com Anthony Hopkins.
Pacino se
apresenta aos jornalistas: “Só entendo as conversas falando com os olhos, como
as pessoas normais”. Entram ondas de luz entre as persianas pseudo-árabes dos
imensos janelões do hotel veneziano. Já dissemos que a noite foi longa. O ator
tira os óculos de sol, dobra-os e coloca delicadamente em cima da mesa. Pisca
várias vezes, torce o nariz e se esconde de novo atrás dos óculos entre
risadas. “Hoje não é o dia”. De repente, começa a refletir sobre as relações
entre pais e filhos, sua carreira, o teatro, sua aura de lenda, seus filhos. A
conversa, prevista para 20 minutos, alonga-se até uma hora. Por duas vezes uma
representante da assessoria de imprensa internacional do filme tenta
interrompê-lo. Na primeira, o nova-iorquino, ator sem o qual não se entenderia
o cinema dos anos setenta, responde: “Estou aquecendo”. Na segunda, só a
fulmina com o olhar. Atrás dele, outro idoso, divertido com a confusão que o
ator armou com esse atraso no horário do festival, come fruta e queijo. “É um
bom amigo. Está comigo... Bem, cada vez que eu disser algo e ele sorrir,
saberão que menti”. O idoso vai embora. “Estão vendo?”.
“Que todos
sejamos filhos, e muitos pais, não significa que sejamos especialistas nas
relações paterno-filiais”, diz o ator, questionado por essa faceta de seu
personagem no Manglehorn. “Cada um faz o que pode, e há um tópico que
faz casais desfeitos continuarem unidos pelo bem de seus filhos, pelo espírito familiar.
Sei que é complicado para um filho crescer sem a atenção de seus pais [Pacino
fez um desvio em sua resposta: fala de si mesmo, de Alfredo James, filho de
Salvatore Pacino e Rose Gerardi, que se divorciaram quando seu filho era quase
um bebê]. Eu mesmo não fui um bom pai para Julia [sua filha mais velha, que
teve aos 49 anos], e as coisas melhoraram com os gêmeos [Anton e Olivia, que
nasceram quando tinha 61]. Sabe o que é um prazer? Ver como vão passando os
anos nos três. Sem dúvida os pequenos afetaram diretamente a minha vontade de
trabalhar, porque na verdade prefiro passar o tempo com eles. Mudei-me por 11
anos para Los Angeles porque a mãe deles [a atriz Beverly D'Angelo] vive ali.
Cresceram com minha presença, algo que não dei a Julia. Eu quase não conheci
meu pai, quem criou a dinâmica familiar para mim foram minha mãe e meus avós...
Tenho lembranças maravilhosas, embora tenha sido difícil me aceitar, não fui
bom aluno – basta ver minhas notas. Agora espero que meus dois pequenos estejam
desfrutando das duas casas, porque em cada uma brincam de coisas que na outra
não podem [ri]. Aprendi também a falar muito com a mãe sobre eles, para ver
como estão progredindo...”.
Quando Pacino ficou famoso, não lhe restava família
que ele considerasse próxima, exceto sua avó. “E tudo para ela parecia uma
loucura. Por sorte a meu lado estavam meu mentor e professor no Actors Studio
Charlie Laughton, e meu amigo Martin Bregman, que produziu cinco de meus
melhores filmes, grandes títulos. Martin é muito mais preparado que eu e disso
me beneficiei [Lá atrás se ouve uma risada. Bregman, manager das estrelas e
produtor de Um Dia de Cão, Serpico, Scarface, Vítimas
de uma Paixão e O Pagamento Final, é o homem que come
queijo e fruta]”.
Quando sua
carreira começou a decolar, em algum momento disse que queria ter uma grande
família: “Sim, fantasiava com isso. Como me enganei”. E chegou a suspeitar até
onde ia chegar? “Se quando eu era meio baderneiro tivesse intuído... Acho que
foi melhor para minha própria segurança que nem imaginasse. Só queria, e quero,
ser ator.”
Al Pacino
se lembra de como sua vida mudou quando ele passou de uma pessoa difamada pelos
produtores de O Poderoso Chefão a uma estrela mundial graças a
Michael Corleone. “Obviamente, foi radical. Mas faz cinquenta anos, acreditem
ou não, vivíamos em um mundo diferente... Nossa, já faz meio século. Enfim, a
ideia de fama era diferente, o apetite pela arte também... Combinávamos
interesses diferentes, inclusive o vocabulário, dos das estrelas de hoje. E
ainda me sinto assim”. Um jornalista compara essa resposta com uma declaração
parecida de Mick Jagger. “Ah, deus, adoro Jagger, adoro essa
comparação. Suponho que tenhamos espíritos parecidos surgidos na mesma época.
Como ele, gosto do palco. Acho que minha filha Julia sofreu com isso, porque
quando nasceu eu estava muito comprometido com o teatro. Agora ela é cineasta e
temos longas conversas. Entendo por que nos velhos tempos os atores faziam
sagas: viajavam com sua família de um lado para outro, algo muito prático;
herdavam e transmitiam uma tradição e além disso criavam algo superior,
imortal: um espetáculo. Minha filha, porém, teve de esperar”.
Ele mesmo é parte de uma tradição, o Actors Studio.
Pacino volta para lá de vez em quando para dar palestras, comprometido com o
Método, transformado ele mesmo em lenda. “Não sou capaz hoje em dia de definir
o que é uma atuação do Método. Só posso afirmar que acredito que o ator deve
fazer um grande trabalho pessoal. Lenda, eu? Por favor, lenda era Marlon
Brando. E, claro, imitei-o quando era jovem. Logo chegaram os anos setenta, a
aceleração de dois filmes por ano, os excessos, os esquecimentos provocados por
esses excessos... Refugiei-me no teatro para voltar à essência da atuação. Está
bem, aceito que sou uma personalidade conhecida. E contra isso não posso lutar.
Só me resta o recurso de ser o mais eclético possível em minhas escolhas
profissionais.”
Nos palcos,
mantém a chama. “O teatro se baseia na repetição. E para mim essa repetição me
provoca ambição, vontade de criar momentos mágicos. As palavras já estão
escritas, mas você inventa sentimentos.”
O ator,
vencedor do Oscar por um de seus trabalhos mais açucarados,Perfume de mulher,
se recusa a refletir sobre seu passado. “É que não posso tirar conclusões,
porque a vida é incontrolável. Um dia você se levanta com vontade de fazer um
montão de coisas, no outro o corpo todo dói e você se lembra daqueles dias de
seu tempo de bebedor [risos]... Sei a idade que tenho, e que o mundo muda a
toda velocidade. Ninguém tem culpa disso. Com os anos você sabe que restam duas
coisas: sua imaginação e suas lembranças. Não estamos falando de cinema, sinto
muito, mas gostaria de entrar nesses aspectos psicológicos da vida. Porque por
mais que alguns se gabem, ninguém tem a capacidade total de entender as coisas,
os acontecimentos, a vida. E isso justamente é o que amo na interpretação: nem
tudo é inteligível, nem tudo é controlável”.
Mas, isso sim,
agradece a Deus, por “todos os filmes” que fez. “E os que não fez também, pois
ficaram para trás. Por favor, não me façam voltar a falar do passado [risos].
Disse a vocês que já não me lembro bem dos anos setenta? [gargalhadas]. Sabem
do que eu gosto? Quando alguém vem, te cumprimenta, sou amável e a pessoa vai
embora e diz para um amigo: “Olha, taí um cara agradável”. E o que diria aos
jovens atores que querem ser o novo Pacino? “Rapazes, vocês estão com a faca e
o queijo na mão".
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